ENTREVISTA

'Adultos vivem para trabalhar porque não reconhecem outros interesses', diz psicóloga

Com a saúde mental de mal a pior, sabotam a própria produtividade e todo mundo sai perdendo, explica Bianca Solléro, psicóloga especialista em criatividade e desenvolvimento humano

Ana Paula Lima
@anaplimabh
Publicado em 15/04/2024 às 07:00.
Bianca Solléro, psicóloga com foco em criatividade e desenvolvimento humano (Isa Barbosa)

Bianca Solléro, psicóloga com foco em criatividade e desenvolvimento humano (Isa Barbosa)

O mundo está cada vez mais tecnológico e acelerado, mas será que nossa produtividade cresce no mesmo ritmo? Calculada a partir da divisão do PIB pelas horas trabalhadas, ela é essencial para qualquer negócio, mas sua entrega depende da nossa saúde mental – muitas vezes combalida e uma das principais causas de afastamento do emprego. Esse cenário e como sobreviver a ele são temas da palestra com inscrições gratuitas que a psicóloga Bianca Solléro realiza em Belo Horizonte, na próxima sexta-feira (19), às 14h.

Com o tema “Mindset Cíclico - a chave para sermos mais produtivos e criativos no trabalho”, o encontro faz parte da programação do World Creativity Day, maior festival colaborativo de criatividade do mundo, que este ano acontece na capital mineira, de 19 a 21 de abril. Nesta entrevista, Bianca, que é consultora em criatividade e tem um livro sobre o assunto, também fala sobre como a infância interfere nesse processo e defende que o descanso puro e simples não é a chave para nós. Confira!

Vivemos em um mundo cada vez mais tecnológico, mas isso está se refletindo em produtividade? 

Não! O que acontece é o que eu chamo de paradoxo da produtividade: a era em que temos mais recursos direcionados a otimizar a produtividade é também a era de pessoas mais improdutivas. Pela perspectiva macro, os principais estudos e pesquisas sobre este tema mostram uma evolução tímida da produtividade no Brasil, cuja justificativa abrange uma ampla análise socioeconômica. 

Em paralelo, essa quase estagnação da produtividade merece um olhar mais específico que tange o cerne dos negócios: as pessoas - e é este o foco dos meus estudos. As escolhas que temos feito enquanto sociedade nos últimos anos - cujas consequências foram potencializadas pela pandemia de Covid-19 - estão promovendo pessoas cada vez menos produtivas e isso impacta direta e negativamente no sucesso de qualquer negócio.

O que estamos fazendo de errado?

Eu elenco três principais motivos que nos trouxeram a este cenário.

O primeiro é o desrespeito à infância. Parece distante do tema, mas não é - e digo isso com base nos meus 13 anos de carreira na interface entre infância e mundo corporativo. Meu TEDx e meu livro, inclusive, nasceram daí. Cedo demais perguntamos às crianças o que elas vão ser quando crescer, atropelando o aproveitamento da infância com expectativas cruéis. Com isso, furtamos a possibilidade de que desenvolvam seus talentos e habilidades com base em seus interesses intrínsecos.

O segundo motivo são os equívocos reducionistas da criatividade que impedem que ela seja nutrida desde a infância, quando o potencial de desenvolvimento é altíssimo, e acabam por pressionar adultos a serem criativos a qualquer custo, através de técnicas descontextualizadas como a famosa “chuva de ideias” (brainstorming) que não serve de nada em ambientes que não sejam minimamente seguros psicologicamente. Dois dos exemplos mais comuns destes equívocos reducionistas são o de que a criatividade seja um dom que só serve para profissões vinculadas à arte ou marketing ou de que ela acontece a partir de um processo exclusivamente cognitivo-intelectual.

E, por fim, o terceiro motivo está no boom das redes sociais, que alterou por completo nossa forma de nos relacionar, afastando-nos de ampliar habilidades socioemocionais e com tendência a nos robotizar.

Estes três motivos fizeram com que os adultos de hoje, principalmente na faixa etária dos 30 aos 50, estejam sem inteligência emocional, pouco criativos e hiper identificados com o trabalho. Resultado: vivem para trabalhar porque não reconhecem outros interesses e, por isso, não sabem onde reabastecer a reserva psíquica que os permitirá trabalhar criativa e produtivamente.

Saúde mental, produtividade e criatividade se retroalimentam?

Com certeza! Produtividade é produzir mais a partir dos mesmos recursos ou menos. Para isso, é preciso criatividade, mas, também, um mínimo de reserva psíquica, saúde mental. Para entender este conceito, pense em reserva financeira: você precisa que haja dinheiro mas também disponibilidade para sacar. Não adianta precisar do dinheiro hoje, tê-lo guardado, mas só poder sacar daqui 10 dias. Ter reserva psíquica significa ter algum repertório de recursos, o quê e como fazer nos âmbitos técnico, comportamental e emocional, mas também ter energia mental para sacar estes recursos quando for preciso. Quanto mais saúde mental, mais produtiva e criativa a pessoa consegue ser.

Você diz que para tornar-se mais produtivo é necessário alternar o trabalho com a recuperação da energia, o que não significa necessariamente descanso. Como é isso?

Para sermos mais produtivos precisamos de alguma reserva psíquica e isso inclui energia mental - que precisa ser recuperada depois que é exaustivamente gasta nas atividade cotidianas. É nisso que consiste o que eu nomeei como mindset cíclico. É verdade que o descanso pode recuperar nossa energia, mas não necessariamente.

O que acontece é que atribuímos ao descanso a imagem de algo estático, parado ou dormindo. Ou mesmo a clichês como tirar férias ou sair com os amigos. Mas a verdade é que essas opções nem sempre recuperam a energia psíquica; às vezes, só cansam ainda mais emocionalmente. Acabamos por nos entregarmos a elas, equivocadamente, porque funcionamos pelo mindset linear. Trocar as palavras “pausa e descanso” pela ideia de “recuperação de energia” é o princípio básico do mindset cíclico. O foco não deve estar no descanso-padrão ou clichê mas, sim, em atividades que vão realmente recuperar energia, o que eu chamo de atividades contra-foco.

Refiro-me ao que a pessoa faz que lhe dá prazer legítimo, que colabora para que ela desfoque do trabalho e mergulhe em outro estado mental, outro foco. Os chamados hobbies têm efeito mais direto na produtividade porque muitas vezes desenvolvem habilidades úteis ao universo do trabalho como foco, curiosidade, resiliência, coragem e crítica, porém, sem o eventual peso da responsabilidade corporativa. São excelentes para recuperar energia e construir reserva psíquica. Por isso, clichês não servem, é preciso que seja algo pessoal. 

Há que se descobrir o que realmente te dá prazer e a principal dica para isso é recordar o que você gostava de fazer na infância. Em adicional, atividades simples como ouvir seu gosto musical com mais frequência ou escutar podcasts que tratam de assuntos que despertam sua curiosidade e interesse são opções práticas que vão colaborar para o seu bem estar psicoCriativo, ou seja, favorecer sua criatividade e sua saúde mental sem precisar de um espaço extra na sua agenda. Você pode fazer enquanto estiver no trânsito ou até mesmo tomando banho.

Como fazer com que o incentivo à produtividade não pareça um discurso do mundo corporativo para fazer com que os funcionários entreguem sempre mais?

Todo negócio deseja profissionais mais produtivos e o problema não é este. A grande questão está no seguinte: queremos máquinas mais produtivas ou pessoas? Enquanto lidarmos com pessoas como se fossem máquinas, a expectativa de produtividade será sempre frustrada - o que fará mal para o negócio e para a própria pessoa!

Eu defendo que, se o negócio pode ser mecanizado, que seja ao máximo para que sobre para as pessoas serem mais gente e menos máquina. As empresas precisam entender o óbvio que é: para ser máquina, as máquinas são melhores. Mas para inovar, gerar verdadeiras disrupções e aumentar a produtividade é preciso lidar com as pessoas a partir do que elas têm de mais essencial: sua humanidade.

Saindo um pouco da questão da produtividade... Em um mundo cada vez mais dominado por robôs e inteligência artificial, qual o espaço para os criativos no mercado de trabalho e na sociedade em geral?

Depende de qual criatividade estivermos falando. Para os criativos mais pragmáticos, aqueles que acreditam nos equívocos reducionistas ou insistem nas técnicas vazias, sei que haverá cada vez menos espaço. Mas para os “criativos em essência” teremos ainda mais oportunidades de negócios e de realização. Estou me referindo a uma diferenciação dos tipos de criatividade, com base nas pesquisas de Arne Dietrich, neurocientista e professor doutor de psicologia na Universidade de Beirute, realizadas desde 2005, para dizer que se quisermos continuar criando como máquinas, seremos ultrapassados. Mas se soubermos criar a partir das nossas sensações, dos nossos sentidos e emoções dificilmente seremos vencidos.

O primeiro estudo que comparou a criatividade humana com a artificial já foi realizado e publicado pela Scientific Reports em 14 de setembro de 2023. Comprovou que numericamente a criatividade artificial ganha da humana: ela é a que oferece mais quantidade de respostas criativas. Todavia, quando a análise é qualitativa, ela perde. As melhores respostas, as mais criativas e interessantes foram dadas por humanos.

Este estudo nos chama a atenção para o fato de que as inteligências artificiais são alimentadas por humanos. Portanto, poderão fazer mais combinações diferentes em um curto espaço de tempo e com pouco esforço. Ainda assim, o repertório humano, quanto melhor utilizado em toda sua potencialidade, será capaz de criar soluções essencialmente mais inovadoras do que qualquer máquina.

Imagine este exemplo: você precisa criar um produto e conta com a IA para isso. A tecnologia criará a partir das informações que você oferecer a ela, somado ao repertório de dados que ela tem, que também foi alimentado por humanos. Ela dificilmente “sentirá” a necessidade de criar algo e, se conseguir perceber alguma lacuna em determinado produto ou serviço, ela fará uma sugestão de “inovação” baseada em fatores numéricos, não numa percepção sensorial ou emocional da coisa - ou seja, tende a ser pobre.

Somam-se a isso as pesquisas mais recentes de neuromarketing que apontam para o fato de que o grande diferencial que converte em vendas é a conexão emocional e uma máquina ainda demorará muito a alcançar este lugar do sentir – se é que isso será um dia possível.

Dá para aprender a ser criativo no trabalho?

Com certeza! Aliás, é o que eu ensino em minhas palestras e workshops corporativos. Mas há que se ter cuidado para isso não ser um “tiro no pé” da produtividade, ou seja, ser só mais uma pressão que sufoca ou distrai. O segredo está em desenvolver a criatividade com base no que eu chamo de camadas psicológicas, por exemplo, nutrindo curiosidade, contra-foco, coragem e crítica.

A geração Z está chegando ao mercado de trabalho e, com ela, inúmeros desafios para os gestores. Como você vê a questão da produtividade e da criatividade desse público em específico? 

(Vejo de forma) Crítica e atravessada por inúmeras questões que merecem uma discussão aprofundada. Em resumo, percebo que boa parte está prestes a sucumbir à crise de sentido existencial. Os que superarem isso poderão nos ensinar muito e, talvez, serem os mais criativos e produtivos dos últimos tempos.

Para quem ainda vai entrar no mercado de trabalho, que conselho daria?

Sugiro que esteja atento ao próprio autoconhecimento e se lembre que os desafios enfrentados e superados no trabalho podem te ajudar a construir sentido na vida. Ao mesmo tempo, tenha consciência de que nenhum projeto pessoal ou profissional se sustentará por muito tempo se você não cuidar da sua saúde mental e da sua criatividade.

Serviço

O quê: palestra "Mindset Cíclico - a chave para sermos mais produtivos e criativos no trabalho"

Quem vai falar: psicóloga Bianca Solléro, que trabalha há 12 anos com foco na interface entre criatividade e saúde mental

Quando: 19 de abril, às 14h

Onde: espaço P7 Criativo, rua Rio de Janeiro 471 – Centro (fica no edifício projetado por Oscar Niemeyer, na praça Sete - antigo prédio do Bemge)

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