Governos e Uefa comemoraram 100 anos da 'trégua da bola' na 1ª Guerra Mundial

Agência Estado
24/12/2014 às 17:21.
Atualizado em 18/11/2021 às 05:28

O inverno europeu castigava os soldados no fim de dezembro. Era véspera de Natal. O que era para ser uma guerra curta dava seus primeiros sinais de que iria ter um impacto muito maior do que qualquer político, cidadão comum ou soldado jamais imaginaria. Mas, naquela noite em trincheiras sujas de barro e já repletas de sangue e de cheiro de morte, soldados tentavam reviver o sentido de humanidade ao se lembrar que estavam atravessando o primeiro Natal da Primeira Guerra Mundial, em 1914.

Cartas da época contam que, de uma forma inesperada, aqueles soldados que estavam cometendo algumas das maiores barbaridades vividas pela Europa até então declararam uma trégua. Informal e sem comando. Mas espontânea e real. Documentos relatam como soldados ingleses começaram a escutar como os inimigos alemães, em suas trincheiras, cantavam "Noite Feliz". A resposta não demorou a surgir, quando os soldados da realeza britânica responderam com a mesma canção, em inglês. "Nunca me esquecerei disso. Foi um dos pontos mais emocionantes da minha vida", escreveu Albert Moren, um soldado britânico.

O que se viu nos instantes seguintes foi algo mágico e que jamais voltaria a se reproduzir. Soldados de ambos os lados saíram de suas trincheiras e foram desejar feliz Natal aos inimigos, como se quisessem se lembrar de que eram humanos. O local era o território belga e o norte da França, um dos cenários de maior violência durante a Primeira Guerra. Aquele momento de paz permitiu que corpos fossem resgatados de ambos os lados e enterrados de forma digna.

O armistício não oficial teria ocorrido em cerca de 30 locais diferentes na fronteira belga, enquanto outros relatos apontam que ele também foi registrado no Mar do Norte e mesmo na fronteira da Suíça.

FUTEBOL - Cigarros e presentes foram trocados. Mas foi uma partida de futebol improvisada em "Terra de Ninguém" que acabou marcando os espíritos. Como num passe de mágica, uma bola surgiu e soldados alemães e ingleses deixaram as armas de lado para disputar em um campo também improvisado um jogo de futebol. O que estava em jogo, porém, não era o resultado. Mas a sobrevivência dos espíritos.

Cem anos depois, governos, dirigentes esportivos e jogadores fazem questão de comemorar o episódio, em parte para reforçar a ideia de que a humanidade sempre vence e, em parte, para mostrar que o futebol pode ser mais forte que a guerra. "Crescemos escutando as histórias de como os soldados colocaram suas armas de lado", contou o príncipe William, em um evento em Londres há duas semanas. "O futebol tem o poder de derrubar barreiras", insistiu.

Mas, segundo historiadores, não há como saber exatamente se aquele jogo entre soldados rivais ocorreu ou foi apenas mais um mito nutrido a partir da propaganda de guerra. Um dos maiores promotores do jogo foi o jornal The Times of London, que publicou cartas de soldados britânicos na época contando como a partida ocorreu e que os alemães venceram por 3 a 2. Em outra, o general Walter Congreve dizia para sua mulher como havia sido o Natal de 1914 nas trincheiras. Segundo ele, o jogo, de fato, ocorreu.

Mas especialistas alertam que praticamente não encontraram nenhuma referência ao tal jogo de futebol entre as correspondências dos alemães. "Dá para entender o motivo pelo qual esse mito surgiu. Mas a realidade foi bem diferente", garante o historiador Chris Baker. Existem, segundo ele, apenas poucas referências da partida entre as correspondências dos ingleses. "E enquanto não encontrarmos nada entre os alemães, é difícil de acreditar que esse jogo de fato ocorreu."

A teoria que ganha força, porém, é a de que uma partida tenha de fato sido realizada. Mas apenas entre ingleses e com uma lata de ferro. Afinal, quem é que levaria uma bola para as trincheiras. Isso sem contar o fato de a região estar repleta de arames farpados, crateras e corpos de mortos, além de minas. "O futebol tem um papel insignificante na trégua de 1914", escreveu o também historiador Taff Gillingham.

Nada disso parece ter tirado a determinação dos cartolas e de entidades de promover o jogo como uma realidade. Estátuas foram erguidas nas últimas semanas em homenagem ao evento e até a Uefa publicou vídeo para comemorar o momento. Soldados alemães e ingleses organizaram um amistoso - vencido desta vez pelos ingleses - e as Federações fizeram questão de marcar até um minuto de silêncio em homenagem aos "jogadores" envolvidos na partida de 1914.

Historiadores insistem, no entanto, que os esforços tem uma finalidade muito mais mitológica do que real. Até porque, por cerca de 50 anos, ninguém sequer falou do evento e ele apenas ganhou corpo a partir dos anos 60, quando peças de teatro, filmes e canções começaram a evocar o jogo. A trégua aconteceu e o futebol pode até ter sido uma realidade, mesmo que apenas um batalhão e com uma lata de ferro.

Mas o que aqueles soldados não sabiam é que a humanidade estava entrando em uma era inédita. Nos três anos seguintes, as tréguas seriam proibidas e a Europa - civilizada e culta - terminaria o confronto em 1918 com 16 milhões de mortos. Pelo menos durante aquelas horas, a humanidade se lembrou de que existia. Com ou sem uma bola.
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