Vagão de trem vira laboratório literário

Elemara Duarte - Hoje em Dia
03/08/2014 às 09:40.
Atualizado em 18/11/2021 às 03:38
 (Édipo Ferraz/ Divulgação)

(Édipo Ferraz/ Divulgação)

Jessé Andarilho é um carioca que escreveu o primeiro livro dele no celular nas diárias viagens de trem – mais ou menos 1h30 de duração, fora o tempo de espera – que faz até o trabalho. Inclusive, o escritor estreante, de 32 anos, continua a escrever outros livros na mesma condição. Mas o que está pronto e nas estantes das livrarias de todo país chama-se “Fiel” (Editora Objetiva, R$ 26, 90, 212 páginas) e fala de histórias reais que o autor viveu, testemunhou ou ouviu desde a infância em bairros e comunidades da Zona Oeste do Rio de Janeiro.   “Fiel é o nome do adolescente que é o braço direito do traficante das favelas do Rio. Todo traficante que se preza tem um fiel. É um garoto que compra lanche para ele, esconde a arma, leva recados. Alguns desses garotos recebem muito bem. Depende do patrão. Outros, não recebem nada, mas gostam de ficar perto desse universo. Conheço um montão de patrão e de fiel. Pô, morava na favela, lá onde a chapa é quente”, explica, sobre o título.   O “Fiel” do livro foi criado em família evangélica, mas os pais dele se separaram. E nisso mora um motivo convincente para desvirtuar sua vida. Entre saídas escondidas pela noite, acabou chegando aos traficantes, assumiu o cargo de auxiliar e chegou a virar chefe. O personagem vai do “ápice da bandidagem”, como Jessé diz, até outras trevas do vício nas drogas. “Nunca vi nenhum traficante se dar bem. Todos se ferram no final”.   De olho   Nesse universo todo, o trem suburbano é um dos principais laboratórios literários. Em pé, sentado, com o vagão cheio ou não. O esquema, diz ele, é não se abstrair do que acontece em volta. A fofoca de um, a história absurda da outra, a gíria do boy, o problema daquela senhora. Jessé “pesca” tudo aquilo que teoricamente não é da conta dele. Mas, é sim. Vira inspiração. E o livro está aí para não mentir essa prática. De cara, a publicação vem de uma editora reconhecidamente de peso.    “– Betinho, resolve essas paradas pra mim que vou dar um rolé no baile com minha dona! – Já é, Fiel. É nós que tá!”. Sentiu a pegada literária? É desse linguajar popular que o escritor extrai sutilezas para o romance que se apresenta. “Peguei a realidade e ficcionei”. O apelido no sobrenome do escritor vem do gosto dele em “bater perna” pela cidade maravilhosa. Realidade que virou nome artístico.   “Comecei a escrever no celular sem pretensão alguma. Nem escritor pensei em ser. Repeti a sétima série cinco vezes. Nunca gostei de ler ou de escrever, até que li o livro ‘No Coração do Comando’ (Julio Ludemir, Editora Record).i de uma vez só. Gostei! Vi que eu poderia ter muitas outras histórias daquele universo também”, lembra Jessé, que já trabalhou em lava-jato e como assistente administrativo em um prédio. E o trem sempre entre esses deslocamentos.   Após escrever alguns capítulos do romance, Jessé mostrou o resultado para um amigo, que gostou e o encorajou a escrever mais. “Passo o texto do celular para o caderno, e do caderno para o computador”.    Trabalheira? “É trabalheira! Mas entre passar para o caderno e o computador há filtros. Mudo coisas, troco palavras”.    Resultado: um texto refinado no enredo e na gramática. “Tanto que eu assinei com uma das maiores editoras do país”, salienta o jovem escritor que tem outros cinco livros em produção.     Saraus e bailes funk   Jessé também escreve poesias no aparelhinho digital pós-contemporâneo mais popular do mundo e as lê em saraus que frequenta. Andarilho ainda anda de trem e na comunidade não abre mão dos bailes funk. “Vou ao sarau e depois para o baile”, diz, sobre o diversificado roteiro cultural.    Mas e a “digníssima” não fica brava de ver você, um homem casado, indo ao baile? “Não, não... Ela sabe que é para pegar inspiração” (Risos...).   *Entrevista registrada em gravador digital e matéria escrita em um computador desktop, numa sexta-feira chuvosa de inverno em Belo Horizonte, 18 graus.     Trechos de "Fiel"   "Segunda-feira. Prova de Matemática e de Português, matérias que dominava, assim como todas as outras. Jéssica sentou ao seu lado para tirar uma cola. Era uma garota bonita, não a mais linda do colégio, mas a única que não lhe dava confiança. Ela usou e abusou do pobre apaixonado para tirar vantagem dos seus conhecimentos nas matérias. Na verdade, ela só se aproximava dele nos dias de prova.”  "– Como pode um menor dessa idade pensar assim?  – perguntou o chefe do morro da Mangueira.  O patrão respondeu que era porque ele ficava lendo o livro “A Arte da Guerra” e a Bíblia.  – Ele fica ligadão nessas leituras. Ninguém na comunidade sabe que o menor é bandido, só mesmo os gerentes. Ele sempre fala que o esquema é ver sem ser visto”.     Onde e como os famosos escreviam?   Caderneta no pescoço Guimarães Rosa (1908–1967) em sua mais conhecida viagem pelo sertão, em 1952, que deu origem à obra- prima “Grande Sertão: Veredas”, sempre levava uma caderneta pendurada no pescoço para os registros dele.   Na banheira Vinicius de Moraes (1913–1980) passava horas e horas na banheira. Ali, colocava uma prancheta entre os braços da cuba, como uma mesa, recebia amigos, escrevia poemas e até dava entrevistas. Na banheira, inclusive, é que ele foi encontrado morto.   Deitados O escritor francês Marcel Proust (1871–1922) escreveu “Em Busca do Tempo Perdido” deitado na cama. Assim como o jornalista norte-americano Truman Capote (1924–1984), que também escreveu livros na horizontal.   Em pé Ernest Hemingway (1899–1961) escrevia em pé e sempre deixava um capítulo escrito até a metade. Assim, acreditava, no intervalo o texto ia se escrevendo sozinho em alguma parte da mente.   Com a máquina no colo Quando Clarice Lispector (1920–1977) teve o primeiro filho, em 1948, ela passou a escrever com a máquina de datilografia no colo, para ficar de olho no pequeno.

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