Espera de risco: estoque zerado faz paciente aguardar medicamento por até três meses em BH

Raul Mariano e Anderson Rocha
horizontes@hojeemdia.com.br
27/08/2018 às 20:43.
Atualizado em 10/11/2021 às 02:08
 (Flávio Tavares)

(Flávio Tavares)

A falta de medicamentos especializados e de alto custo na Farmácia de Minas tem prejudicado o tratamento de pacientes com doenças crônicas em Belo Horizonte. Em alguns casos, a espera pelos remédios de uso contínuo fornecidos via Sistema Único de Saúde (SUS) já chega a três meses.

Hoje, portadores de patologias como mal de Parkinson, asma e crohn (inflamação no intestino) que dependam desse auxílio estão desassistidos.
Em frente à farmácia, na região Centro-Sul da capital, o semblante da maioria dos usuários é de abatimento.

Que o diga o aposentado Joel Evangelista de Jesus, de 72 anos, que na última sexta-feira esteve no local na tentativa de levar para casa o formoterol, remédio para combater asma e doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). “Recebi a receita há três meses e até hoje não consegui. Está sempre em falta. Daqui a 15 dias, volto novamente”, lamenta.

O valor médio gasto pelo Estado com o medicamento formoterol gira em torno de R$ 52 mil

Segundo a Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG), a situação de “calamidade financeira” dos cofres públicos impede o pagamento de fornecedores, que não fazem a entrega de muitos medicamentos. “Tão logo o item seja entregue em nosso almoxarifado, autorizaremos a distribuição a todas as regionais de saúde do Estado”, informa nota enviada.

O órgão não diz o nome dos remédios em falta atualmente, mas uma lista compilada pelo Sindicato Único dos Trabalhadores da Saúde de Minas Gerais (Sind-Saúde), em junho, apontava que 79 não estavam sendo fornecidos.

O futuro também é incerto. Além dos itens com estoque zerado, há fármacos cuja reserva é suficiente para apenas mais um mês. É o caso da sulfassalazina de 500 mg que, dentre várias enfermidades, é utilizada para tratamento de artrite reumatoide.Lucas Prates“A maior preocupação é viver uma nova crise e não ter condições de tratar da saúde. E o maior problema é manter a vida social assim” (Ronan Afonso da Silva, administrador"

Angústia

Quem convive com o problema alega que a instabilidade está se tornando comum. O administrador Ronan Afonso da Silva, de 37 anos, é portador de retocolite ulcerativa, doença inflamatória que gera inchaço e dor no intestino grosso. 

Usuário de mesalazina 800 mg e azatioprina 50 mg – comprimidos indispensáveis para manter a enfermidade controlada e que estão com estoque zerado –, há três meses ele tira dinheiro do próprio bolso para comprar as caixas. 

“Desde 2014, quando comecei a medicação, houve vários períodos de falta. Hoje, estou sendo obrigado a gastar, em média, R$ 800 por mês”, afirma.
Para Ronan, o receio é passar por novas crises da doença, como a que por pouco não o levou para a sala de cirurgia. “Da última vez, foram quatro meses para me recuperar. Cheguei a perder 14 quilos em uma semana”.Flávio Tavares“Vou voltar em setembro para ver se chegou. Me sinto oprimida com essa situação. É um direito que não sai 
de graça” (Maria Aparecida dos Santos Coelho, aposentada) 

Drama

O maior risco na interrupção dos tratamentos feitos pelos medicamentos de uso contínuo é a piora da saúde dos pacientes. Quem afirma é a presidente da Associação Mineira dos Portadores de Doenças Inflamatórias Intestinais (AMDII), Patrícia Mendes Santos Quintiliano.

Ela explica que um doente com retocolite pode chegar ao ponto de ter o intestino amputado. “A partir daí, você se torna um deficiente físico. E, mesmo nesse caso, o uso dos remédios continua sendo necessário”.

Processos na Justiça

A escassez de medicamentos não afeta apenas a população mineira, mas também a de outros estados brasileiros. De acordo com a Associação dos Familiares, Amigos e Portadores de Doenças Graves (Afag), as faltas mais comuns são de remédios para artrose, hipertensão pulmonar e também os usados em pós-transplantes.

Presidente nacional da entidade, Maria Cecília Oliveira explica que pelo menos 70 tipos de fármacos que deveriam ser amplamente distribuídos no país estão com estoque zerado. 

A tendência, segunda ela, é o aumento de processos na Justiça para a aquisição desses produtos, na chamada judicialização da saúde. “A pessoa só precisa ter a comprovação de que tentou retirar o medicamento e não houve entrega. A partir daí, ela já pode procurar a Defensoria Pública ou o Ministério Público”, orienta. 

A alternativa, no entanto, não é garantia de resolução do problema. Maria Cecília diz que nem os pacientes que conseguiram liminares para a compra de um determinado remédio estão sendo atendidos.Flávio Tavares“Consegui pegar uma bombinha, que custa R$ 410, e já é um alívio. A outra, sem previsão de chegada. Já é o segundo mês tentando” (Tânia de Cássia Gonçalves, aposentada)

Rotina

A advogada especialista em direito público Mariana Resende Batista, integrante da Comissão de Saúde da OAB-MG, explica que há mais de um ano diversas pessoas sofrem com a falta de medicamentos. “Não é um fato novo, mas já procuramos o MP (Ministério Público), que está cobrando respostas do Estado”, assegurou.

O Conselho Estadual de Saúde afirma ter criado um grupo para acompanhar o caso, e está pedindo ao governo estadual que priorize a situação. O Ministério da Saúde e o MP foram procurados pela reportagem, mas não se posicionaram até o fechamento desta edição.

79 medicamentos estavam em falta na Farmácia de Minas em junho, segundo levantamento do Sind-Saúde

Caso emblemático

Um dos casos mais emblemáticos da consequência da falta de remédios em Minas foi a morte de Margareth Mendes, portadora de hemoglobinúria paroxística noturna (HPN), enfermidade rara que ataca as células-tronco e atinge cerca de 500 pessoas em todo o país. 

Ela havia ganhado na Justiça o direito a receber o Eculizumab, cujo frasco custava cerca de R$ 20 mil, mas teve o fornecimento da substância interrompido em meados 2017. “Era um medicamento importado, o único no mundo a controlar a doença”, explica Ruth Mendes, irmã de Margareth.

Sem acesso ao produto, a paciente chegou a tomar anticoagulantes para evitar as tromboses, mas não resistiu. “Foi uma agonia enorme para a família inteira. Todos nós sofremos juntos, ficamos impotentes”, afirma Ruth. 

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