Eliane Brum lança livro em BH, no “Sempre um Papo”

Patrícia Cassese - Hoje em Dia
12/05/2014 às 06:47.
Atualizado em 18/11/2021 às 02:32
 (Lilo Clareto/Divulgação)

(Lilo Clareto/Divulgação)

Eliane Brum recebeu um convite de certo modo desafiador: escrever um livro sobre um ou dois autores que influenciaram sua vida e seu trabalho. Mas a jornalista, escritora e documentarista gaúcha não se furta em dizer que preferiu declinar da proposta. “Fazia mais sentido para mim contar sobre as pessoas anônimas que, com seus pequenos grandes gestos, às vezes delicados, às vezes brutais, (também) fizeram de mim o que sou”, confessa, ao Hoje em Dia.

Foi o start necessário para cravar a primeira linha de “Meus Desacontecimentos – A História da Minha Vida Com as Palavras” (Editora LeYa, 144 páginas, R$ 29,90), livro que a traz de volta à capital mineira: hoje, Eliane participa do projeto Sempre um Papo. “Comecei a escrever o livro percorrendo um itinerário amoroso povoado por personagens da minha infância”. Mas, em 2011, Eliane foi surpreendida pelo que aponta como sua maior crise com a palavra escrita, por causa de uma reportagem sobre Doença de Chagas na Bolívia, em aldeias onde mais de 70% das pessoas estavam doentes.

A reportagem, vale lembrar, virou um capítulo do livro “Dignidade”, que marcou os 40 anos da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras. Ao se despedir de uma garota portadora de Doença de Chagas – Sonia, 11 anos – , Eliane recebeu um apelo. “Ela me pegou pelos braços e disse: ‘Não me deixe morrer’”.

Eliane já tinha testemunhado realidades tão ou mais brutais do que o horror presenciado nas aldeias bolivianas (“um horror causado por um inseto-vetor que já deveria estar erradicado há décadas e por uma doença que já deveria ter cura ou vacina, caso a indústria farmacêutica tivesse algum interesse pelas populações pobres e invisíveis do mundo”). “Mas nunca uma criança tinha feito esse pedido diretamente a mim. Era um pedido pessoal, intransferível, os olhos dela colados nos meus”, rememora.

"A verdade única não existe"

Foi naquele exato momento que Eliane Brum se deu conta de que contar a história da garota não seria suficiente para salvá-la. “Ao voltar para São Paulo, tive uma daquelas quedas profundas de dentro. Pela primeira vez, paralisei. Não conseguia escrever”. Na verdade, Eliane estava tomada por um pensamento: “Se escrever não é suficiente para salvar a vida dela, por que então escrever?”.

“Sempre tinha acreditado profundamente no poder da reportagem, da história contada, como instrumento de transformação das realidades injustas. E continuo acreditando o profundamente. Esta é uma parte fundamental do que me faz repórter. Mas, naquele momento, duvidei”, confessa.

A jornalista teve, então, que dar início a um trabalho interno para entender que escrever é “o” possível. “E o possível é muito e pouco ao mesmo tempo. Que escrever, contar essa história para o mundo, era o que de melhor podia fazer para que crianças como Sonia jamais tivessem de fazer novamente esse pedido”. Confira, a seguir, outros trechos da entrevista.

O que aconteceu exatamente ali?

Tive um confronto profundo com a impotência, uma fratura que hoje faz parte do meu corpo. Dali em diante, buscar – ou resgatar – os sentidos da palavra escrita na constituição da menina que fui tornou-se uma obsessão para mim. ‘Meus Desacontecimentos’ (o livro) mudou de rumo, ganhou outra densidade e tornou-se sobre uma criança que, para viver, forja para si mesma um corpo de letras.

Com as suas “invenções de vida”, como nomina no início da obra, já teve alguma experiência de se deparar com alguém que viveu o mesmo episódio e reteve uma versão diferente da “tatuada” em suas memórias?

Acho que cada pessoa terá uma versão diferente para esta ou qualquer história. Meus irmãos, por exemplo, não lembram de coisas que lembro e lembram de outras que não contei (na obra) porque foram importantes para eles, mas não para mim. Minha filha acredita que o livro deu outro lugar às mulheres da família, antes subalternas nesses relatos, assim como resgatou a tragicidade do que, na versão masculina, era só anedótico, como as cartas de amor da minha avó. Cada leitor, perto ou longe, lerá um livro diferente. E sobre isso, nenhum escritor pode ter – ou desejar ter – qualquer controle.

Fale um pouco sobre o conceito de “história em movimento”?

Para mim, o personagem principal de “Meus Desacontecimentos” nem sou eu mesma, mas a palavra. Neste livro, conto como a palavra me deu um corpo que me permitiu viver. Mas deixando claro que essa é uma história em movimento, cujos sentidos podem mudar, já que vivo uma vida viva. E só numa vida morta os sentidos se tornam estáticos, congelados e imutáveis. Esse livro não é a história de uma verdade única, jamais cometeria essa traição comigo mesma e com a escrita. Esse livro é a história de uma busca: a mulher que sou hoje ao mesmo tempo decifra e cria sentidos para a menina que fui. Dessa memória, como escrevi, sou aquela que nasce, mas também sou a parteira.

Esse percurso “de dentro para dentro” certamente – acredito – foi doloroso...

Escrever sempre é bastante perturbador para mim. É isso que também me move a escrever. Um livro começa com uma perturbação interna, que depois de algum tempo me obriga a sentar diante do computador para dar um outro lugar ao que me come por dentro. A diferença, com esse livro, comparado aos outros que já escrevi, é que está sendo mais difícil na hora de lançá-lo, como faço agora em BH. Em outros livros, este era um momento de festa, quase catártico. Neste, me sinto excessivamente desnuda. A cada manhã acordo e penso: “Agora que tirei a minha roupa, que talvez tenha também arrancado a minha pele, como me apresento ao mundo?”. Tem sido angustiante, estou com insônia há meses por conta dessa nudez do meu corpo de letras.

Fez alguma espécie de edição, ao final? Ou deixou o material correr solto e apenas se preocupou em dar um trato à forma?

Escrevo sem pensar em edição. Não gosto de amarras de nenhum tipo. Nem de tamanho nem de forma nem de censura ou autocensura. Escrever precisa ser um exercício de liberdade. Para mim, é como se o livro fosse escrito primeiro dentro, e depois ganha um lugar no lado de fora. Ele já vem com seu próprio ritmo, com suas palavras, como uma daquelas pedras que já contêm a escultura. Depois de pronta a primeira versão, releio muitas vezes para cortar os excessos, trocar palavras menos exatas por outras melhores, acrescentar algo que ficou de fora ou dizer o que foi dito de um jeito mais elaborado.

Desde o lançamento, qual o feedback mais interessante que já aferiu?

Tenho sido surpreendida por vários leitores, especialmente mulheres, que me contam que o livro os levou a iniciar a sua própria jornada pelas memórias. Algumas leitoras me contam que estão às voltas com um emaranhado de fios, entregues à decifração dos sentidos da menina que foram. Quem escreve espera que a sua escrita provoque um movimento interno no leitor, seja ele qual for. Fiquei contente com esses relatos em que o livro agiu como provocação para uma outra busca, que levará cada um a percursos imprevisíveis.

Você está escrevendo para o “El País”. Como tem sido esse trabalho?

Minha coluna quinzenal no “El País” é meu único compromisso fixo. Gosto bastante de escrevê-la, é um espaço onde tento tirar o leitor do seu lugar. Como, para fazer isso, preciso primeiro tirar a mim mesma do lugar, é um exercício que sempre me exige bastante. A novidade, no “El País”, é que a coluna é publicada no portal brasileiro em português, mas é traduzida também para o espanhol, nos portais América e Espanha. Essa outra língua tem me trazido também um outro universo de leitores, além dos brasileiros. É bastante interessante perceber como os temas que, à primeira vista, poderiam ser vistos como temas de interesse apenas do Brasil, ecoam fortemente em países como Colômbia, México e mesmo Espanha, porque, além de o mundo estar globalizado, há algo de universal que está sendo dito.

Você é, hoje, uma espécie de musa para os estudantes universitários de jornalismo...

Acho que musa é meio forte... Fico feliz com o reconhecimento de que tenho algo a dizer que vale a pena ser escutado. E acho que há várias questões fundamentais que precisam ser debatidas com profundidade nos cursos de jornalismo. Mas, infelizmente, hoje, tenho pouco tempo para ir às universidades. Minha prioridade é escrever, que é onde eu posso contribuir mais. E para escrever é preciso ficar dentro às vezes por bastante tempo. O que faço é aceitar alguns convites bem escolhidos, para palestras ou bate-papos, que tenham o potencial de reunir um número grande de estudantes, de diferentes universidades, como o congresso anual da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo). Sei que ali vou encontrar os estudantes mais interessados, das mais variadas geografias, aqueles que tiveram de fazer um movimento às vezes bem grande para estar ali. E por isso estão mesmo dispostos a escutar e a debater”.

Eliane Brum no “Sempre um Papo” – Nesta segunda, a partir das 19h30, na Sala Juvenal Dias do Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537, Centro). Entrada franca.  

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