Sebastião Salgado, da imagem premiada ao verbo sem filtros

Paulo Henrique Silva - Hoje em Dia
28/07/2014 às 07:31.
Atualizado em 18/11/2021 às 03:32
 (Samuel Costa)

(Samuel Costa)

Parar de fotografar? Não é algo que passa pela cabeça de Sebastião Salgado. Um dos maiores nomes da fotografia no mundo, esse mineiro de Aimorés acaba de completar 70 anos e parece longe de pôr um ponto final em seus cliques.

Certo mesmo é que a intensidade de seu trabalho, que o levava a ficar mais tempo fora do que em casa, como o projeto “Genesis”, em exposição no Palácio das Artes até 24 de agosto, ganhará um freio. “Talvez, com a minha idade, seja melhor ir um pouco mais devagar”, registra.

Envolvido com causas ecológicas, um de seus grandes projetos é sensibilizar o poder público para recuperar as nascentes do Rio Doce. E se diz otimista, ao observar que “boa parte dos políticos já tem consciência sobre o perigo que a gente está correndo”.

Ele também isenta a classe política de ser a única culpada por desvios de verbas nas obras para a Copa do Mundo. “O sistema está errado e é ele que o governo representa. Somos nós mesmos que temos que nos corrigir”, analisa, nessa entrevista ao Hoje em Dia.

O senhor já deixou claro que não realizará mais grandes viagens, como as que foram feitas para o projeto “Genesis”. Esse é o momento de voltar do “exílio” e se dedicar ao Instituto Terra, que tem como sede a cidade mineira de Aimorés, sua terra natal?
Na verdade, eu criei uma base de fotografia em Paris. Tudo está lá. E aqui no Brasil é a base do trabalho que a gente faz com ecologia. Por isso digo que não é mais um exílio. Talvez, quando eu ficar velho (risos), eu volte. Por enquanto, eu só tenho 70 anos (risos). Efetivamente, um projeto desse porte, como o “Genesis”, que me consumiu oito anos, eu acredito que não farei outro. Não só porque eu fiquei velho, mas também porque o suporte de financiamento não existe mais. Eu trabalhei com revistas em projetos como “Êxodos” e “Trabalhadores” e podia fazer um contrato de cinco anos. Com a crise dos impressos, isso mudou. Agora sou obrigado a me voltar para as fundações. Em “Genesis”, foram três.

E como está sendo a busca de financiamento para seu próximo trabalho?
Estou começando um projeto com os indígenas no Brasil e já fiz duas viagens. E quem financiou fui eu. A minha relação com os jornais é outra. Eu não vendo mais fotografias para eles. Eu dou, em troca de espaço, porque é um trabalho que eu quero que seja divulgado e que as pessoas estejam atentas a ele, especialmente à questão do território e da cultura indígenas. Como hoje eu sou um dos fotógrafos que mais vendem material para colecionadores no mundo, tenho uma base em que posso me autofinanciar. Mas eu não posso me autofinanciar ao nível de “Genesis”. Tenho que trabalhar numa escala menor. As verdades vão acontecendo em função do momento histórico de cada um. Talvez, com a minha idade, seja melhor ir um pouco mais devagar, condizente com o meu estado físico.

Nunca passou pela sua cabeça parar de fotografar?
Não vou parar de fotografar. É uma profissão que as pessoas trabalham até bastante velhas. Lembro que estava na agência Magnum e encontrei com a fotógrafa americana Eve Arnold, com suas botinhas, e preparando para ir à Índia, sozinha. Ela tinha 87 anos (Eve faleceu em 2012, com 100 anos). E não vou deixar de continuar a vir a Minas Gerais. O Instituto Terra tem um conselho diretor muito bom e forte. Demos (ele e a esposa Lélia Wanick) muito da gente no início, quando criamos, e hoje funciona bem. É um pedaço grande da vida da gente. É a mistura disso que será a minha vida.

O senhor mencionou a crise dos veículos impressos, nos quais publicou belos ensaios, principalmente em revistas como “Paris Match” (França), “New York Times Magazine” (Estados Unidos) e “The Guardian” (Inglaterra). Como vê a postagem de suas fotos na internet?
Hoje o “New York Times” tem mais leitores que assinam o online do que o jornal de papel. As coisas mudaram muito para a fotografia em função da evolução do digital. Antigamente, quando trabalhava nas agências Gamma e Magnum, a gente recebia grandes encomendas das revistas e ia passar dois, três meses na África, na guerra Irã–Iraque... Hoje não tem mais o envio do grande repórter fotográfico. Preferem trabalhar com o fotógrafo local, que acaba de fotografar e, cinco minutos depois, a foto dele já está nas redações. O digital mudou o status do fotógrafo tradicional. A relação é direta entre fotógrafo e jornal, não passando por agências, que praticamente acabaram. Antes, quando você pegava a foto no papel, ela tinha caráter físico, de memória. Agora só tem um caráter informativo. São imagens, não mais fotografias.

Como o senhor se sente ao ver a sua fotografia na tela de um computador?
Não vejo. Sinceramente, eu não sei editar na tela de um computador. Trabalho com câmeras digitais, mas meus assistentes fazem uma folha de contato para mim. Eu edito da mesma maneira que editava há 40 anos. Com a lupa, vou marcando as fotos. A partir do arquivo digital, eles produzem um negativo de 10x12cm, de altíssima qualidade, com o qual faço as cópias para minhas exposições. Em suma, não sei ligar um computador. Eu só sei mandar uma mensagem ou e-mail pelo meu celular. Felizmente, eu tenho oito, nove pessoas que trabalham comigo e fazem tudo nas máquinas e nos computadores. Os meus laboratoristas, por exemplos, eram laboratoristas tradicionais e falo com eles sobre contraste, de densidade. Não falo com eles em termos de curva e de sensação de nitidez. Falo se tem foco ou se não tem... São vocabulários e comportamentos ainda de uma outra época. Sou um dos poucos fotógrafos que ainda opera dessa forma.


O Instituto Terra, criado há 16 anos por você e Lélia, está se dedicando à recuperação das nascentes do Rio Doce, em Minas Gerais. Por envolver muito dinheiro (cerca de R$ 2,3 bilhões), esse projeto não depende apenas de seus cliques, mas principalmente das esferas governamentais. Essa relação de espera, de antessala, é frustrante para você?
Não é. Ela é dinâmica, interessante e muito forte. Ela não vai na velocidade que a gente quer porque é difícil você convencer a uma pessoa que está no poder político de que um projeto também será muito importante daqui a 30 anos. As pessoas que estão no Executivo brasileiro só ficam quatro anos no poder. Então, para eles pensarem algo além disso é muito difícil. Mas uma boa parte dos políticos já tem uma consciência. Sabe do perigo que a gente está correndo. Já tem uma fonte de informação muito melhor e especializada que o grande público. Hoje é mais fácil trabalhar com o poder público, que, aliás, é o maior aliado do Instituto Terra. Então, não é frustrante porque essa relação é evolutiva.


Na coletiva de inauguração da exposição “Genesis” em Belo Horizonte, o senhor deixou uma ponta de pessimismo no ar em relação a esse projeto ao dizer que preferimos comprar caças, cada um custando R$ 250 milhões, e que estaríamos “colocando um preguinho em nosso caixão” ao não atentarmos para a questão ambiental.
Eu só quis dar um exemplo, pois já falaram que nosso projeto é caro. E não é. A capacidade projetada para a geração de energia elétrica do Vale do Rio Doce, com todos os seus afluentes, é incrível. E não teremos se não tiver água, que está cada vez diminuindo mais. A necessidade de abastecimento de grandes cidades como Belo Horizonte será prejudicada. A água é a essência de nossa vida, fundamental para a sobrevivência, e se não trabalharmos para mudarmos esse quadro, logo não teremos acesso a ela. Pelas milhões de pessoas que moram no Vale do Rio Doce e pelos bilhões que seriam gerados na economia da região, o projeto é até barato. O exemplo que dei é verdadeiro: a pressão dos militares levou à compra de 30 caças bombardeiros. O preço de quatro deles já pagaria o nosso projeto. Com mais dois, nós recuperaríamos o (Vale do) Paraíba. Com mais sete ou oito, o (rio) São Francisco. Se nós temos dinheiro para comprar os caças, nós temos dinheiro para recuperar a nossa vida.


No filme “O Sal da Terra”, dirigido pelo renomado cineasta alemão Wim Wenders e por seu filho, Juliano Salgado, ainda inédito no Brasil, Minas Gerais ocupa um espaço especial ao contar a sua trajetória na fazenda Bulcão, de propriedade de seus pais e hoje sede do Instituto Terra. Qual foi a contribuição dessa vivência no interior mineiro para a sua fotografia?
Total. Na realidade, moro em Paris mas nunca saí de Aimorés. Foi lá que cresci, foi lá que eu me formei e foi lá que surgiu essa visão de fotógrafo, que tem muito do barroco mineiro. Eu vivi momentos maravilhosos e que nunca mais me deixarão. Isso é minha herança. Num evento qualquer, com dez fotógrafos, são dez fotografias diferentes. A minha intervenção vem daqui. Meu pai veio para Aimorés com tropas de burros carregando café e, ao passar pelo distrito de Conceição do Capim, gostou do lugar e comprou um pedaço de terra, montando uma padaria e se tornando fazendeiro. Eu convivi com essas histórias e é com elas que faço minhas fotografias. Nesse filme que você está falando, o início é passado lá, no lugar onde eu ia com meu pai e tinha essa visão das montanhas maravilhosas e das luzes incríveis de Minas.


Como o senhor analisa esse momento de forte contestação do povo nas ruas? Podemos esperar dele um engajamento semelhante em relação aos assuntos ligados ao meio ambiente?
Tem que contestar mesmo, porque as coisas foram se acumulando. Mas a gente só acusa o político de corrupto. E não são apenas os políticos. Nossa classe dominante é ladrona, corrupta mesmo. Quando você tem os desvios de dinheiro da Copa para a construção dos estádios, isso não é do governo. Foram feitos pelas empresas que construíram e corromperam o pequeno funcionário que assina os relatórios. É um sistema inteiro. Tenho uma casa em Vitória, no Espírito Santo, cidade que tem hoje o maior índice de desenvolvimento per capita do Brasil. Mas não tem aeroporto. O dinheiro para a construção foi roubado na terraplenagem e até hoje o governo está correndo atrás para saber quem roubou. Em Minas Gerais, nós temos uma universidade pública excelente, que deveria ser de todos, principalmente de quem não tem dinheiro para pagar. É da classe dominante que roubou o lugar dos outros, pagando cursinhos caríssimos para os filhos deles, que entram numa universidade que é paga por todos nós. Quem trabalha o dia inteiro no comércio tem que pagar mensalidade numa faculdade vagabunda, que o diploma não serve. O sistema está errado e é ele que o governo representa. Somos nós mesmos que temos que nos corrigir. Eu pediria para essas pessoas que contestam para se lembrar do tema da ecologia, que não está entrando (na pauta de reivindicações. O território indígena está correndo um perigo imenso com o agronegócio, que é a FIFA do Brasil. Que poder é esse, que não foi eleito e que exerce uma grande coerção principalmente na imprensa? O agronegócio é responsável por 3% do PIB brasileiro, mas a impressão é de que é de 50%. Hoje botaram um punhado de deputados e senadores no Congresso para representar o interesse deles.
 

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