Paixão que resiste ao tempo

Raquel Ramos - Hoje em Dia
23/04/2014 às 07:51.
Atualizado em 18/11/2021 às 02:15
 (Lucas Prates)

(Lucas Prates)

A curiosidade para descobrir a história escondida dentro de um manuscrito, as páginas com cores amareladas ou até mesmo o cheiro de mofo sentido ao folhear uma obra antiga. Há séculos, sensações únicas que só podem ser encontradas em um livro estão prestes a se revelar nas mãos de um leitor. Um encanto tão grande capaz de fazer simples encadernações resistirem à passagem do tempo e a avanços tecnológicos para se manterem, ainda hoje, como um dos objetos favoritos de muita gente.

O hábito de leitura pode até não ter se firmado entre grande parte dos brasileiros. Por outro lado, não faltam exemplos de que, na contramão da maioria, muitos encontram nessas obras um meio de vida, uma distração ou forma de prazer. No Dia Mundial do Livro, comemorado nesta quarta-feira (23), histórias mostram que vale a pena lutar pelo incentivo à leitura.

Para Lourenço Carrato Cocco, livros são o ganha-pão. Junto com o irmão, ele gere o negócio inaugurado em 1948 pelo pai: a Livraria Amadeu, que detém o título de sebo mais antigo de BH.

Mas não foi apenas pelo sustento que Lourenço escolheu passar os dias próximo às prateleiras empoeiradas. Mesmo com a opção de trabalhar como engenheiro, ele tomou gosto pelos livros e não quis mudar de ramo. Hoje, orgulha-se do extenso acervo – 40 mil livros – e das duas filiais abertas no passar dos anos.

Por trás dos negócios ele também encontra uma espécie de missão para a vida. “Não sou um mero vendedor de livro. Sou divulgador de cultura”.
 
Incentivo

Compartilhando desse mesmo ideal, brotam na capital mineira iniciativas para estimular o hábito de leitura entre a população. Borracharias, mercearias e “puxadinhos” em um centro de saúde são exemplos que, com boa vontade, se transformam em bibliotecas comunitárias.

No caso de Marcos Túlio Damascena, foi com apenas 70 obras e um projeto audacioso que, em 2002, ele fez do comércio do pai uma Borrachalioteca. Na época, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e Jorge Amado eram alguns dos autores que disputavam espaço nas prateleiras já ocupadas por pneus e ferramentas.

O projeto cresceu para outros pontos da cidade e até chegou a um presídio. “Tudo isso é muito importante para mim, que sempre acreditei no poder transformador da leitura”, afirma.

Ação de incentivo à leitura também é encontrada na Mercearia Porteirinha, na esquina das ruas Bonaparte e Coronel José Benjamin, no Padre Eustáquio, que abriga um espaço para empréstimo de livros.

A primeira estante está disponível para os clientes e interessados em pegar emprestada uma obra de literatura brasileira, estrangeira ou infanto-juvenil. Eles mesmos anotam num caderno qual livro estão levando pra casa. A Mercearioteca, que convive com ovos, legumes, grãos, bebidas e outros produtos, recebe doações e planeja crescer. “Antes mesmo de estar organizada, a biblioteca já estava emprestando. Um cliente leu três livros do Jorge Amado em duas semanas”, conta Daniel Rocha, sócio da mercearia.

No Barreiro, iniciativa semelhante. Depois de trabalhar por três décadas em um posto de saúde do bairro Tirol, mas ser impedida de se dedicar ao serviço por causa de um aneurisma, a ex-técnica em enfermagem Terezinha Rocha Vieira, de 67 anos, ocupou um prédio anexo para, há cinco anos, realizar um sonho: construir uma biblioteca.

“Desde criança eu gostava de emprestar livros para minhas amigas. Mesmo que elas nunca devolvessem, eu gostava daquela sensação. Hoje, não são apenas os pacientes que pegam livros. A biblioteca virou referência para toda a comunidade”.

Além das paredes de uma biblioteca convencional

Considerada uma espécie de habitat dos livros, as bibliotecas não são o único local onde os exemplares devem ficar. Basta criatividade para que qualquer espaço se torne confortável para uma boa leitura.

Que o diga Estela Cruz Mel que, há um ano, fez da praça Duque de Caixas, no bairro Santa Tereza (Leste de BH), um refúgio para os leitores. Por meio do projeto Santa Leitura, ela deixa centenas de obras à disposição da comunidade em dois domingos de cada mês.

Para participar, tem que estar disposto a sentar debaixo da sombra de uma árvore para desfrutar desse momento e devolver o livro no fim da manhã. Inusitada, a proposta faz sucesso. Para se ter ideia, cerca de 500 pessoas estiveram presentes na última reunião na praça.

Em Ubá (Zona da Mata), foram as geladeiras velhas que se transformaram em abrigos para livros. Espalhadas em cinco endereços, guardam obras que podem ser levadas para casa de qualquer um e depois, caso queira, devolvidas.

“Em cada uma deixamos de 150 a 200 exemplares. Acredito que o objetivo de estimular a leitura foi cumprido. A principal prova está no envolvimento da população que, por conta própria, abastecem as geladeiras com novos livros”, conta Andréa Dias de Oliveira Paula, coordenadora do projeto.

Em Pará de Minas (região Central) nem é preciso de um lugar fixo para colocar um exemplar. A regra do projeto Esqueça um Livro é incentivar a população a deixar uma obra em qualquer lugar para que mais pessoas tenham acesso à literatura.

Com carinho, obras antigas são restauradas

Pode até ser que, na teoria, os livros não passem de um amontoado de páginas ou uma mera coleção de folhas. Na prática, porém, esses objetos carregam um valor impossível de ser compreendido apenas com termos técnicos. São considerados janelas para o mundo, máquinas do tempo ou guardiões de lembranças.

Antônio Eustáquio Pereira dos Santos está acostumado com as pessoas para quem um livro é muito mais do que um livro. Tanto que não economizam na hora de reformar um exemplar.

Proprietário há quase 30 anos do Pronto-Socorro do Livro, ele já teve o prazer de “devolver à vida” obras-primas que pareciam irrecuperáveis. “Tem vez que conversamos com o cliente, incentivando a comprar um exemplar novo em vez de pagar pela restauração. Não adianta. O livro carrega uma certa mágica. O que interessa não é o texto que nele está, mas o próprio objeto e todo significado que ele tem”.

Tanto sentimento envolvido exige de Antônio ainda mais dedicação. Para cada livro, aplica uma técnica diferente que exige um trabalho minucioso. “Não é para deixar parecendo novo. Tem que ter ‘cara’ de velho. A aparência antiga tem um certo fascínio”.

Orgulhoso da profissão que foi incentivada pelo pai, Antônio é um defensor veemente de que, nem a internet ou qualquer outra tecnologia futura, serão capazes de roubar o espaço dos livros. “Um não substitui o outro. Todos vão conviver juntos”.

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