Casos recentes de intolerância religiosa levam brasileiro à reflexão

Patrícia Santos Dumont - Hoje em Dia
28/06/2015 às 09:02.
Atualizado em 17/11/2021 às 00:40
 (ERBS Jr. / Frame / Frame / Estadão Conteúdo)

(ERBS Jr. / Frame / Frame / Estadão Conteúdo)

O mês de junho foi marcado por atos de extremismo religioso no Brasil, incitando o debate sobre a intolerância, justamente num país tradicionalmente conhecido pelo sincretismo. Santos de igrejas católicas quebrados, adeptos do candomblé e do umbandismo hostilizados e o túmulo de Chico Xavier, maior expoente do espiritismo, alvo de vandalismo. Casos que nos fazem perguntar se rumamos para uma guerra santa.

Um futuro aparentemente extremado, mas possível, segundo análise de estudiosos ouvidos pelo Hoje em Dia. As reflexões partem de raciocínios contrastantes, mas que convergem para a existência de um clima de intolerância generalizada, atribuído à mudança recente do perfil religioso do brasileiro.

Estado x obscurantismo

Para o professor do Departamento de Ciências da Religião na PUC Minas, pós-doutor em filosofia, Flávio Senra, o acirramento da intolerância religiosa está relacionado a uma crise cultural, vivenciada no mundo inteiro, mas sobretudo nos países ocidentais. Embora a pluralidade de opiniões, credos e posições seja positiva do ponto de vista das possibilidades, por outro, afirma, é crucial para dar força a manifestações de insatisfação, sejam pessoais, sejam coletivas.
“Entendo que isso esteja na base dos movimentos radicais, intolerantes, que tentam fazer com que as demais pessoas aceitem suas próprias posições, individuais ou de grupos, sem se dispor ao diálogo”, explica.

Senra defende um processo de reeducação, baseado na conversa, principalmente por parte do Estado, que, apesar de laico, não deve se ausentar da responsabilidade de intermediar. “Precisamos cobrar uma posição firme das instituições mais representativas, no sentido de um chamamento, um alerta para mostrar que esse caminho nos levará a um obscurantismo dos mais terríveis”.

Olho nos Neopentecostais
Embora sejam mais fortemente difundidas nas redes sociais, atitudes de intolerância quanto a correntes religiosas vêm sendo disseminadas com frequência no contato face a face. Para a antropóloga Sônia Maria Giacomini, professora e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Rio, os recentes atos de violência e desrespeito à religião alheia ganham força com a crescente diversidade de crenças. “O Censo 2010, do IBGE, mostra um decréscimo relativo da religião católica no Brasil e um aumento muito forte e intenso, nos últimos dez anos, dos neopentecostais. Isso altera um pouco o quadro religioso, colocando em cena um segmento que tem muita visibilidade, por trabalhar com a questão da retórica, com a oratória e o convencimento do outro”, diz.

Para assegurar a igualdade de direitos em todos os campos, é importante, segundo ela, que o Estado seja igualmente equidistante de todas as religiões. “O princípio que está na Constituição é o da isonomia. É uma boa lógica para se pensar, também, a questão religiosa”.

Perseguição histórica, revanche tardia
Herança histórica, solidificação da Igreja Católica e surgimento de seitas pouco consolidadas ideologicamente explicariam, na avaliação do professor de ética e política da Unicamp, Roberto Romano da Silva, pós-doutor em filosofia, os fenômenos recentes. Para ele, a histórica dominação do catolicismo e o impedimento da presença de outras religiões são o estopim para atitudes extremadas. “Existe uma longa história de exclusão e de calúnia por parte do catolicismo contra o protestantismo, sobretudo. Em função disso, o que vemos hoje pode ser interpretado como uma espécie de revanche tardia”, analisa. Falta, no entanto, segundo ele, maturidade ideológica para compreender as diferenças e entender que não se pode tomar atitudes baseadas em percepções pessoais. “Muitos valores cristãos são superestimados em certas seitas e há uma leitura apressada e superficial do Antigo Testamento”, critica.

Indisposição para aceitar a diversidade
O enfrentamento das ações intolerantes deveria passar pela requalificação dos agentes do Estado, na avaliação do teólogo e sociólogo Clemir Fernandes, do Instituto de Estudos da Religião (Iser), no Rio de Janeiro. Segundo ele, agentes mais bem preparados poderiam lidar melhor com as questões que se relacionam aos conflitos religiosos. “Do ponto de vista do estado de direito, a estrutura funciona, mas os agentes devem ser requalificados para perceber as distinções entre as diversas formas de manifestação de intolerância. Para saber tipificá-las como crime sempre que necessário”, explica. Para o pesquisador, intolerância vem da pré-disposição ao preconceito, a não reconhecer e aceitar a diversidade. “Porque o diferente sempre assusta ao que é suposto padrão estabelecido historicamente, causa mal estar e insegurança nos que temem a mudança de cenário”, avalia Fernandes.

Ódio às crenças africanas
Pensar no crescimento do número de seguidores de outras religiões, em decorrência da diminuição dos adeptos do catolicismo, é, na opinião do professor Ivanir dos Santos, interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), no Rio de Janeiro, simplista demais para explicar os fatos recentes de intolerância religiosa no Brasil. Para ele, houve nos últimos 30 anos uma repressão muito grande contra as religiões de matriz africana, sobretudo pelos neopentecostais (a exemplo dos fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus).

“O que tem acontecido é que um segmento tem feito uma má leitura do Antigo Testamento. E todo ódio e racismo que é destilado em torno da matriz africana tem vindo a público agora com gestos extremados e agressivos. No Brasil, a intolerância contra a matriz africana vem de anos, foram as primeiras a serem perseguidas, desde o início”, afirma.

Entrevistas

Qual a sua opinião sobre as recentes manifestações de intolerância religiosa no Brasil e a que atribui atitudes tão extremadas?
São manifestações que de algum modo estão em consonância com uma endemia da violência. Em um mundo em que há cada vez mais esfacelamento da identidade, as pessoas buscam, com ânsia, um sentido para sua existência e, nessa tentativa, caem no extremismo e no hedonismo. Há uma dificuldade de relacionar-se no convívio social e, portanto, falta diálogo. Há uma crescente tentativa de destruição do outro, e a intolerância dificulta enxergar o problema.

Qual seria a saída para conter esse atos violentos?
De forma específica, a igreja cumpre o papel de reeducação complementar, de incutir convicções associadas à relação com Deus e, ao mesmo tempo, orientar a sociedade na perspectiva da fé e do respeito ao outro.

*Padre Nivaldo Magela de Almeida Rodrigues – vice-chanceler da Arquidiocese de Belo Horizonte

Qual a sua opinião sobre as recentes manifestações de intolerância religiosa no Brasil e a que atribui atitudes tão extremadas?
Uma das grandes vitórias do Brasil é a liberdade religiosa, a pessoa pode ser o que deseja ser. O errado é agredir alguém física e moralmente em nome de Deus, pois são coisas que nem Deus autoriza. A igreja evangélica é conhecida como amorosa, mas Jesus Cristo foi crucificado exatamente porque falava a verdade e isso não significa concordar com tudo.

Na sua avaliação, qual é a saída para conter essas ações?
As pessoas precisam se respeitar e cada um procurar saber a vontade de Deus para a própria vida e não intrometer na vida alheia. E pregar o evangelho, pregar o amor, a palavra de Deus, e não pedra, zombaria, humilhações ou perseguições.

* Pastor Jorge Linhares – presidente do Conselho de Pastores de Minas Gerais (Cepemg)

Qual a sua opinião sobre as recentes manifestações de intolerância religiosa e a que atribui atitudes tão extremadas?
Isso não deveria surpreender a ninguém, e quem está surpreso está mal informado há pelo menos 20 anos. Tudo isso é uma tragédia anunciada desde o crescimento do número de evangélicos, que têm um discurso de dominação, de superioridade. Era de se esperar que isso seria resultado da política que eles vêm pregando, era uma questão de tempo. O extremismo é o coração do judaísmo, do cristianismo e do islamismo. Exatamente por isso, os fundamentalistas são extremos, porque voltam aos fundamentos da religião.

Na sua avaliação, qual é a saída para conter essas ações?
Esse trem já saiu da estação. Tarde demais. Não vai parar tão cedo. De resto, oferecendo educação de qualidade, sem religião, e o Estado se mantendo laico, o que não acontece.
* Daniel Sottomaior – presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea)

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