Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Aprendendo com os erros, revendo conceitos!

Publicado em 29/03/2024 às 06:00.

Duas professoras me falaram que a faculdade onde lecionávamos estava com um convênio firmado com algumas universidades estrangeiras para a oferta de cursos de mestrado e doutorado para docentes, num programa internacional de formação dos professores. A próxima turma para o doutorado seria nas férias de janeiro de 2006 e as minhas duas amigas já tinham feito as suas inscrições.

Eu não pensei duas vezes e já comecei a levantar a documentação para poder entrar no doutorado, aproveitando a companhia de pessoas conhecidas, num país só visto pelas mídias. O destino era uma universidade na cidade de Matanzas, em Cuba, num acordo de cooperação entre instituições de ensino superior para professores que desejassem seguir a linha de pesquisa na área da Pedagogia. 

A chegada à ilha já foi tensa, com uma revista de material, mala, corpo, sendo que passamos por várias barreiras dentro do aeroporto. Aprovados no país e já fora do aeroporto, aquele cenário de filmes era agora a realidade que estava diante dos meus olhos. Muitos carros antigos, de modelos que eu desconhecia. Uma arquitetura linda, mas em grande parte degradada. Ônibus e carros bem velhos, que serviam de transporte para moradores e visitantes. Os carros eram usados sob concessão do Estado e, por isso, não tinham donos a não ser o governo.

Entramos numa van e partimos para a cidade de Matanzas, que fica cerca de duas horas da capital, onde passaríamos os próximos 30 dias estudando, pesquisando e elaborando o projeto do doutorado. No hotel encontramos outros brasileiros vindos de vários estados. No quarto, o funcionário do hotel me entregou um kit de higiene, que seria renovado a cada semana. Conversando com aquele jovem de 27 anos, que já possuía três graduações, não atuando em nenhuma delas por falta de mercado,  fiquei sabendo que não éramos considerados turistas e nem residentes, mas estudantes e que nossos professores orientadores costumavam ir até o hotel no fim de semana para dar continuidade ao que fariam na universidade: acompanhar o nosso desenvolvimento escolar. A única observação é que residentes não entram nos hotéis, a não ser a trabalho, por isso o orientador ficaria do lado externo me aguardando.

Os nossos dias eram compostos de estudo de manhã e à tarde, numa universidade que recebia gente de todos os lugares e era uma Babel. Um jovem africano conversava comigo em português, mas falava francês e inglês perfeitamente. Lembro com clareza da universidade: professores extremamente dedicados, estrutura física ampla, mas sem nenhum investimento nas salas de aula e nos espaços comuns. Saíamos antes do anoitecer, pois a escola não era iluminada e, por isso, não funcionava à noite. Bibliotecas antigas, banheiros destruídos pelo tempo, mas era sempre lotada de estudantes.

Quando recebi meu orientador no fim de semana, na entrada do hotel, sentado comigo numa escadaria, vi tanta vontade e conhecimento. Ele tinha três pós-doutorados, todos feitos fora do país. Articulava uma rede de marketing de cidades e me convidou para ser o ponto focal no Brasil. Isso porque, incomodado em fazer o curso de Pedagogia, andei de departamento em departamento até ser aceito pelo pessoal da Engenharia Industrial e ter um orientador da área de Administração. 

Era uma prática bem comum os professores nos convidarem para uma refeição em sua casa. Aceitei e vi de perto o tanto que aquelas pessoas tinham limitações de recursos, numa casa simples, comida regrada, mas numa afetividade e simpatia sem igual. Lá, para eles, tudo é caro: papel higiênico, desodorante, shampoo, creme dental.

No dia da apresentação do meu projeto de pré-defesa, pós-doutores do departamento que eu era vinculado compunham a mesa. Eu estava tenso e a banca demorava a ter início, pois esperavam uns convidados chegarem. Depois de uns quinze minutos, umas 20 pessoas, entre homens e mulheres, tomaram assento na sala. Reparei que alguns deles tinham suas calças bem puídas, algumas pareciam sujas pelo uso contínuo. Eu não sabia quem eram aquelas pessoas, por isso não me intimidei: apresentei com fluidez a minha proposta de pesquisa. Ao agradecer e abrir para as perguntas, um dos convidados levanta a mão e pede a palavra. Era um daqueles que estava com uma camisa mais velha e calça surrada. Eu acreditava que era um servidor administrativo da universidade que eles tinham capturado para compor a sala e, assim, cumprirem os rituais da apresentação.

Aquele homem derrubou todos os pensamentos que eu formulei, dando caminhos diferentes, alguns já apontados pelo meu orientador e que eu relutei em trocar. A cada crítica daquele homem, um caminho novo se desenhava para mim. Ele foi gentil, sem deixar de ser honesto naquilo que acreditava. 

Mas, como pode um servidor, que nem na mesa da banca está, saber tanto? Quem era aquele homem que eu avaliei com um preconceito velado? Era o decano de um outro departamento, convidado a participar como comentarista, como todos os outros homens e mulheres, doutores e doutoras que estavam sentados na sala me ouvindo, no propósito único de me ajudar a construir uma linha de pesquisa impecável.  Uma banca que me deu uma lição para a vida.

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