Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

‘Eu só preciso de paz’, disse o homem sem esperança

Publicado em 19/01/2024 às 06:00.

Toda vez que chego numa rodoviária, geralmente é para uma viagem a trabalho, pois percorro muitas cidades e alguns estados de ônibus. Mas, para muita gente, rodoviária é lugar de encontros, de quem chega dissipando a saudade e de despedidas, numa viagem que torna o reencontro indefinido.

Famílias choram na entrada do ônibus, fazem corações com as mãos para quem toma assento, se juntam em beijos e falas, indecifráveis, já que as janelas, diferentemente de como eram no passado, não mais abrem para aquelas palavras últimas, cara a cara. Agora, só a frieza das tecnologias que vai aplacar um pouco desta dor sem abraços.

Neste dia embarquei na rodoviário do Tietê, naquele mar de gente, em um ônibus que passaria por Belo Horizonte e seguiria para a cidade de Sobral, no Ceará, submetendo aquelas pessoas a uma viagem com duração prevista de 59 horas e 52 minutos, mas que se prolonga por mais 4 a 5 horas além do anunciado pela empresa.

Alguns ônibus desses que já peguei e que seguiriam viagem até o nordeste são, no mínimo, desrespeitosos. Não têm água, algumas poltronas têm defeitos, os apoiadores de pé e pernas quebrados, tecidos das poltronas e do teto sujos, sem dispositivo para a recarga do celular. A maioria dos motoristas, que conduz o veículo até a cidade mineira de Perdões ou a Belo Horizonte, é bem gentil e falante.

Os passageiros vão se conhecendo, puxando assunto, principalmente aqueles que ficarão sessenta horas juntos, sempre têm muito o que falar. Uns ajudam aos outros em algumas das necessidades básicas, como olhar os meninos para a mãe ir ao banheiro, oferecer um agasalho ou manta para uma criança que não imaginava um ar-condicionado tão frio ou aqueles lá do fundo, que reclamam do calor, já que a últimas poltronas parecem ter sido instaladas dentro de uma “caldeira”, como me disse um senhor, usando da metáfora para expressar o quanto a gente suava.

Na segunda parada, o ônibus vai para um ponto de apoio na cidade de Perdões. É um restaurante imenso, que um dia pode ter sido bonito, mas que hoje parece uma lanchonete abandonada, que de legal só tem um painel de fotos da cidade e algumas tomadas, e que recebe os veículos desta empresa para a troca de motoristas e uma parada de lanche ou almoço. As coisas são caras e não têm qualidade, mas não são tão caras quanto aquela rede de serviços famosa, distribuída pelas rodovias do sudeste e sul do país, com preço salgado, mas alimentos bons.

Eram 15 horas quando o nosso ônibus fez a parada. Muita gente desce para “esticar as pernas” ou usar o banheiro de fora, que todos torcem para que tenha um odor menos desagradável do que o de dentro do veículo. Eu estava lendo, parei um pouco para observar o fluxo daquele restaurante fantasma.


Um passageiro, que estava no meu ônibus, acende um cigarro na beirada daquelas vagas do estacionamento, onde os ônibus se encaixam para que os passageiros desçam. Algumas tragadas depois, vem um homem em sua direção, carregando um saco de linhagem branco, com algo até a metade; uma mochila abarrotada, toda encardida; camisa vermelha, bermuda jeans, boné e chinelos.

Conversaram alguma coisa e o passageiro deu mais uma tragada e entregou o meio cigarro para o homem. Ele se senta ali naquela vaga do estacionamento, que estava ladeada por dois ônibus da mesma empresa, puxa a fumaça, solta, junta as mãos e abaixa a cabeça. Ele era o retrato da derrota.

Um cachorro chega por trás, cheira sua mochila e desiste. Nas cadeiras coletivas de madeira que estavam atrás daquele homem, outras pessoas fumavam. Uma mulher se encanta com o cãozinho, sobe até o ônibus e desce com uma marmita, cheia de divisões, e muita comida ainda. O cachorro, que pareceu bem seletivo, deve ser bem alimentado por muita gente que por ali passa o dia todo. Ele cheira o presente e se ausenta, para o desgosto da mulher.


O homem parecia sem forças para puxar a fumaça. A cena era tão comovente, que o passageiro voltou segundos depois, tirou de uma sacola uma embalagem de suco, já aberta e parecendo leve, ofereceu para o homem, que aceitou e agradeceu, sem sorrisos e nem delongas. O passageiro queria perguntar, mas vi que não teve coragem. Um motorista da empresa passa e entrega uma latinha de refrigerante, daquelas que eles ganham nas paradas. O homem aceita, segura, deixa a cabeça e o tronco cair sobre as pernas e fica ali, inerte. Ele não estava embriagado, não pediu dinheiro e nem passagem para ninguém. Apenas pediu um cigarro.

Próximo à nossa partida, olhei da janela para ele e acenei a cabeça, no que ele me retribuiu, sem muita força e com desconfiança. Sacou uma blusa de frio da mochila, que era, na verdade, uma sacolinha de alças, se manteve ali por alguns minutos, até que um ônibus o forçou a sair do lugar onde derretia sua existência. Perguntei ao passageiro se o homem estava bem e ele respondeu o que o homem tinha dito: “eu só preciso de paz”.

Num lugar de encontros e despedidas, espero que para aquele rapaz, a paz seja quem chega e não quem vai.

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