Eu não tenho o hábito de comprar presentes de Natal e isso já liberava boa parte da minha tarde daquele 24 de dezembro, em que tantas coisas têm que ser providenciadas por um grupo de pessoas que há quatro anos passa parte da noite deste significativo dia com pessoas em situação de rua num albergue de Belo Horizonte.
A hora combinada com a minha carona já se aproximava e eu ainda tinha que empacotar as garrafinhas (squeezes) e as caixinhas de chocolate que entregaríamos numa casa para famílias acolhidas lá na Pampulha. Juntei as doações, embalei o que pude e o restante fiz no carro, pois às 18 horas tínhamos que estar dentro da cozinha do albergue, fazendo a entrega do jantar para aquelas 200 pessoas em situação de rua com quem passaríamos a véspera de Natal.
Ao chegar no abrigo na Pampulha, bati a campainha e uma funcionária veio atender, acompanhada de algumas crianças. Desci com as sacolas de doações, que além dos presentinhos individuais, tinha muita fralda e roupas infantis, cadernos e outras coisinhas mais. Uma das crianças já se ofereceu para ajudar, no que as outras duas também já disparam em nossa direção. Não pude entrar, uma vez que o horário do jantar da outra ação se aproximava. Dei tchau pelo carro e os três rostinhos, apoiados ou pressionados ao vidro do parapeito, perdiam o sorriso da chegada, pela rapidez daquela nossa visita.
Nesse evento que fazemos todos os anos, três instituições/movimentos sociais se unem: Comida que Abraça, Grupo de Adoção de Santa Luzia – Gada e o Tio Flávio Cultural, que neste ano contou com o reforço de músicos mineiros, que fizeram um show em benefício desta ação, orquestrados pelo pessoal do “Oi de gato”. A Renata Fortunato sempre fica na responsabilidade de chegar cedo para enfeitar a entrada do albergue, os corredores que levam ao salão do jantar e a área de trás, onde os voluntários do Gada se organizam em dois pontos de entregas: do kit de higiene pessoal e do saquinho com doces e outras guloseimas.
É também da responsabilidade do Gada o show da noite, que apresenta músicas de Raul Seixas, sempre pedido por muitos, a clássicos da MPB e do repertório internacional. E os nossos fotógrafos são instruídos para registrarem sempre os detalhes, não tirando fotos de rosto e nem deixando que as máquinas venham a inibir ou causar constrangimentos aos donos da festa, afinal, nós ali éramos os convidados.
As janelinhas da cozinha se abrem. Uma maior, que não dá para ver os rostos das pessoas, só parte do tronco e as mãos, a menos que ambos se abaixem dos dois lados. Vou perguntando se era um prato pequeno, médio ou grande, no que eles respondem e eu vou selecionando o mais adequado para cada gosto, enquanto atrás de mim quatro voluntários estão montando as refeições e trazendo até onde estou. Ao meu lado, alguém vai colocando os refrigerantes nos copos e na janelinha menor, ao passo que cada um devolve o prato e a colher sujos, uma pessoa entrega a sobremesa e outra já vai lavando os itens usados. Uma sincronia incrível.
Às 20 horas, a maioria já tinha jantado, repetido, recebido o sorvete de sobremesa, doado pela sorveteria Sol e Neve do Jaraguá, e estava no salão pulando ao som da banda, conversando na área de trás ou deitado.
A equipe da cozinha, agora liberada, vai para o salão aproveitar a festa e aí é um novo momento, uma nova etapa se inicia, quando a gente conseguia interagir olhando nos olhos, ouvindo as histórias, cantando e dançando juntos. Vi aquela senhora cega, que havia chegado com um outro assistido ajudando-a; o rapaz que pediu, ainda pela janela, um abraço e o recebeu no salão; as pessoas com deficiência sentadas ao lado dos seus apoios de locomoção.
Desmontada a estrutura, muitos vêm oferecer ajuda para carregar as caixas de som. Ao caminharmos em direção ao estacionamento, só ouvíamos “muito obrigado”, “voltem mais vezes”, “bom Natal pra vocês e pras suas famílias” e coisas do tipo. Cada um daqueles voluntários voltaria para casa, sei lá se para jantar, ficar sozinho, encontrar a família, chorar suas dores ou celebrar suas alegrias. Mas não há como voltar igual, pois a alegria daquele encontro não nos torna iguais, mas nos lembra que somos únicos. Somos, todos, uma história em movimento.