A cozinha afetiva é a alma do DNA mineiro

Ricardo Rodrigues (*)
15/11/2019 às 06:00.
Atualizado em 05/09/2021 às 22:42
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Quem nunca, ao experimentar um prato, foi imediatamente transportado para a infância já na primeira garfada? Esses momentos nostálgicos têm nome: Comfort Food (cozinha afetiva). 

Em Minas Gerais, particularmente, não consigo ver a culinária sob outra perspectiva. Nossa árvore “gastrogene-alógica” (perdoem-me pelo jargão) é estruturada, em grande parte, pela transmissão de conhecimento entre as gerações: os avós ensinam para os filhos os sabores de uma bom prato que, por sua vez, são eternizados pelos netos. Nosso cozinhar é artesanal. Vem dos fogões a lenha da roça, das fazendas do interior. Essa é nossa identidade, repleta de sabores que não são encontrados em qualquer lugar e tampouco conseguem ser reproduzidos em massa, pois são singelos e únicos.

E engana-se quem acha que a cozinha afetiva é inerente somente aquilo que aprendemos com nossos pais e antepassados. A preservação da história e dos sabores dos restaurantes com esse know-how depende muito mais de seus ‘guardiões’, que não necessariamente precisam ter parentesco sanguíneo. A terceira geração de administradoras do Tip Top (bar mais antigo de Belo Horizonte, fundado em 1929), por exemplo, é formada por duas mulheres, mas não da mesma família. A pertencente à segunda geração também não tinha vínculo familiar com a primeira proprietária. Todas, independentemente da época, sempre se preocuparam em manter as tradições da casa, entre elas pratos que estão no cardápio desde a inauguração do estabelecimento, há exatos 90 anos.

Outros bares da nossa cena gastronômica, como a Cantina do Lucas, no Maleta; o Bolão e o Bar do Orlando, em Santa Tereza; além dos Cafés Nice e Palhares, no Centro; e, obviamente, o Maria das Tranças, do qual faço parte da terceira geração de sócios, mais que venderem produtos, encantam pela história: seja por suas receitas inalteradas há décadas, pela arquitetura e, claro, pelos antigos clientes, verdadeiros acervos vivos de momentos interessantes da nossa cidade. Todos esses fatores, quando interligados, tornam-se o tempero especial para a cozinha de afeto da qual, acredito, nunca deveremos nos desvencilhar.

Mesmo que esses bares sejam antigos, sempre há espaço, também, para os recém-chegados, como é o caso do restaurante Roça Grande, inaugurado a apenas dois anos, no c entro de BH. O local resgata receitas, técnicas e sabores da infância da chef Mariana Gontijo, vivida na pequena cidade de Moema, região Centro-Oeste de Minas Gerais, além de valorizar os pequenos produtores locais.

Esses estabelecimentos aqui citados são, sem dúvida, parte importante de nossa memória social. São a prova do valor da cozinha afetiva para a nossa identidade cultural e, sobretudo, fazem valer a célebre frase do escritor moçambicano Mia Couto, de que ‘cozinhar é um modo de amar os outros’.

(*) Presidente da Abrasel/MG e coordenador da Frente da Gastronomia Mineira

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