Ruy Guerra mantém o pique, relembra "Os Cafajestes" e fala sobre seu trabalho

Paulo Henrique Silva - Do Hoje em Dia
05/11/2012 às 12:00.
Atualizado em 21/11/2021 às 17:53
 (Arquivo Hoje em Dia)

(Arquivo Hoje em Dia)

SÃO PAULO – Ruy Guerra ficou encantado quando ligou a TV e viu a cena de um filme em que o protagonista assobiava atrás de uma mulher. O octogenário diretor moçambicano, radicado no Brasil desde 1958, comentou com um amigo sobre a composição da sequência. "Você está brincando comigo? Essa cena é inspirada em 'Os Cafajestes'", retrucou o outro.

"O que aconteceu foi uma espécie de déjà vu. Tinha me esquecido. Foi assim que descobri que ainda gostava do meu filme", registra Guerra, ao falar de seu primeiro longa, que completa meia década. Com Daniel Filho e Jece Valadão no elenco, "Os Cafajestes" traz o primeiro nu frontal do cinema brasileiro, o de Norma Bengell.

Sob "tortura"
 
O cineasta, que tem outros filmes marcantes de nossa cinematografia, como "Os Fuzis" (1964) e "Os Deuses e os Mortos" (1970), está na Livraria Cultura para gravar depoimentos para o programa "Os Filmes da Minha Vida", da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Quando vê o aparato a seu redor, brinca que está se sentindo numa câmera de tortura.

"Imaginei que era uma conversa, mas estou vendo que será uma sessão psicanalítica", observa, forçando a visão para enxergar as pessoas na plateia, devido à iluminação que incide sobre ele. Com óculos escuros e o inseparável charuto, o diretor não põe "Os Cafajestes" entre os "filmes de sua vida", embora goste de seu "tempo alargado e da saturação dos planos".

Hermético

Fã do cinema japonês, Guerra diz sonhar com o dia em que, ao estilo de Akira Kurosawa, fará um filme em que apenas registrará um homem pensando à beira do rio, sob uma árvore. "Sem diálogos, flashbacks ou cor. Estou caminhando para isso, antes de virar escritor", diverte-se, referindo-se ao fato de seus últimos trabalhos serem cada vez mais herméticos.

Destaca que, jovem, sua vocação inicial era ser escritor. "Fui adiando, talvez porque não fosse para ser escritor. Nada me impediu, eu que impedi", pondera. E cita o caso de um cubano que escreveu seu romance na prisão com o próprio sangue. "Ele tinha uma necessidade real de escrever, o que eu não tinha".

Definindo-se como um obsessivo-compulsivo, Guerra confessa que, entre seus medos, está o da morte. "Me assustava muito, porque a morte é definitiva para mim, já que não tenho convicções religiosas. E me assustava não saber o que aconteceria depois no mundo. Mas resolvi essa angústia de maneira simples: decidindo quando irei morrer".

Hoje com 81 anos, Guerra "determinou" que precisaria de mais duas décadas para encerrar a fase cinematográfica. Chegou a um número: 100 anos. "Aí começaria a escrever, precisando de mais 15 anos. É risível, mas me convenci disso", avisa o diretor, que não pega uma gripe "há anos".

"A racionalidade é um caminho perigoso, pois apara arestas, limita"

Quem aventou a possibilidade de "morrer com data marcada" foi o ator Lima Duarte, quando relatou uma experiência com Manoel de Oliveira, em "Palavra e Utopia" (2000). "Na época, ele estava com 92 anos e dispensou o produtor, por desconfiar que estava lhe roubando. Afinal, tenho que pensar no meu futuro", teria dito. "Achei engraçado, mas hoje ele tem 104 anos. Ou seja, tinha razão".

Ruy Guerra guardou na memória uma das primeiras cenas que viu em sua vida, quando garoto. "Era uma história cômica, sobre um homem que, num restaurante, sentou-se ao lado de um rico e que só pedia coisas caras, enquanto ele ficou com o mais barato. Mas, por baixo da mesa, escondido, pegava a comida do outro. Só descobri que era o Buster Keaton mais tarde. Ele sempre foi um dos meus diretores preferidos e fiquei orgulhoso dessa coincidência".

Guerra considera Keaton um dos gênios do cinema, mas descarta influências. "Não tenho nada de Keaton em meus filmes, mas, pessoalmente, posso dizer que tenho. Nunca gostei de Chaplin; nossos santos não cruzam. Reconheço o talento, mas o personagem Carlitos me irrita. É falso".

Delírio

Ao falar de sua vida e de seu cinema, Guerra alerta que não é "muito cronológico", porque, do contrário, teria que se valer de "um lado racional que não gosta de usar".

Para ele, "a racionalidade é um caminho perigoso, pois limita, apara as arestas, é repressiva e procura encontrar caminhos comuns, enquanto o delírio é aberto, mais rico". E avisa: não sabe separar o imaginário do cotidiano.

Dentro desse delírio, foi capaz de personificar o escritor colombiano Gabriel García Márquez. "Faltavam três semanas para as filmagens de ‘A Bela Palomera’ e o Gabo não tinha enviado os diálogos. No telefone, disse que tínhamos três soluções: a primeira era eu mesmo escrever; a segunda, entregar a outra pessoa; e a terceira, viajar para a Colômbia, para escrever junto com ele".

Márquez só não imaginava que Guerra iria vencer seu pavor de avião, afirmando depois que o diretor tinha virado "um homem perigoso". Os diálogos ficaram prontos em quatro dias.

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