Adeus necessário: ter a chance de se despedir do filho que partiu permite enfrentar o luto

Patrícia Santos Dumont
pdumont@hojeemdia.com.br
22/06/2018 às 12:31.
Atualizado em 10/11/2021 às 00:55
 (Paula Beltrão/Divulgação)

(Paula Beltrão/Divulgação)

Tabu inclusive entre médicos, a perda gestacional vem sendo encarada, aos poucos, de forma mais humanizada por eles e menos traumática pelos pais da criança que partiu. A mudança é reflexo da acolhida à família devastada pela notícia da morte quando tudo o que esperava era celebrar a vida. Em Belo Horizonte, um grupo de profissionais voluntárias trabalha para transformar especialmente a forma como esses bebês-anjo são recebidos no mundo. 

O caminho passa por dar alternativas à mãe quando o sofrimento parece ser tudo o que lhe resta. A ela, explicam que antecipar o parto é uma opção, mas não garante que a dor da perda seja abreviada; que o nascimento respeitoso estreita a ligação até com o filho que não está mais aqui e que uma despedida marcada por lembranças, inclusive físicas, reforça esse laço para sempre e ajuda a ressignificar o luto. 

“Olhando para trás, vejo o quão fundamental foi o acolhimento que recebi. Tanto que escolhi a mesma equipe para o segundo parto. As pessoas que choraram naquele momento, mereciam, agora, participar dessa alegria” - Eliúde Graça Francelino, mãe de João, que nasceu e morreu em seguida, em 2017, e de Pedro, que veio ao mundo no último dia 10

 Psicóloga especializada em atendimento familiar e puerperal, Daniela Bittar explica que viver cada momento – da notícia da morte até o sepultamento do bebê – ajuda a dar sentido e a consolidar a maternidade. Segundo ela, passar pelo processo sem ter materializado a experiência de ser mãe pode ser ainda mais difícil e traumático.

“Parir e segurar o filho no colo, mesmo que natimorto, faz com que a mulher sinta que é realmente mãe daquela criança. Se isso não acontece, ela vive a gravidez, mas não consolida a maternidade. Pode passar a vida toda arrependida, pensando em como teria sido. A despedida formaliza a morte e concretiza a perda”, explica. 

Vivência completa

Mãe de Pedro, que nasceu no último dia 10, e de João, que chegou ao mundo em março de 2017, sem vida, a servidora pública Eliúde Graça Damásio Rosário Francelino, de 35 anos, atribui o processo de cura e a assimilação do luto que enfrentou à experiência de ter vivido todas as etapas da maternidade. 

A notícia de que o primogênito havia partido chegou na 38ª semana de gestação, 15 dias antes da data provável do parto. “Não podia conceber a ideia de carregá-lo morto dentro de mim por tanto tempo”, lembra, referindo-se ao desejo de passar por uma cesariana de imediato. 

O nascimento acabou acontecendo no dia seguinte, mas de uma forma completamente diferente da imaginada por ela ao saber da morte do filho. 
Ter uma equipe de acolhimento e acesso a todas as informações necessárias naquele momento foi crucial para que Eliúde mudasse de ideia sobre a chegada de João. Ela acabou optando por um parto normal.

“Foi como se estivesse completando um ciclo: engravidei, tive uma gestação, pari meu filho e pude me despedir. Foi algo que me trouxe muita paz. Senti que havia me tornado mãe e ali começou minha cura”, conta.

Orientação

Ginecologista obstetra, mãe de Paulo, de 6 anos, Estevão, de 4, Rebeca, de 7 meses, e de Esther, que nasceu e morreu em seguida, há oito anos, Quésia Villamil diz que falta preparo profissional para orientar mulheres sobre a perda gestacional.

Para ela, integrante do grupo Colcha de Retalhos (leia mais no fim da matéria), acolhimento e respeito caminham juntos. 

“É o lado B de uma rotina marcada por momentos felizes (a obstetrícia), por isso é tão difícil lidar com perda e sofrimento. Importante nessa hora é mostrar à mulher que ela não está sozinha e que aquela situação é mais comum do que se pensa. Todas devem ser respeitadas e bem orientadas. As escolhas cabem a elas”, diz.Paula Beltrão/Divulgação

Fernanda este com Miguel do pós-parto à despedida: "Segui meu coração, meus instintos de mãe, escolhi como queria receber meu filho, beijei, olhei, cheirei e, mais importante de tudo, esperei que ele nascesse e partisse quando quisesse. Livre como um pássaro"

Fotos eternizam do primeiro encontro à despedida

Tão importante quanto a lembrança do filho que partiu precocemente são os registros físicos dos breves – e preciosos – momentos da família ao lado dele. A analista de recursos humanos Fernanda Pinheiro, de 34 anos, se conforta, quase que diariamente, com as fotografias de Miguel, que, em função de uma alteração genética rara descoberta no comecinho da gravidez, viveu menos de duas horas fora do útero materno.

“Foi o presente mais lindo que ganhei na vida. Ter esses registros é um sonho. Não canso de admirar, relembrar os momentos e apreciar a beleza daquele ser tão pequeno, mas tão grande”, comenta. 

Orientada sobre a possibilidade de interromper legalmente a gravidez em função do diagnóstico, Fernanda escolheu levar a gestação adiante e desfrutar de cada minuto com o filho, até poder sepultá-lo.

"Não queria ser egoísta e pensar só no quanto queria tê-lo para mim. Tudo o que desejei, dentro das possibilidades dele, aconteceu. Pude olhar em seus olhos e dizer o quanto o amava”, relembra. Miguel nasceu e morreu quase duas horas depois, em dezembro do ano passado.

Eternizado

Integrante do grupo Colcha, a fotógrafa de família Paula Beltrão especializou-se em registros de partos. Imagens de mães e bebês que já se foram ou irão partir em poucas horas, reforça, são a lembrança que ficará eternizada. 

“Com o passar do tempo, é natural se esquecer da fisionomia, dos detalhes, do momento de aconchego. A fotografia, de amor, de carinho, é o registro de uma história que ficará para sempre”, reforça. 

No tempo em que permanece, quase invisível, na sala de parto, já que procura respeitar o espaço e os desejos da mãe que está de luto, Paula registra detalhes do encontro entre mãe e filho da forma mais sensível e natural possível. 

Reveladas, as fotos das pacientes assistidas pelo grupo Colcha são entregues em uma caixinha com duas cartas – uma escrita pela equipe e outra por uma mãe de anjo. 

“Deus me deu muita força e sabedoria para enfrentar tudo isso. Tinha muito medo de que o Miguel pensasse que era um sofrimento para mim. Não era!” - Fernanda Pinheiro, mãe de Miguel, que viveu 1h55 fora do útero

Além disso:

Concebido a partir de uma experiência vivenciada pela ginecologista e obstetra Mônica Nardy – mãe de Laís, de 3 anos, e de Cecília, que partiu, em novembro de 2017, antes mesmo de nascer –, o grupo Colcha de Retalhos tem como missão tornar experiências de perda gestacional menos traumáticas e difíceis. 

A ideia partiu de Mônica, da doula Bel e da fotógrafa Paula Beltrão. Em pouco tempo, ganhou a adesão de outras cinco profissionais – a obstetra Quésia Villamil, a enfermeira obstetra Adrinez Cançado, a psiquiatra Juliana Parada, a psicóloga Daniela Bittar e a fisioterapeuta Sabrina Baracho.

“Minha história mostrou como os profissionais estão despreparados para esse tipo de situação, tão frequente entre nós, obstetras. Desejo que com outras mães seja diferente. Fui induzida à cesariana, passei no máximo dez minutos com a Cecília e só pude ir ao velório dela porque pedi uma alta precoce”. 

O grupo busca não só dar apoio às mulheres como reforçar entre profissionais e hospitais a importância de lidar com o assunto de forma mais humana e respeitosa.

Fases do luto, conforme a psicóloga Daniela Bittar:

A mulher tem vontade de morrer e sensação de estar perdida, sem saber direito o que está sentindo de verdade. Nesta hora, cabe a familiares e amigos respeitar a necessidade de recolhimento da família

Mãe e pai já conseguem falar sobre a dor, choram e sofrem, expondo o sofrimento

É quando a mulher começa a se questionar sobre ter passado por aquilo, atribuindo a ela a responsabilidade da perda. "Por que comigo?", "Nasci para sofrer", "Nunca mais vou ser feliz" são frases comuns

Passa-se a conjectuar sobre possibilidades que poderiam ter mudado os rumos do acontecimento. "E se eu tivesse feito o pré-natal com outro médico?", "E se eu tivesse comigo aquilo me falaram". Aqui, a culpa se instala. Essa costuma ser a fase mais demorada

A mulher pode cair na interiorização, voltando-se para si mesma e buscando ajuda e acolhimento profissional para aceitar o acontecido, ou na vitimização, quando passa a remoer todo o processo e acaba retomando as fases iniciais 

Não significa que a dor e o sofrimento tenham acabado, mas a mulher consegue viver e conviver bem com os sentimentos e aproveitar as possibilidades que a vida oferece

História de quem já passou por uma perda gestacional:

Em 2011, a ginecologista e obstetra Quésia Villamil, uma das integrantes do grupo Colcha de Retalhos, de BH, enfrentou uma perda gestacional. Ao completar a 24ª semana de gestação, recebeu a notícia de que a primogênita, Esther, era anencéfala. Depois de dias de luto, Quésia decidiu seguir um caminho de respeito e amor à filha que estava no ventre. Cuidou da gravidez e do parto e entregou a filha de volta a Deus, como fala, 40 minutos após o nascimento - tempo que Esther esteve viva fora do útero. Quésia também escreveu um livro sobre o assunto - "Os Últimos Quatro Meses - Diário da Gravidez de um Bebê com Anencefalia".

Assista ao vídeo dessa história:

  

Vídeo elaborado pelo grupo Sands (grupo britânico, que busca apoiar qualquer pessoa afetada pela morte de um bebê) mostra a importância da conscientização sobre o apoio às famílias que sofreram a perda gestacional, neonatal ou infantil. 

Assista: 

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