À frente da Casa dos Quadrinhos, Cristiano Seixas fala sobre o mercado, desafios e planos

Paulo Henrique Silva
phenrique@hojeemdia.com.br
24/08/2020 às 07:20.
Atualizado em 27/10/2021 às 04:21
 (Lucas Prates/Hoje em Dia)

(Lucas Prates/Hoje em Dia)

São tantos nomes que Cristiano Seixas mal consegue se lembrar de todos. Duas décadas após ter criado a Casa dos Quadrinhos – Escola Técnica de Artes Visuais e Digitais, dezenas de artistas mineiros ganharam destaque no mercado internacional, assinando desenhos e roteiros de alguns dos maiores super-heróis da história. 

Motivos para comemorar não faltam, apesar de a pandemia ter atrapalhado alguns projetos de celebração. Com a escola localizada num prédio histórico da avenida João Pinheiro, em Belo Horizonte, foi preciso, por exemplo, focar na mudança das aulas para o formato on-line. 
Coincidentemente, o universo virtual é o cenário para um projeto ousado e inédito: o Patio Digital Academy. Com lançamento nesta semana, fará dos alunos personagens de uma plataforma gameficada para ensinar a base de jogos digitais e de animação.

Nesta entrevista ao Hoje em Dia, Seixas também fala do trabalho de roteirista em “Alien - The Original Screenplay”, minissérie em quadrinhos baseada na clássica franquia de filmes de ficção científica. A publicação foi disponibilizada em versão digital no início do mês, pela Amazon.

Nestes 20 anos da Casa dos Quadrinhos, com tantos nomes que se destacaram no universo dos gibis de super-heróis, foi difícil mostrar que o desenho tem outras possibilidades?
Você tocou num ponto importante. A escola levou um tempo para provar que quadrinho de super-herói é só uma pontinha do iceberg. A gente ficou muito conhecido por conta de artistas no mercado da Marvel e da DC Comics, o que acabou impregnando muito o que o pessoal enxerga na Casa dos Quadrinhos. Na verdade, a gente incentiva a pensar de forma transmidiática, em que o artista prepara o universo de personagens e histórias e refina o seu estilo para aplicar na mídia que tem interesse, que tanto pode ser um quadrinho independente ou adulto, animação tradicional ou 3D como estátuas colecionáveis e mercado de ilustração de RPG e card game. A diversidade de aplicação é muito grande. Mas é difícil para a escola mostrar isso por causa do próprio nome, né? (risos)

O número de artistas mineiros que passaram pela Casa dos Quadrinhos e estão no mercado internacional é muito grande. Como foi esse processo de se tornar uma referência nacional neste universo? 
A Casa dos Quadrinhos começou em 1999, quando a gente fez um evento com o pessoal da Fábrica de Quadrinhos, de São Paulo. A gente fez uma espécie de mini-Comic Con na Escola Guignard, com convidados vindos do exterior. Já tínhamos um pequeno estúdio de ilustração e animação, desde 1997. A gente já estava decidido a abrir uma escola de desenho de quadrinhos em BH, pois havia uma demanda. Como a Fábrica de Quadrinhos já tinha uma escola e o entrosamento com eles foi muito bom, abrimos aqui uma escola em parceria com eles. Após um ano, um ano e pouco, os sócios de lá se separaram e perdemos o contrato, pois a Fábrica deixou de ter uma existência legal. Foi aí que nos transformamos na Casa dos Quadrinhos, começando num prédio perto do Mercado Central. A parte boa dessa separação é que eles eram muitos focados em desenho e quadrinhos e a gente viu que o perfil de BH era mais abrangente. Assim focamos no desenho animado, num começo de computação gráfica, e isso funcionou. O estúdio continuou de forma paralela, com os alunos mais alinhados com os trabalhos nossos participando dos projetos. Sempre fizemos essa dobradinha. Queríamos um lugar que o jovem talento, os professores e os artistas se sentissem em casa. Sempre foi uma premissa nossa, de a pessoa gostar de estar lá, com um clima propício para se desenvolver o trabalho. Isso naturalmente atrai um perfil de artista que se empenha em ter qualidade e resultado. Além de tudo, a gente tem uma preferência por professores que, além da formação acadêmica, também atuem no mercado. Cerca de 90% dos nossos professores estão no mercado nacional e internacional. Aí acaba virando uma bola de neve.

Tem artista brasileiro trabalhando com Frank Miller, na sequência de “O Cavaleiro das Trevas”, em série da Netflix

Paralelamente à criação da Casa dos Quadrinhos, o Brasil se transformou num celeiro de grandes artistas. Quais foram os elementos cruciais para esta construção?
Os anos 80 e 90 foram fundamentais para o quadrinho brasileiro, apesar de ter se trabalhado muito com humor relacionado à política. O crowdfunding salvou o nosso quadrinho nos últimos anos, para que se pudesse manter uma grande produção. A gente chegou num ponto que nunca tinha chegado. Tem artista brasileiro trabalhando com Frank Miller, na sequência de “O Cavaleiro das Trevas”, em série da Netflix, ...É uma outra credibilidade que estamos alcançando. Sem falar no mercado de animação. Recentemente uma artista mineira criou um piloto de desenho para a Cartoon Network. Em outros tempos, era algo que a gente nunca imaginaria que aconteceria.

Além da Casa dos Quadrinhos, você deu uma contribuição para este fomento, especialmente da produção mineira, ao ser agente de vários nomes importantes no exterior.
Foram vários os artistas daqui em que ajudei a publicar pela primeira vez no exterior. E a maioria ainda está ativa no mercado internacional. Foi um motivo de orgulho, pois, no começo, a gente não tinha lugar nem para imprimir uma revista aqui. Fazíamos com xerox..Era igual fanzine de banda punk. Tinha mês que punha 200 cartas nos Correios. Agora, quando a gente vê o pessoal fazendo grandes títulos, sinto realizado de tabela.

No começo, a gente não tinha lugar nem para imprimir uma revista aqui. Fazíamos com xerox... Era igual fanzine de banda punk

Neste momento de pandemia, o alerta foi ligado com o anúncio das demissões de uma das maiores editoras do mundo, a DC Comics. Como você analisa esta situação? Quais os reflexos para o mercado de quadrinhos?
Tiveram vários erros na história do quadrinho nos Estados Unidos. Você tem lá milhares de autores e desenhistas, dezenas de editoras e apenas um distribuidor para levar o material às comic shops. Monopólio não é bom para ninguém. Então já estava fadado a dar problema em algum momento. O quadrinho norte-americano, quando parou a venda nas lojas especializadas, afetou demais o mercado mundial. Eles demoraram para reagir, ao invés de acreditarem mais no on-line ou já ir produzindo um material que pudesse ser distribuído depois. Essa demissão afetará artistas brasileiros também, mas eu acho que tende a regularizar nos próximos dois anos. O artista de quadrinho está preparado para se adaptar. Pode fazer pré-produção de série, de games... Se estiver aberto, um bom artista desta área não fica sem projeto.

E na Casa dos Quadrinhos? Quais as repercussões provocadas pela pandemia?
Quando a gente viu que a coisa realmente iria se prolongar, decidimos migrar para o on-line imediatamente. Isso foi viável por três fatores. Primeiro porque é uma escola de 20 anos e estamos bem preparados de material, que não é criado, mas sim atualizado e ajustado constantemente. Segundo, o corpo docente topou encarar o desafio. E o terceiro ponto foram os alunos. A maioria topou. Aprendemos muito no começo, vendo o que funcionava e o que não funcionava, Agora, estamos preparados para dar aulas 100% on-line. Se voltar o presencial algum dia, vamos continuar com o on-line. Conseguimos uma forma em que o aluno tem um bom aprendizado. Dependendo das disciplinas, a gente conseguiu resultados até melhores.

A pandemia também prejudicou as atividades de comemoração dos 20 anos da Casa?
Sim. A maior tristeza nossa foi não ter a edição do Festival Internacional de Quadrinhos. A gente iria investir num estande para a comemoração dos 20 anos da escola. Mas há três anos estamos trabalhando num projeto, que coincidiu de ser lançado exatamente durante a quarentena, que é uma academia de jogos digitais de animação. Ela se chamará Patio Digital Academy. Fizemos com apoio e chancela da Agência Nacional de Cinema (Ancine). As aulas serão totalmente on-line, mas gameficadas e interativas. É como se fosse uma mini Jornada do Herói (estrutura para contar histórias crida por Joseph Campbell e Chrstopher Vogler) para aprender a base de jogos digitais e animação. O aluno começará como aprendiz e chegará à mestre neste caminhada. À medida que vai aprendendo, ele vai crescendo com o personagem. O visual é todo baseado numa releitura do filme “Tron”, para dar a ideia de estar entrando no mundo virtual. É uma abordagem completamente nova de ensino. A partir de 8 de setembro já começarão as aulas.

O artista de quadrinho está preparado para se adaptar. Pode fazer pré-produção de série, de games... Se estiver aberto, um bom artista desta área não fica sem projeto

Você acaba de lançar, como roteirista, a adaptação de “Alien, o 8º Passageiro”, produzida pela editora americana Dark Horse. Você era fã do filme de ficção científica de Ridley Scott?
Essa foi uma das razões para eu ter sido convidado. Desde criança sou fã de “Alien”, “Blade Runner” e este tipo de sci-fi. Quando adolescente, fui buscar os artistas que estavam atrás deste material. Muitos deles são quadrinistas americanos ou europeus. Quando montei o estúdio de quadrinhos e animação em 1997,coneçamos a produzir quadrinhos mais nesta linha sci-fi dark. O Guilherme Balbi, que faz os desenhos, foi um dos nossos alunos e começamos a trabalhar juntos. Ele cresceu muito como artista nos Estados Unidos. Aí o convidaram para o “Alien” e, como ele poderia sugerir roteiristas, ele me indicou. Enviei currículo, fiz teste e fui aprovado. O material é baseado no roteiro original de Dan O’Bannon, que depois foi mudado por Ridley Scott. A gente viu todos os filmes da franquia, mas nos baseamos mesmo na raiz do projeto. Do contrário, ficaria muito parecido com o que já tinha e não era o que a editora queria. A ideia era pegar o roteiro de 1976 e fazer como se ele fosse filmado hoje em dia, uma proposta contemporânea de um roteiro antigo.

O alien é um dos vilões mais icônicos do cinema. Foi difícil fazer a atualização daquele ser gosmento e letal?
Tivemos duas partes muito difíceis. Se fôssemos usar toda aquela lentidão e suspense do início, feito para criar um clima de terror, precisaríamos de umas 200 páginas. O primeiro desafio foi modernizar, mas sem perder de vista o original. O segundo desafio foi a concepção do monstro. Para fazer o design do resto, a gente teve bastante liberdade, como nave, uniforme, arma e figurino. O alien realmente foi complicado, por ser icônico demais. Não podíamos mudar muito porque viraria outro produto.

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