É tempo de relembrar Millôr Fernandes

Hoje em Dia
04/08/2014 às 11:15.
Atualizado em 18/11/2021 às 03:39
 (MARCOS DE PAULA/)

(MARCOS DE PAULA/)

O autor homenageado da recém-encerrada “Flip – Festa Literária Internacional de Paraty” foi Millôr Fernandes (1923 – 2012), o inesquecível desenhista, humorista, dramaturgo, escritor, tradutor e – ufa! – jornalista. Ninguém teve dúvidas quanto à pertinência da homenagem, que, no entanto, não se esgota com o fim do evento.

Aos leitores ávidos, a editora Nova Fronteira, por exemplo, disponibiliza três títulos do escritor: o inédito “Guia Millôr da História do Brasil: de Cabral a Lula” e as novas edições dos infantis “ABC do Millôr” e “Poesia Matemática”. Já o Instituto Moreira Salles (IMS) coloca sua chancela na obra “Millôr 100+100: desenhos e frases” (264 páginas, R$50).

O trabalho tem organização do jornalista Sérgio Augusto, 72 anos, e do desenhista Cássio Loredano, 66. Enquanto ao primeiro coube selecionar as grandes tiradas do guru do Méier, ao outro foi entregue a missão de garimpar os desenhos que melhor dialogassem com a seleção, como pares.

E se é tempo de lembrar – e reverenciar – Millôr, o nome do escritor foi o escolhido para apresentar o mais novo cronista do Hoje em Dia: o jornalista Afonso Borges, o nome por trás do consagrado projeto “Sempre um Papo”, que, a partir da próxima segunda-feira, passará a mostrar seu olhar para os acontecimentos do mundo na página 8 deste caderno. E o que tem Millôr Fernandes a ver com isso? Bem, na verdade, muita coisa.

As páginas do Hoje em Dia não são necessariamente estranhas a Borges, que, no final dos anos 80, atuou nesta mesma editoria de Cultura à qual, como bom filho que se preze, agora retorna. “Eu também tenho uma história com Millôr. E fiz, talvez, a maior entrevista que ele concedeu à imprensa mineira, para o Hoje em Dia”, conta.

A histórica entrevista foi publicada no dia 2 de abril de 1989. Na verdade, Afonso Borges traria o autor a BH na sequência, mas acabou sofrendo um revés e tanto. Nada que o tempo não aplaine. Hoje, ele conta com bom humor o “perrengue”, que teve como cenário o auditório do BDMG cultural. “O maior pânico de quem realiza eventos é quando o convidado falta”. Bem, pela fala de Afonso Borges, já dá para antever o que aconteceu.

Millôr viria a BH para palestra e lançamento de livro. Tudo confirmado. “Pois não é que, na noite anterior, a secretária dele liga dizendo que Millôr não poderia ir? Isso com tudo divulgado, matérias nos jornais, convites distribuídos…”, repassa Afonso, que dedicou o dia telefonando a amigos do escritor, pedindo para que ele mudasse de ideia.

“Nada. Ele não atendia telefone… Sumiu, escafedeu-se. Aí fui às rádios e TVs, para avisar do cancelamento. Consegui alguma coisa… Mas à noite, imagine. Mais de 300 pessoas querendo destruir o BDMG! O que fiz? Coloquei um cartaz, bem grande, com o telefone da casa do Millôr, pedindo para que o público ligasse para ele. Não deu outra: uma semana depois, ele já estava de telefone novo. E nunca mais falei com ele”, diverte-se.

Millôr fernandes por Afonso Borges

Na sequência da entrevista, Afonso Borges lembrava que dificilmente o leitor “apanhava” Millôr falando de “seus botões”. Ao que o autor explicou: “Eu não sou autobiográfico. É tanto que quando eu escrevo alguma coisa autobiográfica, faz o maior sucesso. E o maior sucesso ainda faz alguma coisa que pareça com a minha vida. Uma nota sobre o Méier, onde eu nasci, por exemplo. Leia, a seguir, a reprodução da entrevista.

Você considera que o humor não deve ser autobiográfico?

Mas não tem porque me meter no meio. Se você faz humor, está fazendo uma piada, um desenho humorístico, uma coisa filosófica, política. Normalmente, não me meto no meio.

Você já trabalhou em Minas?

Curiosamente, trabalhei em Minas no começo da televisão. Em idos de 55, 56 – fui proibido no Governo JK.

Proibido? Conta essa história.

Tinha um programa na TV Itacolomi, “Treze lições de um Ignorante”. Na verdade, era uma seção de caráter geral. De vez em quando, dava uma lição, inteiramente atrapalhada, equivocada – evidente.

Mas porque JK proibiu o seu programa?

O programa era ao vivo. E tinha censura. Eu tenho um princípio na minha vida; não falo com censor. Nunca dirigi a palavra a um censor. Só dirijo palavra a uma autoridade se violentado. Mas na TV, o cara ficava ali do lado, não tinha jeito. Aí, saiu uma nota na primeira página de “O Globo” sobre Dona Sarah Kubitschek. Ela tinha voltado da Europa, após seis meses, e no dia seguinte ia ser condecorada com a Ordem do Mérito do Trabalho.

O censor viu antes de ir ao ar?

Viu, e imediatamente suspendeu o programa. Aí disse, faço sem o comentário – porque bastaria isso... Ele disse “não, evidentemente o senhor vai dar um tom irônico a isso”. Disse, não, prometo que leio friamente. Ele disse: “não, mas no seu programa, adquire um outro significado”. Então, me recusei a fazer.

E os jornais noticiaram esse fato? Ou ele foi abafado?

Sempre digo o seguinte: se você um dia tiver que morrer, morre num dia que não tiver um grande acontecimento. Senão você vai para a página oito, deste ‘tamaninho’. E aquilo aconteceu numa semana que não tinha assunto nenhum. Olha, saíram uns cem artigos no Brasil sobre o programa. E como ele era humorístico, os caras reproduziram trechos, e fizeram uma festa.

Como vê Minas?

Olha, estou um pouco afastado, mas tenho grandes amigos mineiros. O Otto, Fernando, Hélio, Paulo, e até um certo momento achava que a formação humanística de Minas era a melhor. Hoje tem a Universidade de Brasília, a de São Paulo, não sei mais. É muito curioso; em Minas as pessoas têm um certo conhecimento básico das coisas, de um modo geral, bem melhor.

Como analisa, hoje, depois de tanto tempo, o “Pasquim” no panorama da imprensa brasileira?

Foi divertido. Representou uma negação de todas as pretensas avaliações de juventude, de todas as pesquisas. Por que na época, a média de idade do “Pasquim” era 35 anos. Se você fosse perguntar se aquele jornal daria certo, todo mundo, diria que não ia dar. Nós não sabíamos o que fazer e eu não queria fazer o jornal.

E o que você acha da época que o “Pasquim” apoiou o Brizola?

Ele foi vendido para o Brizola!!! E qual a diferença entre vender para o Brizola ou para o Maluf? Não tem esse negócio de esquerda! Que esquerda é sacrossanta? A esquerda é escrota feito outra coisa qualquer. Só que a direita é determinadamente escrota e a esquerda diz que não é. Porque na verdade, a direita assume que é escrota. Eles querem é lucrar e deixar as pessoas na miséria. Agora, veja os teus amigos de esquerda e vê se eles estão pagando bem a empregada. Vê se realmente eles estão deixando de fazer os cambalachos para aparecer na televisão. Vê se deixaram todos de combater por dentro, como eles chamavam na TV Globo. Combater por dentro o quê? Até hoje estão lá ganhando dinheiro!

Uma de suas peças mais famosas chama-se “É...”. Como aconteceu esse “é...” na sua vida?

Eu, quando escrevo uma peça de teatro – a única coisa que eu escrevo mais longa é teatro; eu nunca fiz romance, ou novela – não escrevo a partir de uma urdidura, de um mote. Tem pessoas que estudam, fazem todo um esquema, para depois escrever. Eu escrevo sobre um sentimento. Até que, em um certo momento, eu percebo o fim, então, neste momento, a peça está terminada para mim. E de um certa forma, eu vou chegar lá. E na verdade, esse “é” é filosófico, é de desalento, de conformismo diante do destino, da metafísica, de repente você não sabe o que vai fazer e diz: É...

Como se define ideologicamente?

Acho que ideologia não existe. Ideologia é uma coisa medíocre na qual a pessoa se enquadra para ter uma definição de vida. As ideologias que conheço na prática são inteiramente medíocres. Costumo dizer que não existe ideologia; existe temperamento.

Então você não se enquadra em nenhuma delas?

Eu seria mais anarquista; mas não no sentido escroto que eles querem colocar. Eu acho que a sociedade, se possível, deveria ser do indivíduo. Tem que ser a partir do indivíduo. Quando os caras começam a reagir, acontece alguma coisa. Eu fiz uma nota dizendo que os caras tinham que reagir contra esse negócio do selo. Tinham que brigar, discutir com o guarda.

Que já surtiu efeito. Veja o caso daquele juiz no Rio Grande do Sul.

Pois é, anteontem eu publiquei uma nota elogiando ele, que disse assim: “Autorizo todo cidadão a dar ordem de prisão ao guarda que parar o carro dele para cobrar o selo”.
 
E como seria esse anarquismo do qual você se diz partidário?

É mais ou menos isso: é necessário que seja construída uma pinguela. Evidentemente, você não pode reunir dez pessoas para fazer uma pinguela. Então você vai chamar o Estado para fazer a pinguela. E o que significa isso? Que o Estado torna o dinheiro de cada um. Resultado: é o BNH. Muito bem. Você deixa o mercado livre, com o controle do poder público. E o controle deve ser feito para não haver exagero.
 
Mas isso não tem funcionado muito bem...

Mas mesmo isso é uma utopia! O poder público é uma merda! Um bando de ladrões que se assenhora desse “Poder Público” que se chama, basicamente, a posse de dinheiro. Mas muito bem, você têm o comércio livre. Antigamente, o português ali da esquina pegava o dinheiro dele, deixava de comer e, quando tinha 30, 40 anos, comprava um apartamentinho, depois comprava outro e alugava o anterior. Mal ou bem, essa coisa começava a servir o público, porque tinha apartamento para alugar, etc.
 
Aí entra o governo.

E o que ele faz? Pega cruzado que ele tira e atrai para a Caderneta de Poupança. Este cruzado, depois tem que ser renumerado pela correção monetária, mas 6% ao ano, meio por cento ao mês. Muito bem. Agora, no cruzado que ele pegou daqui, através do Sistema Financeiro da Habitação, vai 20% para burocracia, 20% para a corrupção, 20% para incompetência, 3 ou 4% para repasse do banco. Eu não sei por que uma coisa que chama Banco Nacional de Habitação tem que passar para outro banco comprar!
 
Mas de onde acha que veio essa loucura toda?

É um negócio falido. Eu disse várias vezes: o BNH só se salva pelo desastre. Ele acabaram incorporando os funcionários à Caixa Econômica. Isso é uma loucura. Você pode acreditar em algum sistema de governo baseado nisso? Veja a corrupção gigantesca que é o Pentágono. A corrupção que tem em todas as forças militares do mundo!
 
Você não acredita em nenhum sistema de governo?

Nenhum; agora, se você pegar o anarquismo, porque que aqueles dez caras não se reúnem e fazem a pinguela?
 
Talvez porque não tenham um senso de organização...

Mas se tiverem, isso está muito acima do governo. Quem que te disse que nós precisamos de uma represa de 20 milhões de dólares, a Itaipu. Você foi consultado? Eu fui consultado? Agora, porque não 20 represas de 1 milhão de dólares?
 
Onde você localiza a raiz dessa megalomania?

A raiz da megalomania é universal. Você paga as obras feitas pelo Stalin, por exemplo, ele praticamente mandava as pessoas morrer. Se você falava isso com os comunistas, ele te chamavam de reacionário. Hoje, ninguém sabe se ele matou 20, 30 ou 40 milhões de pessoas. Você pega o Memorial de Mao, o monumento de Franco, ou seja de direita ou de esquerda, tudo é a mesma coisa.
 
Você acredita na natureza humana?

Olha é o seguinte: a falha da natureza humana é ser muito complexa. Um computador faz um bilionésimo de coisas que a gente faz. E ele tem 15 bilhões, pelos menos, de neurônios, sinapses, agindo permanentemente, trocando informações. Você entrou no estúdio e daqui a dez anos você vai ter ainda uma noção bastante boa de tudo por aqui.
 
Você acha que a sociedade piora o ser humano?

Piora ou controla. Não melhora nunca. Você tem seres humanos que são absolutamente canalhas. Eles nascem canalhas.
 
Você se considera um pessimista nato em relação a isso?

Não, do outro lado, há o ser humano. Não há hipótese de você comparar uma porção de FDP por aí comigo, por exemplo. Eu não sou um FDP. Eu sou incapaz de levantar a voz para essa mulher (referindo-se à empregada) que trabalha para mim. Não há possibilidade. Na minha cabeça, sempre que eu vou levantar a voz para uma pessoa humilde, eu penso assim: e se fosse um general de 4 estrelas? Não faria não. Então não faço.
 
Mas você acredita ou não, afinal, no ser humano?


Veja bem, mesmo esse ser humano melhor, ainda é falho. Se eu não me vigio o tempo todo, eu bato a sua carteira, entendeu? Há um ser humano que melhorou. Um ser humano. Não é o ser humano. Esse continua sendo escroto. Mas veja, como você tem uma indústria de ponta, uma tecnologia de ponta, você tem também seres humanos que já chegaram a um estágio muito mais evoluído do pensamento e, portanto, da sensibilidade.
 
Qual a principal referência desse ser humano que você considera bom? A sensibilidade, a crença, o misticismo...

Olha, para começo de conversa, eu penso a coisa em ordem material. Pagou a sua empregada em dia? Porque senão a gente fica nessa conversa: sensibilidade, não sei o quê, não dou porque aquele FDP é um revolucionário – manja slogan de comunista, né?  Primeiro de tudo, você tem que ter respeito pelas pessoas. Tem que pensar: quando é que ela recebe? No dia primeiro? Não pode ser no dia dois, não. Nós estamos no sistema patriarcal ainda. Não interessa o BNH. Você é responsável por isso. Então, é uma relação de sensibilidade que tem se traduzir fundamentalmente na coisa material.
 
Você tem alguma coisa contra o comunismo?

Não é isso. O comunismo terminou na idade neolítica quando os caras descobriram os vasilhames. Não estou improvisando, não. Antes, era aquela coisa do javali. Você abateu o javali, chega lá e come. Aí um dia descobriu o vasilhame. O homem ficou num certo recanto, e fez aquele negócio de barro, que durou um pouquinho mais e você não é mais comunista. O negócio é uma porrada. Para você vencer esse egoísmo, você tem que passar para um outro mundo.
 
Você crê noutro mundo?

Veja bem, pode chegar. Não serão estes cinco ou seis mil anos de civilização que definirão o ser humano. Pode ser que ele chegue a um outro estágio se ultrapassar duas coisas: primeiro, explodir; e o outro, o grande problema do mundo, o controle da população.
 
E a questão do meio ambiente?

Mas está completamente relacionado. Não adianta conservar a Amazônia se o Brasil tiver um bilhão de pessoas. Você olha a favela da Rocinha e cada um que chegou ali tirou apenas uma árvore. Ele não fez nada de mais. Ele tirou apenas uma árvore para colocar o barraquinho dele. No fim de vinte anos, não tem mais nada.
 
Isso reforça a sua tese de que humanidade pode se salvar pelo indivíduo?

Mas você veja o seguinte: a humanidade está definitivamente nas mãos de grupos. Sempre esteve. Não tem jeito de acabar com os governos centrais, mas essa coisa de municipalizar já é um progresso. Você inverte a ordem.
 
Mas acontece que a burocracia é fundamental na manutenção dos governos centralizados.

Mas porque esses FDP desses burocratas não fazem nada na vida? O envelope que eu mando para o jornal, eu pago com o meu dinheiro. Você chega numa dessas autarquias, o cara tem três secretárias, ar condicionado, um puta automóvel e não paga nada! E se possível, leva alguma coisa para casa, quando não leva tudo. Essa coisa é um câncer da sociedade.
 
Você citaria como exemplo a União Soviética?

Mas é claro. A União Soviética tentou essa utopia que custou pelo menos 14 milhões de caras do Partido que dominam o processo. Chega domingo, eles entram naqueles subterrâneos e tEm gasolina para eles, entende? Sempre foi assim. Os próprios amigos meus comunistas conversam isso abertamente.
 
É comprovado que o poder corrompe. Como foi a sua primeira experiência com o poder e como você resolveu isso na sua cabeça?

Nunca tive a sensação do poder. Sempre me recusei. Eu sempre fui vedete. Sempre, sempre, sempre, desde que eu comecei a trabalhar com 14 anos,  não tinha dinheiro nem para comer. Mas quando tinha 20 anos, eu estava morando num apartamento de 6 quartos na Avenida Atlântica. Eu e o meu amigo, Fred Chateaubriand.
 
Millôr, o quE mais corrompe o homem?

Ele mesmo. O homem é , por princípio, um animal corrupto. Por dinheiro, sedução e, imensamente, por vaidade. E por vaidades menores. De vez em quando, os caras me fazem uns elogios aí, e eu fico chateado porque o cara acredita que a minha vaidade é aquela. A minha vaidade é muito maior. Agora, teve um elogio que eu recebi outro dia num restaurante que eu gostei. Um cara puxou uma cadeira para minha mesa, sentou e disse assim: “Pôxa, Millôr, você, na sua idade, ainda é um jornalista em ascensão...” Eu achei ótimo.
 
Como você começou a fazer charges para o “Jornal do Brasil”?

Eu não queria fazer de maneira nenhuma! Eu não gosto de ser consagado. Eu quero é estar fazendo as coisas. Mas por uma série de circunstâncias, um grande amigo meu, Fernando Pedreira, insistiu e eu acabei resolvendo com ele o seguinte: na mesma página que eu escrevo hoje, lá embaixo, tinha o expediente. Eu disse, olha, você tira o expediente dali e eu escrevo naquele espaço. Três ou quatro dias depois, ele colocou lá em cima. Eu não tive nenhuma intenção em fazer isso.
 
Você, ao longo dos anos, deve ter feito mais fábulas que La Fontaine e mais Hai-kais do que escritor japonês...

Olha, sem dúvida, eu sou o maior fabulista brasileiro. Eu devo ter mais de 300 fábulas. Hai-kai, eu passo tempos sem fazer. Faço dois, três, depois paro. Outro dia mandei bater, deve ter mais de 400. Porque você vai fazendo; eu trabalhei a minha vida inteira. Eu trabalho sábado, domingo e não abandono a minha vida.
 
Como é a sua rotina, se é que ela existe.

E acordo, ponho meu calção, dou minha corrida na praia, a minha vida inteira eu fiz esporte sozinho. Nunca fiz esporte coletivo. O único foi frescobol. Eu detesto essa coisa de você se degradar mais do que a vida já te degrada.
 
Você falou que sua vaidade era maior. Qual é a sua maior vaidade?

Não sei, porque talvez a minha grande vaidade seja não querer. O meu grande orgulho é não querer. O Antônio Houaiss escreveu uma coisa a meu respeito muito engraçada. Ele disse que o grande orgulho do Millôr é a saúde. Eu sou um cara que, se pega um resfriado, fica humilhado. Eu vejo esse negócio de livro, o autor muito premiado... me dá um desagrado, pô, o que quer dizer o prêmio? Como é que os caras sabem a diferença entre a poesia hindu, asteca e a dos maias? Hoje, no Brasil, todo mundo é premiado.
 
Mas você também já teve peças premiadas.

Pois é, infelizmente, “Elefante no Caos” foi premiada. Ela foi levada em 1960, mas se você pegar o livro, eu fiz tudo naturalmente. E na contracapa do livro, eu só coloquei trechos das pssoas que falaram mal dela. Coloquei todas elas. Tem até uma do Paulo Francis, que elogiou demais a peça, mas colocou uma frase que eu acho ótima: “Millôr é um pré-marxista preso ao sistema ético familiar”.
 
Você, indiscutivelmente, é um sujeito famoso. Na sua opinião, para que serve a fama?

É o seguinte: “As glórias que vêm tarde já vêm frias e podem enfim apagar-se a nossa estrela”, como diria Tomás Antônio Gonzaga cantando a Marília. Você pega, por exemplo, Pedro Nava, que foi sempre um sujeito brilhante, mas o que interessa fazer sucesso aos 70 anos? Você chega no banco, a mocinha de dá um beijinho e fala: “que velhinho simpático”. Agora, as pessoas que estão numa jogada vital usam a fama para ganhar dinheiro. Eu não tenho dinheiro, mas tenho o suficiente para fazer um desenho e, se não ficar bom, fazer outro. Para gastar no desenho o tempo que ele me exige.
 
Você acha que ganha o suficiente?

O suficiente para querer trocar meu computador, mas não ganho o suficiente para viajar, como eu gostaria, na primeira classe. Avião virou uma tortura. É aquela merdinha, que você vai amarrado. Eu não tenho dinheiro para pagar nem aqueles hotéis vagabundos, que cobram 150 dólares por dia. Se eu fico dez dias, pago mil e quinhentos dólares. Mas o que eu ganho é ridículo em relação ao que faço.
 
Você  é um consumidor em potencial?

Eu não compro nada. Não sou consumidor. Meu nível de consumo é zero. As pessoas me dão roupa, carro, eu fico satisfeito quando está velho. Quando eu compro um novo, fico chateadíssimo. Acho uma ostentação. Você pega, por exemplo, um estúdio como esse, que eu tenho há duzentos anos, não tem nada que tenha sido comprado por consumismo. É tudo absolutamente necessário. Eu fui comprar uma poltrona bonitinha? Não. A bunda humana não modificou nos últimos dois mil anos, não é verdade?
 
Por que que você cobra dez mil dólares para dar uma entrevista na televisão?

Primeiro, porque eu acho que popularidade é uma coisa extremamnte desagradável. Tem pessoas que gostam da imagem projetada. Eu não. Segundo, porque eu daria, perfeitamente, uma entrevista, profissionalmente. O apresentador não ganha por seu trabalho? Por que o meu trabalho, que é intelectual, não pode ser valorizado também? Tenho certeza que o dono da emissora teria lucro em cima da entrevista que eu supostamente daria.
 
Estamos à beira das eleições presidenciais. Como você vê esse quadro?

Como votar é uma fatalidade, não se descobriu nada melhor, vamos à loteria. É aquela coisa famosa, a democracia é o pior regime do mundo, executado-se todos os outros. Votar em branco é uma tremenda bobagem, então temos que escolher.
 
Entre os candidatos, existe o melhor dos piores?

Olha, existe... o próprio Ulysses (Guimarães), se não fosse o problema da idade. Mas apenas para comparar, eu considero o (Leonel) Brizola mais velho que o Ulysses. Esse socialismo do Brizola, aliás, tudo o que você disser de pior dele, eu concordo.
 
Qual o político que você considera moderno no Brasil de hoje?

O único político moderno é o Waldir Pires. Se ele saísse para presidência, ele tinha possibilidade de agregar elementos de todas as tendências.
 
Existe uma tendência que se manifestou no resultado das últimas eleições do voto na esquerda. Você acha que ela pode se repetir em novembro?

Não acredito. Aquilo foi só oposição. É o Governo não está fazendo nada. Foi um voto de protesto. Eu estava procurando candidatos para apoiar e, na última hora, votei no Bittar, do PT.
 
Você acha que essa tendência é ideológica?

Não, não é idelógica. Agora, essa rapaziada de 16, 17 anos, vai  muito pelo charme. E o PDTnão tem o charme que o PT tem. O PT tem a universidade, as escolas. Não sei se vai durar até lá. Depende do que eles fizerem em São Paulo e no Rio Grande do Sul.
 
Você acha que o PT subiu rápido demais ao poder?

Acho que sim. O candidato que tem falado em nome das bases é o Lula, mas eu pergunto o seguinte: até onde vai a vaidde humana? A essa altura, Erundina pode estar pensando: por que o Lula e não eu? Na verdade, quem foi para a rua pegar os votos foi ela. Tem isso, você acaba tudo na vaidade humana.
 
Você acha que a democracia termina na hora de contar os votos?

Mais ou menos. Esse indivíduo que está aí no poder ganhou a primeira eleição como oitavo suplente. Roubaram cinco, ele ficou como terceiro suplente, o pai arranjou emprego para dois, na famosa urna 52, lá no Maranhão, e ele assumiu. Hoje, na biografia dele, dizem que ele ganhou com larga margem de votos...
 
Como você vê esse cinismo que paira no ar hoje no Brasil?

Não é só o cinismo. Hoje há uma metástase moral Brasil. Um metástase ética. Eu não tenho coragem nem de moralizar com pessoas mais jovens acerca de nada. Pelo contrário: foda-se. Eu não vou dizer: o país corrupto! Eu vou dizer o quê. Na minha vida inteira eu nunca tive um emprego público e recebo 250 cruzados pelo INPS. Me aposentei com 10 salários mínimos. Estou recebendo três. O (Ernesto) Geisel tem quatro ou cinco aposentadorias. O (Franco) Montoro tem cinco. Por que cinco? Ele teve cinco vidas para trabalhar? Que país é este?
 
Como você vê a imprensa brasileira?

Do lado intelectual, é uma imprensa rural. É uma imprensa de vilarejo. Eu saí em 1982 da “Veja”, e nem foi uma briga violenta. E desta época para cá meu nome nunca mais saiu na “Veja”. E ela se considera uma revista internacional. Você já imaginou o Norman Mailey com o “Times” e ele não publicar mais o nome dele? Como é que eles querem ser uma grande revista? A imprensa no Brasil é realmente primária. É uma imprensa de press-release. Olha aqui, o “Diário da Nova República”, que saiu agora, é um livro importante! Eu não vi uma linha na Brasil, nem sequer no “Jornal do Brasil”.
 
Como você transa a morte?

A morte é uma sabedoria da natureza, a contrário do envelhecimento, que é uma burrice. Veja, o que seria pior: saber que você vai morrer ou saber que você nunca vai morrer? Você olha para mim e diz assim, “é,  o Millôr tá ficando velho”, como quem diz, o Millôr está com câncer. O ser humano chega aos quarenta anos, ele já sabe que está envelhecendo. A mulher, nem me fale.
 
Você é místico?

Não! Não tenho nem... nem raiva.
 
Você crê em Deus?

(Dá de ombros) Tsc... É um folclore como é outro qualquer.
 
Você acompanhou essa polêmica do Aiatolá Khomeini...

Claro, inclusive eu vou fazer uma artigo sobre esse assunto. Eu li os artigos desses padrecos aí falando de liberdade de imprensa e eu já vi os mapas religiosos do mundo e quero que ponham na Constituição a liberdade de descrença! Eu tenho todo o direito  de dizer que a procissão é uma merda. Eu não posso falar na frente de uma Escola de Samba e dizer que é uma merda. Por que um fdp desse estabelece uma religião como critério e manda matar porque ele julga que o escritor desrespeitou esse critério? Eu fui vitima de religião muito mais do que de militar no Brasil. Por que que eu tenho que acreditar em Buda ou em Moisés?
 
Os muçulmanos disse que são 900 milhões no mundo.

E é uma farsa. Eles dissem que são 700 milhões de cristãos no mundo. Isso só porque o cara foi batizado. Agora, onde é que estão os descrentes? Não tenho nenhum mapa que dá o número dos descrentes. E eu, onde é que entro?

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