Acervo da escritora Carolina Maria de Jesus será disponibilizado

Elemara Duarte - Hoje em Dia
03/11/2014 às 08:34.
Atualizado em 18/11/2021 às 04:52
 (DIVULGAÇÃO COM ARTE/)

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A obra inédita da escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) estará ao alcance dos mineiros a partir deste mês. Neste ano quando é lembrado o centenário de nascimento da autora do livro “Quarto de Despejo” (1960), a obra dela será disponibilizada por meio de microfilmes doados pelo historiador paulista José Carlos Sebe Bom Meihy, um dos maiores conhecedores da literatura “caroliana”. Para oficializar a doação, ele participa, nesta segunda (3), às 19h, da mesa redonda “Carolina Maria de Jesus na UFMG”, no auditório 1007, da Faculdade de Letras da UFMG, no campus Pampulha. A entrada é franca.

Mineira nascida no município de Sacramento, região do Alto Paranaíba, Carolina migrou ainda jovem para São Paulo, onde produziu sua obra, vivendo na periferia da cidade. Tornou-se referência para os estudos sociais em diversas modalidades, inclusive fora do Brasil, onde teve obra traduzida para vários idiomas.

O material traz romances, poemas, letras de música, peças de teatro e ficará disponível no Acervo de Escritores Mineiros, que funciona no 3º andar da Biblioteca Central da UFMG, no campus da Pampulha.

Os microfilmes trazem as cópias completas dos cadernos fornecidos pela família da escritora ao historiador que tratou de recuperá-lo e registrá-lo. Atualmente, só existem mais duas cópias deste acervo – uma na Fundação Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e outra na Library of Congress, Washington, nos Estados Unidos.

“Quando encontramos o acervo estava tudo guardado em uma mala. Fizemos um acordo e a filha dela permitiu que tudo fosse microfilmado”, lembra Meihy, sobre uma das filhas da escritora que mora em São Paulo. Para o historiador, era quase lógico que a cópia fosse doada para alguma instituição no estado natal da escritora. Meihy é professor aposentado do Departamento de História da USP.

Nesta segunda (3) também será feita a doação de uma cópia do documentário alemão “Favela – A Vida na Pobreza (1971), da cineasta alemã Christa Gottmann-Elter, e cedido à instituição pelo professor Sergio Barcellos, que também participará do debate.

Barcellos dedica-se ao projeto “Vida Por Escrito – Organização, classificação e estabelecimento do arquivo de Carolina Maria de Jesus”, classificado pelo edital Prêmio Funarte de Arte Negra do ano passado.

O evento é promovido pelo Centro de Estudos Literários e Culturais e pelo Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, com apoio da Faculdade de Letras da UFMG.

A seguir, saiba mais sobre esta iniciativa na entrevista com o historiador paulista José Carlos Sebe Bom Meihy:

Como a obra de Carolina Maria de Jesus é vista no Brasil e no exterior atualmente?
A recepção da obra de Carolina Maria de Jesus, autora entre outros de "Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada", lançado em 1960, teve caminhos diferentes. Enquanto no Brasil sua aceitação obedeceu a ritmos variados, com aceitações e refutações extremas, no exterior o caminho foi diverso, sempre progressivo e consagrador. O sucesso entre nós se deu de maneira estrondosa, jamais pensada na época. Imediatamente traduzido para 13 línguas, para os estrangeiros aquele diário equivalia a prova da desigualdade provocada por um capitalismo em questão, além de dimensionar a problemática da mulher, dos negros, migrantes. Boa parte das leituras sobre "Quarto de Despejo" foi assumida como Literatura e isto permitiu um trânsito movimentado que, afinal, a colocava como autora que contracenava com escritoras que na década de 1960 ascendiam a condição de mulheres de letras, como Clarice Lispector, Nélida Piñon, Ligia Fagundes Telles. Entre nós, Carolina figurava como uma espécie de representante das "classes subalternas" que fermentava o ambiente social daqueles dias. Eram os chamados "anos dourados" e a esperança de mudanças trazia ares mineiros que, afinal se materializaram no governo de JK.

Qual o efeito da publicação de "Quarto de Despejo"?
Publicado o "Quarto de Despejo" exatamente na abertura dos anos de 1960, os argumentos contidos nos relatos revelavam uma realidade a ser mudada. Carolina falava diretamente por si, de si, mas para o mundo. Não era mais uma voz dita por outros sobre ela e a pobreza alheia. Lembrando que à época a vida política brasileira era tumultuada pelo clima populista que elegera Jânio Quadros, a experiência de Carolina a colocava como síntese de vários outros dilemas que ganhavam largura nacional. Mesmo em termos de América Latina, seu exemplo era válido, pois naquele instante, depois da Revolução Cubana de janeiro de 1959, tudo ganhava foros de avanço ou defesa do comunismo.

E os livros desta escritora de periferia entram no olho do furacão...
Curiosamente, Carolina com "Quarto de Despejo" servia para os dois lados. Para uns ela valia como prova de que um pobre pode galgar espaços na sociedade e para outros, pelo contrário, ela provava as injustiças sociais a serem corrigidas. Aliás, foram estas contradições que a ajudaram a vender tantos livros. Um dos efeitos negativos de tanta agitação foi que o sucesso do livro de estreia ofuscou o resto da obra de Carolina que, felizmente, ficou registrada em cadernos nos quais ela copiava e recopiava sua produção profícua.
 
O que tem neste acervo inédito da escritora?
É um erro grave supor que o "Quarto de Despejo" equivalha à produção de Carolina. Ela foi muito mais que escritora de um único diário. Entre os muitos gêneros que ela exercitou temos poemas, peças de teatro, contos, romances. Tudo ainda praticamente inédito. Pode-se creditar ao sucesso imediato do "Quarto" o fato do "esquecimento" dos demais gêneros. Desde a abertura política nos anos de 1980, quando movimentos populares ganharam a cena democrática, vários segmentos têm buscado outros ângulos que não apenas repetir análises do "Quarto de Despejo". Aliás, convoca-se estudiosos para novas possibilidades já despertadas. Nos anos de 1990, um acadêmico norte americano, Robert Levine e eu começamos a garimpar novas fontes para o estudo de Carolina e dada a publicação de nosso livro "Cinderela Negra: A Saga de Carolina Maria de Jesus", a família nos apresentou vasto material ainda guardado, com textos inéditos. O estado do material era absolutamente precário e então com a ajuda do Arquivo do Estado de São Paulo, foi tudo "descupinizado", e limpo, o material foi devolvido a família. Graças a um acordo motivado por nós entre a Fundação Biblioteca Nacional e a Library of Congress dos Estados Unidos foram feitas três cópias microfilmadas de todo material. Uma destas cópias foi doada a Biblioteca Nacional no Rio, outra foi para Washington e uma ficou conosco e agora é repassada a UFMG.

E, agora é a vez da terra natal da escritora...
Foi fundamental nesta articulação o casal Eduardo Duarte e Constância Lima Duarte. Diria, contudo que isto não basta, é preciso muito mais. Falta um grande projeto que faça um levantamento de toda a produção inédita e financie a publicação.    
 
O senhor tem algum contato com os familiares da Carolina? Como eles vêm a repercussão da obra dela?
Meus contatos com a família de Carolina se rarearam com o passar do tempo. A morte precoce do colega Robert Levine também provocou um distanciamento que era facilitado pela paixão que ele tinha pela obra dela. A retomada dos estudos sobre Carolina é uma inequívoca prova da presença dela como ícone entre nós. Entre tantos temas que tangenciaram aquela produção, a própria história de seu "apagamento" acabam por motivar curiosos. Certamente os familiares de Carolina estão felizes com o sucesso que ela causa. Devemos lembrar que numa soma aproximada hoje o "Quarto de Despejo" deve ter superado a marca de um milhão de livros vendidos no mundo todo.
 
Por que a obra desta escritora ainda dá tanto pano para manga?
Carolina provoca surpresas por tudo e a cada nova publicação de seus inéditos o fermento faz crescer a curiosidade de paixão. Atualmente o movimento negro, por exemplo, exalta figuras que como ela e Abdias do Nascimento, colocaram questões que estão na ordem do dia abordando a problemática do corpo da mulher negra. As feministas e os estudos de gênero também não podem dispensar a presença dela. Entre estudos sobre urbanização, aproveitamento do lixo, discussão sobre o papel de mães solteiras, migração, enfim, de tantos aspectos que compuseram a vida de Carolina, não há como dispensá-la. 
 
Por que fazer esta doação agora?
A presente doação para a UFMG, para o Arquivo de Escritores Mineiros, é desdobramento de outras atitudes que corresponderiam a um projeto acadêmico. Em primeiro lugar, o ponto de partida para Levine e eu foi sem dúvida a parceria no "Cinderela Negra". Diria que foi depois deste esforço que se ampliou o debate sobre essa escritora. Foi em consequência disto que a família nos doou o material que, depois de preparado, foi devolvido ao clã. Esses cadernos, aliás, foram em seguida doados, pelos familiares, à cidade de Sacramento, onde Carolina nasceu. Em função do sucesso de nosso livro, logo depois do falecimento de Levine, resolvi publicar os poemas de Carolina em um volume que recebeu o nome de "Antologia Pessoal".

E os demais inéditos?
A ideia era publicar em seguida o teatro e os romances, mas tivemos muita dificuldade em encontrar editoras interessadas em arriscar, pois, curiosamente, desde então os estudos relativos a este tema se voltaram mais para a mitificação da Carolina como personagem e a repetição ad nauseam de trabalhos sobre o "Quarto de Despejo". Eram outros tempos e o debate sobre a norma culta e sobre a representatividade social ainda engatinhavam. A doação se explica agora como tentativa de animar grupos interessados e capazes de promover o conjunto da obra de Carolina. E ninguém pode ser mais interessado nisto do que os colegas mineiros.

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