Além do mártir: jornalista e escritor Lucas Figueiredo lança biografia de Tiradentes

Jéssica Malta
Hoje em Dia - Belo Horizonte
06/08/2018 às 17:09.
Atualizado em 10/11/2021 às 01:47
 (Pablo saborido/Divulgação)

(Pablo saborido/Divulgação)

Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi um dos personagens mais importantes da História brasileira. Não por acaso, sua figura tem status mítico e já foi apropriada por diferentes movimentos políticos – da esquerda à direita. Mas, embora sua importância seja reconhecida, o “mártir da Inconfidência” não possuía uma narrativa histórica que remontasse toda a sua trajetória e contasse seus feitos para além de sua participação na Conjuração Mineira.

Foi da ausência desse registro que o jornalista e escritor belo-horizontino Lucas Figueiredo partiu para mergulhar em arquivos e documentos a fim de reconstituir e contar a vida do alferes. Vencedor de três prêmios Esso, dois Vladimir Herzog e um Jabuti, o escritor conversou com o Hoje em Dia sobre a obra “O Tiradentes – Uma biografia de Joaquim José da Silva Xavier”, lançada na última semana e que deu ao mártir sua primeira biografia moderna.


O que te motivou a mergulhar na história de Tiradentes e produzir sua biografia?

Entre 2009 e 2010, escrevi “Boa Ventura! A Corrida do Ouro no Brasil (1697-1810)”. Ao pesquisar sobre a Conjuração Mineira, percebi que Tiradentes não tinha uma biografia moderna, que contasse sua história do nascimento à morte. A bibliografia disponível se resumia basicamente a dois tipos de livros: os que se preocupavam em cultuar o mito e os trabalhos acadêmicos. Esses últimos, mesmo que alguns sejam excelentes, tratam da relação de Tiradentes com a Conjuração Mineira. Por incrível que pareça, mais de 200 anos após a sua morte, um personagem central na história do país ainda não tinha um livro que contasse toda sua incrível trajetória. Essa lacuna, é claro, não existia à toa: foi extremamente difícil recompor a história de Tiradentes, sobretudo o período pré-conjuração.

Como foi o processo de produção e de pesquisa do livro?

A pesquisa durou cinco anos. A primeira grande tarefa foi esquadrinhar o processo jurídico da Conjuração. Foi um trabalho duro. Os Autos da Devassa contêm mais de 300 depoimentos, a maioria repleta de mentiras e dissimulações, isso sem contar a manipulação do processo feito pelas autoridades da Coroa –nunca é demais lembrar que os autos são a versão da monarquia sobre um movimento de feições republicanas, uma versão extremamente manipulada. Depois de tabular os autos, refiz o caminho dos acadêmicos, pesquisando em arquivos do Brasil e de Portugal. E então passei aos arquivos menos pesquisados, como “The Thomas Jefferson Papers” e “The National Archives”, ambos de Washington. Por fim, pesquisei em dois arquivos franceses que ainda não tinham entrado na mira dos pesquisadores, os “Archives Diplomatiques/Ministère des Affaires Étrangères” e os “Archives Nationales/Fonds des Affaires Étrangères”.

Existiu algum lado da figura de Tiradentes que você optou por dar mais destaque na obra?

Meu objetivo foi resgatar sua trajetória, do nascimento à morte, deixando de lado todo o mito Tiradentes que foi construído ao longo da história. Contei sobre sua infância, sua juventude, sua vida afetiva, a tentativa de constituir uma família, o relacionamento com uma garota 25 anos mais jovem que ele que lhe rendeu uma filha, Joaquina. Conto como ele exerceu diversas atividades (mascate, fazendeiro e minerador) e sua carreira de 14 anos no Regimento de Cavalaria. Mas também reconstituo sua trajetória na Conjuração Mineira. Portanto, procurei tratar da história do homem, sua vida privada e também sua atuação política.

Reconstituindo essa história, o que você concluiu? Quem foi, afinal, Tiradentes?

Joaquim era uma figura singular nas Minas setecentistas. Não era nem pobre nem rico. Apesar de não ter tido estudo formal, sabia ler e escrever. Em uma época em que os tratamentos médicos e odontológicos eram repletos de práticas obscurantistas, foi um excelente tira-dentes, protético e médico prático. Além de militar e dentista prático, foi também mascate, fazendeiro, minerador e tentou ser homem de negócios: alguns de seus projetos, como transportar passageiros e mercadorias em balsas na baía de Guanabara e canalizar água dos subúrbios do Rio de Janeiro para vender no centro da cidade, foram adotados a partir do século XIX. Ele era também um homem intenso, que fazia tudo ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo em que tramava a independência de sua terra-natal e se preparava para uma guerra para implantar a república, ele lutava na burocracia colonial e do Reino para obter autorização para seus projetos de infra-estrutura no Rio, queria viajar a Portugal e teve uma confusa relação amorosa com Antônia Maria do Espírito Santo (ele tinha 40 anos; ela, 15). Na cúpula da Conjuração Mineira, tinha um perfil bem diferente de seus pares. Não era da turma dos letrados, tampouco dos oligarcas (da burocracia colonial, da agropecuária, do comércio, dos negócios). Mas em função de sua capacidade de ação e de seu destemor, acabou ocupando uma das posições centrais no grupo. E, durante a repressão, teve um comportamento muito diferente de seus pares e um final igualmente singular.
 

Quais foram os mitos a respeito dele que você desconstruiu a partir da pesquisa?

Muitos. Dou três exemplos. O Tiradentes de barbas longas e feição à la Jesus Cristo é uma criação fantasiosa. A única coisa que se pode dizer sobre Tiradentes é que tinha pele clara e ficou com os cabelos brancos por volta de 40 anos. Tiradentes não foi pobre, como muitos dizem, mas também não foi rico. E antes de se tornar um rebelde, ele foi um servidor exemplar da administração colonial, combatendo a sonegação e o contrabando, como queria a Coroa.

Durante os cinco anos de pesquisas, qual foi a descoberta mais curiosa que você fez a respeito de Tiradentes?

Sua vida privada é muito interessante. Aos 40 anos, ele se apaixonou por uma garota de 15, Antônia Maria do Espírito Santo. Eles não se casaram, mas ela foi morar com ele, o que foi um escândalo na época. Tiveram uma filha, Joaquina, que foi reconhecida por Tiradentes. E o relacionamento teve um final inesperado: não conto mais para não dar spoiler...

Tiradentes foi uma figura política muito importante. Você acredita que a relação dele com esse campo traz também certa atualidade ao livro? Ainda mais neste momento em que a política tem sido tão debatida na sociedade?

Depois de sua morte, Tiradentes ficou meio século esquecido. Foi resgatado em meados do século XIX pelo movimento republicano, que precisava de um herói para ilustrar seu projeto – é quando surge a figura fantasiosa de Tiradentes de barbas longas, à la Jesus Cristo. De lá para cá, a história de Joaquim foi seguidamente manipulada e apropriada por movimentos dos mais diversos matizes, mas sempre no papel de herói. Basta dizer que ele é patrono da Polícia Militar de Minas Gerais e serviu de referência para alguns grupos da esquerda armada nas décadas de 1960 e 1970, como o MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes). Portanto, Tiradentes hoje são muitos. E cada um tem o seu – só para lembrar, recentemente, Lula, na cadeia, e Temer, na Presidência, recorreram a figura dele para justificar suas trajetórias. É sempre assim: toda vez que nos vemos em uma sinuca de bico, sejamos de direita, de centro ou de esquerda, recorremos a Tiradentes para tentar explicar o Brasil e os brasileiros. De certa forma, sua figura complexa é o reflexo de uma nação difícil de ser explicada.
 

O caso de Tiradentes foi a primeira delação da história? Esse é também um dos motes do livro?

Diferentemente do que muitos pensam, a delação de Joaquim Silvério dos Reis não foi a primeira ocorrida no Brasil. A Coroa Portuguesa sempre recorreu as delações premiadas para manter os colonos sob vigilância.

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