As impressões de um pai maduro diante de sua filha recém-nascida

Elemara Duarte - Hoje em Dia
23/06/2014 às 08:28.
Atualizado em 18/11/2021 às 03:06
 (Renata Massetti)

(Renata Massetti)

Repórter: “João, boa noite!” João Anzanello Carrascoza: “É a entrevista, não é? Tranquilo?”. Repórter: “Tranquilo. Então, a sua pequena Bia, do seu lançamento ‘Caderno de Um Ausente’, fez aniversário dia 31 de abril. Um aninho, que fofura, hein?”. João: “Seria um ano” (risos). Repórter: “Seria???” Mas a bebê está com quantos anos?” João: “Não tem bebê.” (risos) “É só uma ficção. Começa com ela nascendo e termina com um ano”. (risos) Repórter: “Jura? Tudo, tudo? Mas é tão real”.

O diálogo é “vero” e a sensação de que é tudo (ou quase tudo) é verdade no livro novo de Carrascoza também. Ponto para a habilidade do escritor, neste que é seu segundo romance. “Veio de uma inquietação em tematizar uma vivência que é possível de acontecer comigo. Tenho 51 anos. Meu personagem tem quase 60. Posso ter filho. Como seria esta vida? É falar de uma vida que chega, por meio de outros fins, inclusive o fim da vida”, constata João, que se notabilizou na literatura como contista.

Atualmente casado com uma mulher de 35 anos, a quem dedica o livro, João pode estar sendo profético. Redator de propaganda e professor universitário, o escritor, agora, transpõe uma possibilidade afetiva da própria vida aos seus leitores. A história narrada em primeira pessoa chega agora ao mercado em um delicado livreto, lançado pela editora Cosac Naify, com capa “cor de pele”.

“É como esses cadernos de anotações. A história mostra esse pai apresentando, pela lente dele, a visão de mundo para a filha”.

O livro reúne impressões do narrador para a filha recém-nascida, Beatriz, a “Bia” já devidamente apelidada por ele. Antevendo que não acompanhará a maturidade da menina meio “temporona”, por causa da distância etária, o narrador, identificado como “João”, também faz reflexões filosóficas e poéticas sobre a trajetória de uma vida.
 
Obviamente que o sincero relato, mesmo delicado, é atravessado por um pouco de melancolia. Afinal, certos fins não são desejáveis: “Logo, tua mãe terá tantos afazeres, que se esquecerá deste livro, concebido, aliás, só para esses primeiros dias de espanto; em breve, filha, os teus progressos não serão mais anotados no papel, mas em nossa carne e em nossa memória, especialmente na tua, porque a dor de dente é menor na boca alheia, as angústias não podem ser partilhadas ainda que queiramos, somente nós mesmos sabemos (sabemos?) o bem e o mal de ser quem somos”.
 
Como presente, a visão do mundo
 
E você é filho de “pai-avô” também, Carrascoza? “Não, não... Sou do tempo em que os casais tinham um monte de filhos. Somos seis. Sou o terceiro. A escada estava começando”, conta. O escritor diz que este fenômeno tem se tornado cada vez mais comum. E tem uma certa razão.

Depois dos 60 anos, acordar à noite para trocar a fralda do filho de oito meses não é tarefa das mais divertidas. Mas o consultor em produção cultural, Julio Pires, 63 anos, tem é um grande orgulho disso. “Estamos desmamando o Murilo. Se ela (a esposa, 30 anos mais jovem) for ao berço, ele vai querer mamar. E ‘pai-avô’, não! Sou pai”, exige o consultor, bem humorado. “Entendo que é um pouquinho destoante do padrão”.

Julio Pires tem um quarteto masculino de herdeiros. Os mais jovens são Heitor e Murilo – o primeiro com 3 anos, o outro com oito meses. Os mais velhos, Pedro e Ivan, têm 29 e 18 anos. “A decisão de ter filho não envolve o filho propriamente, mas a parceria, se há afinidade. Depois que nascem, descobre-se a grande viagem que é ter filhos pequenos de novo”, salienta.

E bota viagem nisso. Hoje, o consultor diz ter mais tempo para ficar com os pequenos. “Com os outros, estava no auge da atividade profissional”, justifica. E sobre a possibilidade de não conviver com eles até a maturidade dos meninos, nada de angústias: “Tenho muito tempo pela frente”.

Coração aberto

E Carrascoza, o narrador, continua a abrir o coração: “... Bia, tenhamos a sorte, tão comum à maioria dos pais e filhos (eu já a tive com teu irmão), de nos abandonarmos às tardes de preguiça, de nos esquecermos hora após hora, na modorra dos dias cálidos, e que possamos num feriado qualquer montar juntos um imenso quebra-cabeça de mil peças – para que, sem te dares conta, comeces a entender o quanto somos feitos de fragmentos...” É bonito.
 

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