Celton enfrenta a crise com computação gráfica e história sobre Tiradentes

Paulo Henrique Silva
phenrique@hojeemdia.com.br
02/02/2018 às 19:29.
Atualizado em 03/11/2021 às 01:07
 (MAURÍCIO VIEIRA)

(MAURÍCIO VIEIRA)

Enquanto a chuva cai impiedosamente do lado de fora, num quarto apertado da rua Diametral, no bairro Sagrada Família, Celton se prepara para a sua maior aventura. O herói que já enfrentou a Loira do Bonfim, o Capeta do Vilarinho e o Fantasma de Ouro Preto, vendendo cerca de um milhão de revistinhas em três décadas, quase se deixou vencer pela crise econômica em 2017, mas ganhou mais “super poderes”, principalmente vindos da eletrônica, para dar a volta por cima neste ano. O gibi oferecido aos motoristas em semáforos e frequentadores de bares da Savassi completará 40 números com uma elaborada minissérie dedicada à Inconfidência Mineira, que marcará também a despedida dos desenhos feitos totalmente à mão. “Estou muito entusiasmado!”, vibra o desenhista Lacarmélio Alfêo de Araújo, também conhecido pelo nome de sua cria, ao apontar para um computador no canto de quarto, onde rodam vários programas de computação gráfica. Figura folclórica de Belo Horizonte ao carregar uma placa enorme pelas ruas, em trajes geralmente amarelos, o artista adiou o quanto pôde a passagem do herói para o mundo dos bytes, sendo encurralado por um poderoso inimigo que até então desconhecia: a falta de dinheiro. “As pessoas que sempre compravam diziam que não tinham R$ 3. Na época, lancei uma revista que fracassou, ‘O Pinto Caído’, porque achavam que era de sacanagem”, lembra. 

“Quando fiz uma revista sobre o nascimento de Jesus, eu contei a história da forma como aprendi. Minha mãe era católica e Maria teria tido Jesus virgem. As pessoas de outras religiões não gostaram. Uns jogaram pedras. Outro esfregou a Bíblia na minha placa para tirar o demônio dali. Também já quase apanhei de político do PT, no centro, quando falei da crise”

 Com problemas financeiros, ele resolveu reeditar três números antigos de uma vez só, que também não surtiram o resultado esperado por terem sido muito vendidos na época do lançamento – “O Embate da Sogra contra o Capeta”, de 2012, por exemplo, chegou a 80 mil exemplares. “Depois de 30 anos, tendo comprado este apartamento com o que ganhei, fui ao fundo do poço. Mas prometi que iria me reerguer”, registra Celton. Fórmula HQA revistinha que será protagonizada por um Tiradentes destemido é a chance do desenhista ir à forra. Os cinco anos que se dedicou ao estudo de computação gráfica – e os R$ 10 mil gastos na compra de equipamento – o levaram a descobrir a “fórmula HQ”. Com ela, Celton espera lançar uma revista por mês e alçar outros voos. “Poderei investir mais no roteiro. Muitas vezes cortava cenas porque não teria tempo para desenhá-las”. Ele não pretende abandonar o preto e branco das páginas internas, mas já vislumbra uma repaginada no seu principal personagem. “Se eu criasse o Celton com a cabeça que tenho hoje ele seria bem diferente”, confessa. Atento às mudanças sociais, logo deverá apresentar um novo herói: Tambo, chefe de uma aldeia africano que se deixa ser capturado para encontrar sua amada, tornada escrava no Brasil. N/A / N/A

Celton recorre à computação gráfica para desenhar as primeiras páginas da próxima revista, dedicada à Inconfidência Mineira Inconfidência Mineira com espionagem e “governo corrupto” Além de mergulhar em dezenas de livros históricos, Celton já viajou duas vezes a Ouro Preto para pesquisar a vida de Tiradentes. Ficou surpreso com a falta de conhecimento da população sobre a localização das casas dos inconfidentes. “Geralmente a pergunta era: ‘quem?’”, assinala o desenhista. Ele voltou com centenas de fotos de pontos fundamentais da Inconfidência Mineira, reconstruindo a Vila Rica de Tiradentes em 3D. No computador de casa, ele “caminha” pelas ruas, mostra diversos ângulos de lugares como a Casa dos Contos, esconderijo dos inconfidentes, e o Museu da Inconfidência, antiga Casa de Detenção. “Quando eu fui ler a fundo sobre o tema, vi que ali tinha uma grande história para uma revista, com os elementos característicos da ‘Celton’, como aventura, espionagem, governos corruptos e romance”, destaca o artista, que faz questão de frisar que se trata de uma adaptação livre. O entusiasmo de Celton é tão grande que, no passado, ele lançou a edição 39 sem nenhum quadrinho, apenas com informações sobre a Inconfidência Mineira, enumerando fatos históricos que inspiraram a revolução mineira, como o Iluminismo e a guerra pela independência dos Estados Unidos. Cada edição é lançada com 5 mil exemplares. “Do contrário, não conseguiria retorno do investimento”, explica. Com uma moto CG 250 95/96, ele se dirige principalmente para pontos de congestionamentos da cidade. Uma de suas regras é não abordar os motoristas. “Apenas fico parado com a placa”, detalha. Em busca de trânsitos complicados , ele já foi para São Paulo e Rio de Janeiro. Nas Olimpíadas de 2016, ficou sabendo que o governo tinha interditado uma das principais vias de acesso ao evento, o que causaria um caos no entorno, e não pensou duas vezes. Mas ao chegar na Cidade Maravilhosa, o prefeito tinha liberado o trânsito. Ziguezagueando entre os carros, já entregou muitas revistas sem receber o pagamento por elas, com o veículo saindo ao abrir o sinal. “Mas isso não me incomoda. O que não esqueço até hoje é da vez que um passageiro de ônibus deu o dinheiro e o motorista não esperou eu dar a revista”, lamenta. N/A / N/A

Com a CG 250 95/96, o desenhista já viajou para várias cidades de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo Encontro com traficantes no Rio de Janeiro Celton não deverá voltar ao Rio de Janeiro tão cedo, depois de passar por um episódio que, como ele mesmo admite, mereceria figurar numa das histórias da revista. “Sempre fico em um pequeno motel em Niterói, mas na última vez que fui o atendente já não era mais o mesmo. Uma mulher me recebeu com aquele linguajar de malandro, chamando-me de ‘parceiro’. Achei tudo muito estranho e fui perguntar ao dono do bar ao lado, que se tornou meu amigo, e ele me contou que os traficantes tinham tomado o lugar. Mas disse que eu poderia esperar até o dia seguinte para sair, já que precisavam de gente normal como eu para servir de fachada. À noite não consegui dormir, ouvindo gente andando para lá e para cá. Meu quarto não tinha tranca, imagina. Assim que amanheceu, comecei a levar as revistas para a moto. E quando só faltava pegar a mala de roupa, um cara estava no quarto, mexendo nas minhas coisas. Imediatamente fui ao zelador, que correu para o quarto e chamou a atenção do traficante, dizendo que ele estava atrapalhando o negócio (ameaçando alguém que servia como fachada). Pensei que iria direto para o inferno”.

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