Chico Pelúcio: "O FIT é uma butique de espetáculos"

Paulo Henrique Silva - Hoje em Dia
19/05/2014 às 07:23.
Atualizado em 18/11/2021 às 02:38
 (Eugênio Moraes)

(Eugênio Moraes)

Galpão começou sua história, em 1982, driblando o período de repressão militar sobre pernas-de-pau num espetáculo apresentado nas ruas da capital mineira. Pouco mais de 30 anos depois, os espaços públicos são uma realidade cada vez mais distante para o grupo teatral mineiro, um dos mais importantes do país. A razão não está nos ingressos cobrados em teatros fechados. “Belo Horizonte está caminhando em passos ligeiros no aumento da burocratização para a liberação da ocupação nas ruas”, critica Chico Pelúcio, um dos criadores do Galpão, que lamenta “a gana financeira” da administração municipal ao se criar taxas.

O ator, que também já esteve do “outro lado do balcão” quando foi presidente da Fundação Clóvis Salgado, em 2005 e 2006, também condena a “falta de resíduos” de um dos maiores programas culturais da cidade: o Festival Internacional de Teatro de Palco & Rua (FIT).

Definindo a iniciativa, que está em sua 12ª edição, como uma “butique de espetáculos”, Pelúcio registra que os organizadores estão mais interessados no evento e menos na formação, na continuidade, em parcerias e fomento. Nesta entrevista ao Hoje em Dia, ele observa ainda que o FIT não tem sua memória resguardada e lamenta a falta de diálogo com a comunidade artística. “É uma caixa preta, concentrada nas mãos de algumas poucas pessoas”, analisa.

Apesar de ter criado, em 1981, a Associação Galpão, que posteriormente culminou no grupo teatral, a sua entrada definitiva só aconteceu três anos depois, quando retornou de uma viagem a Londres. A partir daí, sua trajetória artística passa a se confundir quase por completo com a história do Galpão, assumindo várias funções, especialmente no trabalho de gestão. Três décadas depois, qual a sensação de estar à frente de uma das maiores companhias do país?

Às vezes, ainda penso que não sei o que fazer da vida quando crescer (risos). E quando você olha que 30 anos já se passaram, a sensação é a de construção de uma história. A perspectiva de, dentro de uma área tão instável e fugaz como é o teatro, estabelecer uma história que possa deixar legado e contribuir para a construção de uma sociedade mais bacana e de um cidadão mais sensível, consciente e generoso, é o que nos segura nos momentos mais difíceis. Esse trampolim que é o Galpão acaba abrindo outras portas. Não trabalhei apenas no Galpão, mas a fidelidade artística nos faz montar uma história ramificada, cheia de tentáculos e raízes, em que os integrantes do grupo têm participação no Brasil inteiro e em diversas linguagens. Transitamos pelo cinema, pela TV e até mesmo na área de gestão pública. Criamos eventos, como o FIT, assumindo a coordenação-geral das três primeiras edições.

Você avalia que, após se tornar um dos mais importantes festivais de teatro do Brasil, o FIT evoluiu em suas propostas, alcançando um estágio que o grupo já projetava? Em seu início, por exemplo, o festival era muito mais rua do que palco.

O grande charme do FIT é a combinação entre palco e rua, espaços abertos e fechados e centro e periferia. Mas é, sobretudo, o encontro com o espectador nos espaços públicos. O FIT nasce na rua não à toa, pois já tinha essa vocação para a rua. O festival é uma consequência dos bailes de rua, do teatro de rua, dos bares, do Festival de Inverno. E acho que ele não evoluiu quase nada. A gente sabia que tinha um potencial muito grande. Em 1990 e 1992, fizemos as duas primeiras edições do Festin (Festival Internacional de Teatro de Rua de Belo Horizonte) e, em seguida, a Prefeitura nos propôs uma parceria para trazer o palco em 1994. Aceitamos e inventamos, formatamos e coordenamos o primeiro FIT, que estourou a boca do balão na época. Depois disso nos desentendemos com a administração municipal e saímos, mas o formato continuou sendo o mesmo. Naquela época, já tinham as oficinas, os pontos de encontro.

O que você conceberia como um FIT inovador e em sintonia com o processo teatral de hoje?

O grande problema do FIT é que ele não deixa resíduo na cidade, consumindo uma verba muito alta da Prefeitura. Esse gasto público só se justificaria se deixasse um ganho, artístico ou de mercado, para a produção local. O FIT nunca buscou caminhos muito fortes, consequentes e eficientes nesse sentido. É apenas um evento que, a cada edição, “desaparece” e volta dois anos depois, com outra edição. O festival está falando a mesma língua daquilo que a gente critica muito na área cultural, que é estar mais interessado no evento e menos na formação, na continuidade, em parcerias e fomento. O FIT virou uma butique de espetáculos.

Uma vitrine frágil que não deixa resíduos para Belo Horizonte. Poderia manter algumas atividades durante o ano, como intercâmbio, coproduções, palestras, oficinas... Uma série de possibilidades que ocupasse esse intervalo de dois anos entre um festival e outro. Um problema bastante sério é que o FIT não tem nada de sua memória resguardado. Há uma ou outra publicação, mas a memória ficou jogada ao longo desse tempo. Segundo problema, igualmente sério: há muitos anos o FIT não abre uma discussão com a comunidade artística. É uma caixa preta, concentrada nas mãos de algumas poucas pessoas. Não experimentou uma vez só a possibilidade de abrir um seminário para discutir e receber críticas e elogios.

Essa burocratização também reflete, num olhar mais amplo, o fazer teatral atual. No blog do Galpão, Eduardo Moreira observa que, antes, ao buscarem montar um novo trabalho, os grupos iam para a sala de ensaio. Hoje, primeiramente escrevem um projeto e esperam que ele seja aprovado, condicionando a prática à liberação de recursos. Como você enxerga esse cenário?

Vejo de uma forma muito simples: de uns 20 anos para cá, a cultura se profissionalizou. Antigamente a gente montava espetáculos com permutas, pouco dinheiro e não vivíamos integralmente de teatro. Não tínhamos filhos (risos). O mercado em si não era profissional. Todo mundo que se envolvia tinha outra atividade para sobreviver. À medida que o mercado foi se profissionalizando, ficou muito difícil montar uma peça sem ter financiamento. A lógica mudou um pouco: primeiro temos que ter a vontade, depois o projeto e dinheiro e, por último, a efetivação desse desejo. E o Galpão teve que acompanhar isso. Ao mesmo tempo, nesse momento estamos fazendo alguns workshops por conta própria, sem dinheiro. Queremos montar uma história, mas sem esses pré-requisitos, até para quebrar um pouco essa lógica. Do contrário, ficaremos muito limitados.

Vocês enfrentaram muitas dificuldades, no ano passado, para encontrar um espaço público no Rio de Janeiro que abrigasse o espetáculo “Os Gigantes da Montanha”, devido, principalmente, à burocracia. Hoje há mais dificuldade de se apresentar na rua do que há 30 anos?

Minas Gerais não tem teatro de rua porque a legislação é tão rigorosa e chata que as pessoas evitam fazer na rua. Belo Horizonte está caminhando em passos ligeiros no aumento da burocratização para a liberação da ocupação nas ruas. Para o Galpão se apresentar na rua, hoje, é muito caro. Vou usar uma palavra forte para resumir essa situação: é vergonhosa a gana financeira da Prefeitura para criar taxas e cobranças na ocupação de espaços públicos. Tem uma história, de um amigo nosso, que foi se apresentar no Santa Tereza com toda a estrutura necessária, inclusive banheiros químicos e lixeiras. Aí ele foi na Regional Leste e foi avisado que tinha que pagar uma taxa de coleta de lixo. Diante da negativa dele, o funcionário foi perguntar para o chefe o que fazer, e voltou dizendo que ele só precisaria pagar a taxa de fiscalização da limpeza.

O grupo nunca abriu mão do risco em sua trajetória e uma prova disso é o fato de não manter um diretor fixo, buscando nomes que possam agregar novos elementos. Apesar disso, percebemos uma identidade que amarra todos esses espetáculos. Como vocês conseguem manter essa característica?

Isso é um mistério para nós também. A gente se caracteriza como um grupo de atores, apesar de vários integrantes, como eu, o Eduardo (Moreira) e o Júlio (Maciel), já terem dirigido não só as peças do grupo, como “fora” também. A questão da direção, na verdade, é um acidente de percurso. Isso nos levou a trazer diretores convidados, que nos apresentam coisas novas. É uma forma de a gente aprender. O que fica é a composição humana, com atores que têm uma experiência artística, muscular e intelectual, que, bem ou mal, acaba impregnando os espetáculos, mesmo quando trabalhamos com diretores de diferentes processos, métodos e textos. Esse DNA do grupo acaba indo para o espetáculo. Outro aspecto é a vontade de dar continuidade ao trabalho. A grande briga hoje, nossa e de outros grupos, é a possibilidade de continuidade.

Uma preocupação forte no grupo é o seu legado. Com integrantes, em sua maioria, na faixa dos 50 anos, o que você projeta, por exemplo, para daqui a duas décadas? Continuarão sobre um palco?

(risos) A gente faz muita piada sobre isso. Brincamos que, daqui a 20, 30 anos, estaremos de cadeira de rodas, bengala e andador, aguando um canteirinho. Quando você me faz essa pergunta, agora falando sério, a resposta literalmente concreta que tenho para lhe dar é a criação da nova sede, no bairro Esplanada. O teatro é autofágico, só existe para quem viu. Dessa forma, o que a gente vislumbra como legado é um espaço físico que abrigaria um pensamento, um processo e uma série de valores e informações. Algo que o espetáculo em si não deixa. No projeto da sede, há uma cortina de bambu de cana da Índia em cada andar. Imagino que, quando estivermos velhinhos, estaremos com uma mangueirinha de água, cuidando do jardim e gritando um para o outro: “Teuda! Molha do lado de lá que está seco!”.

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