Detentas produzem revista 'A Estrela' em BH

Jéssica Malta
jcouto@hojeemdia.com.br
29/09/2017 às 18:24.
Atualizado em 15/11/2021 às 10:48
 (Divulgação/A Estrela)

(Divulgação/A Estrela)

A alegria era um sentimento evidente em cada um dos rostos das sete mulheres privadas de liberdade que ali estavam. Pode parecer estranho, dadas às circunstâncias, mas elas tinham um bom motivo para isso.

Sentadas em cadeiras verdes, trocando risadas, abraços e uma cumplicidade que vai além da compreensão de quem está “do lado de fora”, elas aguardavam ansiosamente pelo resultado do seu trabalho: a revista “A Estrela”, periódico produzido exclusivamente por elas, detentas.
Apesar de serem sete presentes, outras nove também participaram da produção – seis delas já em liberdade. Recuperandas do Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto (Piep), em Belo Horizonte, elas representavam, além delas mesmas, outras milhares de mulheres em situação similar.

Durante cinco dias – período de duração do curso, em que tiveram aulas de jornalismo e fotografia – as participantes se debruçaram em suas histórias, suas vivências e experiências. Com câmeras nas mãos e palavras na ponta da língua e do lápis, elas registraram um olhar que ia muito além dos muros e de seus uniformes alaranjados. Elas deixaram de ver a prisão como uma definição e passaram a ver como uma circunstância, um momento. Elas descobriram que podem mudar.

Karinne Cândido, umas das participantes do projeto, é um dos exemplos dessa descoberta. “Desde que cheguei, eu ainda não tinha trabalhado na unidade, porque tenho síndrome do pânico. Eu não conseguia me encaixar nas oficinas e, também, não podia estudar porque já era formada”, conta. “Eu me sentia mais presa ainda, mas depois da “Estrela” eu transformei minha maneira de ver e de pensar nas coisas. Agora vejo que posso correr atrás da minha melhora, posso correr atrás de um futuro melhor. Eu vejo que não sou presa, apenas estou presa”

Animada e com brilho nos olhos, ela conta que o projeto modificou até mesmo seus planos. “Estudei até o quarto período de Direito, mas agora não quero terminar mais. Quero fazer Assistência Social. Meu sonho é trabalhar para ajudar as pessoas, porque assim vou fazer a diferença”.

Outra que reforça o coro é Elem Rodrigues, que também participou do projeto. Ela destaca a importância de apresentar não só o olhar de dentro da penitenciária, mas também o desejo de se transformar. “A gente pôde mostrar o nosso lado, que é um lado de quem quer mudança”, afirma. “Tenho seis filhos e não quero essa vida para mim. A revista me inspirou. Depois dela, subi para o albergue (situação que permite que o detento saia para trabalhar durante o dia e volte à noite para dormir) e comecei a trabalhar. O projeto me amadureceu e me ensinou que eu posso mudar”, completa ela, sempre com um sorriso estampado no rosto e olhar atento às movimentações, para não perder a apresentação de lançamento da revista.

Para além do desejo de mudar: os muitos e importantes significados da “Estrela”

"Muita gente me conheceu sendo sempre alegre, mas não sabia da minha história”, diz uma das participantes. Com um sorriso estampado no rosto, ela, que não quis se identificar, foi a responsável por inspirar muitas de suas companheiras de curso. Com o título de “Guerreira”, a participante compartilhou sua história na revista – episódio apontado quase em unanimidade como o mais marcante da edição.

A trajetória da Guerreira é forte. Ela sobreviveu a várias tragédias: a morte da mãe e a consequente tentativa de tirar a própria vida. Mais tarde, foi alvejada com cinco tiros. Em outra ocasião, outros nove. A única sequela fica na mão, mas ela garante que está tratando e vai passar.

Assim com passou o medo de narrar sua trajetória, quem sabe? “Às vezes eu chorava dentro da cela. Eu queria poder contar, mas eu tinha medo, porque algumas pessoas riem das coisas que acontecem na vida da gente. Mas aí eu fui criando coragem e contei a minha história. Agora praticamente todo mundo sabe”, diz em tom de alívio.

Antes acuada e amedrontada, Karinne Cândido também dá créditos à experiência. “Eu fugia de tudo, fugia dos problemas, do mundo”, lembra. “Compartilhar minha história foi uma libertação. Minha família tem vergonha de mim e eu acho que eu não mudaria se não tivesse me libertado. Percebi que ninguém tem que ter vergonha por mim, eu que tenho que ter vergonha do que fiz e querer mudar”.

Mas “A Estrela” se multiplica em outros muitos sentidos. Para Laurecy Oliveira, foi uma oportunidade de homenagear a filha. “Ela também é uma estrela, por isso fiz questão de colocar o nome dela no centro”, diz ela apontando para a estrela símbolo da edição, feita em parceria com o arista plástico Sérgio Faleiro.

Para Patrícia Grasiele – protagonista da capa – a experiência trouxe a descoberta de um sonho: ser rapper. “Não sabia que tinha esse dom”, conta ela, minutos depois de vibrar com a estreia do clipe gravado no presídio.

A Publicação

Idealizada pela jornalista ]Natália Martino e pelo fotógrafo Leo Drumond, a revista “A Estrela” – que teve a primeira edição lançada em novembro de 2014 – surgiu com o objetivo de ser um canal de expressão para pessoas privadas de liberdade. “Não temos pretensão de formar um jornalista ou um fotógrafo em uma semana. Pensamos na ‘A Estrela’ funcionar como uma ponte com o mundo. Que a revista seja esse meio, essa mensagem”, ressalta fotógrafo.

Os olhos curiosos, que brilhavam a cada página folheada, indicam que a iniciativa foi além de pensar o mundo do aqui e agora, às levando para novas constelações, permitindo que elas encontrassem novas possibilidades no futuro e, principalmente, nelas mesmas.

 Editoria de Arte

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