Diretora Daniele Avila Small fala sobre crítica teatral, trajetória nas artes e relação com Minas

Thiago Prata
@ThiagoPrata7
14/06/2020 às 15:21.
Atualizado em 02/02/2022 às 18:38
 (Guto Muniz/Divulgação)

(Guto Muniz/Divulgação)

Doutora em Artes Cênicas pela UNIRIO, mestra em história social da cultura pela PUC-Rio e bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO, autora do livro “O Crítico Ignorante” (Editora 7Letras, 2015), idealizadora e editora da revista “Questão de Crítica”, diretora e produtora de teatro... Esta é apenas uma parte do currículo da carioca Daniele Avila Small.

Referência no cenário da crítica de teatro em âmbito nacional e curadora de vários festivais, ela conversou com o Hoje em Dia sobre um curso que dará a artistas e amantes do teatro (inscrições neste link), via zoom, nesta segunda-feira (15), a relação com Minas Gerais, o cenário da arte e projetos à vista.

Nos fale primeiramente sobre a ideia da oficina de crítica de teatro online “Crítica de Artista, Crítica de Arquivo”. Como funcionará e qual seu maior objetivo?
Ela vai funcionar através do zoom, com turma reduzida. São seis aulas dispositivas com temas específicos já divulgados no site. Em cada uma dessas aulas, vou expor ideias e questões sobre os temas. E, depois, haverá um tempo para interação entre os participantes, para dúvidas, conversas, comentários... Depois desse período de seis aulas, haverá mais 15 dias, em que os participantes vão entregar um texto, que eu vou revisar, dar dicas, fazer comentários, apontar problemas. O maior objetivo do curso é estimular a escrita sobre o teatro neste momento, seus contemporâneos, seus próprios trabalhos para desenvolver a prática e o gosto pela escrita. É muito importante para o teatro e a dança que os artistas se dediquem a produzir o saber das artes cênicas.

Qual análise você faz dos espetáculos filmados de uma forma geral?
Acho difícil falar de uma forma geral, porque os recursos que os artistas têm para fazer esses registros são muito diferentes. Se formos pensar, por exemplo, registros de espetáculos internacionais, em países onde há políticas públicas fortes, não só para produção das peças, mas para produção de história, para registro de espetáculos, são muito diferentes dos de um artista ou grupo que faz um vídeo com investimento próprio, tirando um pedaço do seu cachê para pagar alguém para filmar e editar sua peça. Então, os espetáculos filmados têm diferenças no que diz respeito aos recursos. Os espetáculos filmados, mesmo os que não possuem uma qualidade cinematográfica – porque alguns têm qualidade cinematográfica –, podem ser um convite aos espectadores, para que esses olhem o teatro de outra maneira, conheçam um pouco mais sobre teatro e possam despertar o desejo de ir ao teatro, quando for possível frequentar os espaços culturais e as ruas novamente com alguma aglomeração. Impossível fazer isso agora. Então, o teatro filmado pode despertar esse desejo ou provocar uma saudade de ver ao vivo.Guto Muniz/Divulgação

Todo ator de teatro que entrevistei recentemente diz que as lives não são o teatro em sua completude, porque uma peça teatro tem de ser junto ao público, e que a lives seriam outra coisa. Mesmo assim, muitos deles as veem com bons olhos, em tempos de pandemia. Qual sua visão com relação a essa questão?
Acho que vale a pena fazer uma distinção entre os espetáculos que são apresentados online e as lives. As lives têm servido mais para o pessoal da música, pequenas entrevistas, e que podem ser feitas com uma boa margem de improviso. Há uma dimensão do acaso na interação das lives, que é completamente diferente das apresentações de teatro feitas online, que são combinadas previamente, fazem referência ao modo como a gente vai ao teatro ou mesmo ao cinema, possuem um horário específico que está marcado. E quando é ao vivo, tem um horário pré-combinado. As peças são ensaiadas, tem uma poética do teatro que é pensada antes, uma elaboração. As lives são feitas no improviso, e o improviso é legal para as lives. Mas no caso da apresentação de teatro online é outra coisa, tem toda uma preparação, um número específico de espectadores que podem entrar. Algumas peças estão vendendo ingresso antes para assistir online. Tem toda uma combinação e elaboração poética do teatro. É teatro sim, uma forma expandida de teatro, uma forma de teatro que pensa que o convívio, a participação dos espectadores junto com edo teatro, feita com tecnologias do teatro em diálogo com o vídeo, o audiovisual, as técnicas mais recentes da internet. Sei que muita gente fala que se é pela internet não é teatro, mas é uma visão um pouco essencialista do teatro. Super entendo a resistência, não quero impor uma verdade a ninguém, mas acho bem possível para um espectador ter uma experiência parecida, análoga, ao ver uma peça de teatro mesmo que seja pela internet. Às vezes, presencialmente, o espectador está sentado na cadeira do teatro, assistindo e não está presente, está com a cabeça em outro lugar, não está participando direito daquilo, olhando para o relógio, doido para acabar, até dorme. Às vezes, pela internet, ele está participando ativamente de tudo, com a cabeça fervilhando, assistindo aquilo pela tela do computador. Então, não existe garantia também do teatro feito ao vivo, com a presença no mesmo espaço, de que a experiência vai ser melhor. Isso é, digamos assim, um pouco da visão idealizada da co-presença. É claro que prefiro ir ao vivo, estou morrendo de saudade de ir ao teatro, queria ver as peças ao vivo, mas não está sendo possível. E não acho que é uma competição, não tem Fla-Flu entre teatro online e não online. Ninguém precisa disputar nada. Acho que o teatro online faz parte do universo do teatro e convida as pessoas a irem ao teatro presencialmente quando for possível. Assisti “Frequência 20.20”, da Grace Passô, que aconteceu pelo (canal) do Sesc, ao vivo, e foi uma experiência maravilhosa. Para mim, o que ela fez ali, é da ordem do teatro. 

Antes da pandemia, você notava alguma mudança no teatro nesse sentido, de ser levado para o universo online ou algo do tipo?
Antes da pandemia, sim. Do ponto de vista da teoria de teatro, da crítica, da pesquisa, já se falava antes sobre teatro online, muitas vezes com o termo teatro digital. Na língua inglesa, se fala muito em ‘digital theater’. Já houve experimentos de teatro sim, online, com os artistas num lugar, os espectadores em outro, e a transmissão se dar via internet ou de uma parte do elenco estar em outro lugar. Já assisti peças, anos atrás, com atores estando em diferentes países. Um ator ou dois estava presencialmente no teatro, e os outros em telas, em outros países. Havia peças ao vivo, em que os espectadores estavam presentes, e a peça era transmitida pela internet. O teatro é uma forma de arte que diz muitos “sim” para outras artes, outras linguagens. Não é de agora que se experimenta isso, de uma transmissão ao vivo, de uma peça de teatro para uma plateia que não está presente. Nos anos 50, o teleteatro foi parte da era de ouro da TV. O teleteatro tinha uma função importante no início da televisão. E também tem o teatro radiofônico, autores muito importantes do teatro no mundo inteiro escreveram peças para a rádio. Quando veio o cinema, houve uma interação, a possibilidade da projeção no teatro. O teatro se estende, se espalha, dialoga, contracena com outras linguagens, é muito generoso com outras linguagens, come de tudo, traz tudo para dentro de si. O teatro no contato com outras artes não deixa de ser teatro; as outras artes passam a fazer parte, de certa forma, da cultura do teatro.

Falando um pouco da sua carreira, queria que comentasse algumas situações. A primeira é: como foi participar da sexta edição da Janela de Dramaturgia no CCBB, em BH?
Foi uma honra fazer parte da curadoria. Um projeto que admiro muito, acompanhava de longe, lia sobre, sempre achei muito importante. Foi ótimo ter estado presencialmente no momento da abertura, com uma mesa redonda com dramaturgas superimportantes, como Maria Shu, Ave Terrena e Janaína Leite, e acompanhar as críticas produzidas ao longo dessa edição. Selecionamos textos de diferentes cidades. Foi bem bacana fazer esse trabalho. Uma coisa interessante da crítica e da curadoria é que são atividades que expandem nossa noção de teatro, sempre tendo que dar um crédito, sempre tendo que olhar com generosidade, começando com um ‘sim’. A gente se abre muito para as coisas, e se aprende muito com isso.Arquivo pessoal

E como foi fazer parte da curadoria do FIT-BH 2018?
Foi muito intenso e muito importante para mim. Uma honra, tendo em vista a história do FIT e a história das minhas colegas nessa equipe, de seis pessoas, por quem tenho respeito e admiração. Tenho a visão de que foi uma experiência muito interessante. O festival tinha uma proposta tão democrática e inovadora, que foi a abertura do edital. Um gesto memorável do poder público. Foi uma metodologia de muita interação entre a gente. Uma grande felicidade para mim. Essa ideia da curadoria coletiva é bem interessante, acho que é uma coisa a se pensar, a se debater. Fazer uma curadoria coletiva é completamente diferente de fazer uma sozinha. Fazer em estado de escuta e generosidade é de grande aprendizado, e valeu muito a pena.

E o período como diretora artística do Teatro Gláucio Gill em 2011 e 2012?
Foi minha primeira experiência fazendo programação, muita responsabilidade programar um espaço público. Um momento no Rio de Janeiro em que as ocupações do teatro foram feitas por artistas, e isso fez muito bem à cidade. Eu e o Felipe Vidal, meu parceiro de trabalho até hoje, temos uma longa história de parcerias, como a Ocupação Complexo Duplo. Essa ocupação foi indicada aos prêmios Shell e APTR. Outras ocupações antes da nossa também fizeram um ótimo trabalho. E no nosso entorno, tínhamos exemplos de outros espaços ocupados por artistas com quem a gente pôde conversar e observar, foi um momento feliz de política de ocupação de teatros públicos do Rio de Janeiro. E inaugurou um pouco minha vertente curadora nessa relação com instituição, governo estadual, Secretaria de Cultura, Teatro Gláucio Gill, em Copacabana... Foi um momento muito feliz, era bem interessante ver cada vez mais as pessoas movimentando o teatro.

Você é idealizadora e editora da revista “Questão de Crítica”, que está na ativa há 12 anos. Qual análise faz da revista desde seu início até os dias de hoje?
É um projeto pessoal meu, mas não é um projeto individual. É meu projeto mais longevo e o que mais demanda para que eu me adapte, me transforme e me renove. Muita coisa aconteceu na crítica de teatro dos últimos 12 anos. As noções de crítica ao alcance da mão eram muito dogmáticas, falando especialmente no Rio de Janeiro. Não consigo falar do ponto de vista do Brasil, então minha visão é parcial nessa minha experiência. A crítica do Rio de Janeiro era assim. As pessoas de modo geral consideravam a crítica a partir desse paradigma, tinham muito implicância com a crítica por causa disso, tinham uma relação de muita mágoa. E acho que de lá para cá as coisas suavizaram, e a noção de crítica se expandiu, assim como a noção de teatro, que ganhou em liberdade de formas e expressão. Mesmo neste período tão curto, que são os 12 anos, a crítica já se transformou muito. A “Questão de Crítica” foi um pouco pioneira no seu formato, por ser uma revista eletrônica, que publica edições, com pesquisadores e artistas. Uma revista não só de crítica, mas de estudos de teatro também. Não era um blog pessoal ou individual. Acho que isso estimulou muita gente também. Depois do Questão de Crítica, muitos projetos coletivos apareceram, inclusive o “Horizonte da Cena”, de Belo Horizonte, que é muito importante para o teatro brasileiro e o qual leio muito. Tem o Teatrojornal, de São Paulo. “Satisfeita, Yolanda?”, no Recife, o “AGORA \ Crítica Teatral”, no Rio Grande do Sul, “Farofa Crítica”, em Natal, vários blogs e sites de crítica com pegada coletiva. Hoje em dia se vê uma crítica muito mais aberta, afinada com os projetos dos artistas.

Qual sua opinião sobre o atual cenário da arte, em meio a um governo que claramente deixa a arte de lado?
Acho que estamos num momento muito único e específico com essa crise da pandemia e essa crise aguda da política. Mesmo se em 2018 a gente vislumbrasse o pior cenário, não tínhamos imaginação suficiente para entender o quanto seria ruim. Então acho que a cultura neste momento está no pior cenário possível. O Brasil é o pior lugar no mundo para se estar neste momento, e é muito triste falar isso. A cultura está precisando processar o que está acontecendo. Não dá para, neste momento, falar nada com certeza sobre o futuro, não conseguimos enxergar um palmo na frente, está muito difícil. Até muito pouco tempo atrás, a cultura estava sendo bizarramente atacada num nível de ignorância contra a qual não conseguíamos nem nos defender diante de tão estúpido que era (o discurso). Artistas e produtores receberam acusações estúpidas, foram vítimas de censura econômica e censura propriamente dita. Fomos acusados de coisas inauditas, absurdas, foram feitas proibições de cunho moral, cunho religioso ou de cunho ideológico. Mas com o projeto de Lei de Emergência Cultural, a Lei Aldir Blanc, a gente viu a Câmara dos Deputados e o Senado mudando o tom de sua fala. A gente viu até a cultura ser reconhecida, elogiada. E a gente viu pessoas, que geralmente falam contra nós, falando a nosso favor. Agora, é claro que temos que ver tudo com cautela, porque foram só batalhas. O subsídio previsto, os auxílios previstos, ainda não chegaram onde têm de chegar. Vamos ver os próximos capítulos. Os efeitos da pandemia vão ser muito cruéis com as pessoas que trabalham no meio cultural, todo mundo vai sentir um impacto muito grande.

Quais seus próximos planos e projetos?
Quero continuar dando esse curso de crítica, me dedicar ao ensino do teatro a partir da crítica, abrir novas turmas. Tenho dois projetos, digamos assim, que estão se adaptando para o online. Um deles é o Complexo Intercâmbio Internacional, que teve uma edição piloto em 2018, e não foi possível fazer uma segunda edição depois. Estamos retomando os trabalhos para fazer uma edição online. É uma plataforma de intercâmbio internacional que pretende criar espaços de formação e troca entre artistas latino-americanos, considerando o pensamento crítico, a encenação e a dramaturgia como uma coisa só. E o Idiomas, um fórum ibero-americano de crítica de teatro criado por mim e a Luciana Romagnolli, de Belo Horizonte. Fizemos uma primeira edição em 2016, em Curitiba. Convidamos críticos de diferentes países, como Portugal, Espanha, Uruguai e Argentina e críticos do Brasil inteiro. Vamos fazer em breve uma segunda edição, online. Continuo com a “Questão de Crítica”. E, assim que possível, faremos um espetáculo que eu dirijo, que se chama Há Mais Futuro que Passado, um documentário de ficção, uma palestra-performance sobre o lugar da mulher latino-americana na história da arte. Esse espetáculo estreou no Rio, passou por Brasília, Londrina, Porto, em Portugal, São Paulo... Vamos voltar assim que retomar o teatro; quem sabe a gente não faz uma adaptação para o online. Eu vivo de projetos (risos). Ricardo Laf/Divulgação

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por