Duplo ofício: salvando o mundo como médicos e artistas

Paulo Henrique Silva
phenrique@hojeemdia.com.br
11/10/2020 às 08:16.
Atualizado em 27/10/2021 às 04:46
 (ARQUIVO PESSOAL)

(ARQUIVO PESSOAL)

Como artistas, eles aguardam o fim da pandemia para retomar a agenda de shows e lançamentos de discos. Como médicos, muitas vezes ocupam a linha de frente no enfrentamento ao vírus. A dobradinha entre medicina e arte é antiga (os escritores Guimarães Rosa e Pedro Nava também vestiram jaleco), mas num tempo em que milhares de pessoas sucumbem diante da Covid-19, o encontro entre as duas vocações fortalece ambas. Essa realidade é compartilhada pelos mineiros Júlia Rocha, médica de família apaixonada pelo samba, Aggeu Marques, um beatlemaníaco à frente de exames de ultrassonografia, e pelo piauiense Tharik Santos, emergencista e vocalista de uma banda de heavy metal. Três nomes de diferentes segmentos musicais que tiveram as suas vidas duplamente afetadas pela pandemia. Conheça suas histórias.MAURÍCIO VIEIRA / N/A

Júlia sempre teve a impressão de que ser médica lhe faria uma cantora melhor e vice-versa

JÚLIA ROCHA

“As pessoas acham que linha de frente é só o pronto atendimento, mas a atenção primária à saúde é a linha de frente para 80% dos casos de coronavírus”, registra a sambista Júlia Rocha, que se transformou num fenômeno da internet ao relatar numa página de rede social o seu dia a dia como médica de família.

Neste ano, ela resolveu se dedicar à carreira musical e vem diminuindo as suas horas no consultório. “Era algo que já planejava há muito tempo e agora senti que era a oportunidade de fazê-lo. Se, no futuro, a carreira musical crescer a ponto de me demandar mais, talvez possa dedicar períodos à música, mas não será um ponto final”, assinala.

A intersecção entre as duas atividades acabou sendo natural para Júlia, que veio de uma família de médicos e cantores. “A música veio primeiro por uma questão prática, porque você precisa de uma faculdade para ser médica. Desde os 15 anos que eu canto em barzinhos e gravo músicas e acabei conciliando as duas coisas quase a vida toda”.

Fã de MPB, há cinco anos ela vem se enveredando mais pelo samba, uma expressão popular em sua raiz. Na medicina, Júlia também se voltou para as comunidades. “Eu me formei há dez anos e logo em seguida fui trabalhar nas periferias e regiões mais vulneráveis. Por minhas preocupações sociais e políticas, fui direcionando a minha carreira para isso”, explica.

Júlia sempre teve a impressão de que ser médica lhe faria uma cantora melhor e vice-versa. “O olhar de médica me permitiu ver a dor do outro, o que me fez ser uma artista diferente. Ao mesmo tempo, as emoções que estão nas entrelinhas da música me fazem sair da dureza, da concretude do dia a dia do médico, que não é fácil”, analisa.

Assim, diz ela, a música trouxe uma certa leveza para o exercício da medicina, enquanto a vivência em hospitais lhe trouxe uma noção de realidade para o lado cantora. “Tudo isso faz que eu seja uma artista mais engajada”, afirma. Em seu blog no Uol, ela aborda sempre que possível a questão da saúde pública e seus desafios.

“Saúde não é simplesmente você ter acesso ao médico. Ela vai muito além disso. Algumas pessoas se posicionam de uma forma não muito polida sobre o que penso e falo, mas o debate público é isso, sintetizar o meu pensamento e, ao mesmo tempo, ter a noção de que as pessoas vão se posicionar às vezes de forma bruta”, registra.ARQUIVO PESSOAL / N/A

Marques entra no consultório com o mesmo prazer que sobe num palco para tocar

AGGEU MARQUES

Aggeu Marques lembra que a paixão pela música veio primeiro. Mas logo ele se corrige, dizendo que antes de tudo vieram os Beatles. “Por causa deles, eu comecei a tocar violão e fiz medicina, para que eu tivesse uma condição financeira para ir a Liverpool, na Inglaterra, e conhecer a terra dos Beatles”, assinala.

Hoje sinônimo de Beatles em Minas Gerais e no Brasil, ele estava no último ano de medicina quando entrou para a banda Hocus Pocus, em 1988, e passou a se dedicar profissionalmente ao repertório dos Fab Four. Tocou em outros grupos e organizou o BH Beatle Week, maior festival da América Latina dedicado à beatlemania.

O trabalho com a música, segundo Marques, não é diferente do exercício da medicina, exigindo concentração, disciplina e dedicação. “Do contrário, não dará certo”, explica. No próximo ano, ele completará duas décadas de carreira musical e desde já trabalha na comemoração, com um lançamento de um disco duplo de vinil.

Marques afirma entrar no consultório com o mesmo prazer que sobe num palco para tocar. Mas na hora de pesar as duas atividades na balança, ele admite que a medicina ganha protagonismo, principalmente por seu grau de exigência, sendo impossível conciliá-la com qualquer outra carreira.

“Por mais profissional que eu tenha sido, tentando fazer bem feito, a música é um hobby. É muito difícil uma pessoa ser médica durante pouco período. A medicina é um casamento indissolúvel. Mesmo aposentando, você continua preso a ela. Durante um tempo, consegui conciliar a duras penas”, registra Aggeu, que teve que parar um show para acudir alguém da plateia que estava passando mal. 

Outro caso aconteceu no avião, indo para a cidade dos Beatles, enquanto conversava com um passageiro sobre música. “De repente, ele passou mal e eu tive que ajudar. Curiosamente, isso acontece muito comigo. Quase todo voo eu sou requisitado para fazer algum atendimento”, diverte-se.

Ex-pediatra, atualmente trabalhando com ultrassom, Marques confessa que deixa de lado um pouco os Beatles em relação à música ambiente. “Gosto muito de fazer ultrassom ouvindo os clássicos, como Bach, Mozart e Beethoven. A música aguça a minha sensibilidade quando estou realizando os exames. Mas eu não saio cantando no consultório, não”.ARQUIVO PESSOAL / N/A

Para o urgencista, a música acaba sendo uma válvula de escape da rotina pesada nos hospitais

THARIK SANTOS

“Estou realmente enfiado até o pescoço nisso”, avisa Tharik Santos, vocalista e baixista da banda de heavy metal Furit, ao comentar o trabalho na linha de frente contra o coronavírus. Ele é urgencista e emergencista de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) em Teresina, capital do Piauí, e num hospital municipal em Timon, cidade do Maranhão.

À medida que viu o seu trabalho aumentar nos meses de maio, junho e julho, com a explosão de casos no estado nordestino, Santos teve que colocar um pé no freio no lançamento do álbum “Black Mirror”. “Não fizemos nenhum show, resumindo-se a registros na internet”, lamenta.

Os dois irmãos guitarristas da banda, Max e Ulisses Melo, até pelo fato de morarem juntos na casa dos pais, fizeram aquilo que chegou o mais perto de um show, usando uma backing track (arquivos de áudio em que a faixa de um instrumento é retirada) do álbum novo, somente com as guitarras sendo tocadas ao vivo.

“Se fôssemos juntar todos, não deixaria de ser uma aglomeração. Quisemos, em primeiro lugar, preservar a gente e a nossa família ao máximo”, explica Santos, que também não é um entusiasta do formato live. “Prefiro o retorno da normalidade para voltar a ter show. Não tem comparação ir para o palco e interagir com o público”.

Curiosamente, um dos temas centrais de “Black Mirror” é a tecnologia cada vez mais presente nas relações humanas. Bem a propósito dos dias atuais. “Ela tem os seus benefícios e malefícios, mas no caso da pandemia, ela tem sido fundamental para que as pessoas não percam a sanidade mental, a partir das lives e aulas a distância”, observa.

O urgencista afirma que a música e a medicina surgiram de forma quase simultânea e natural na vida dele. “Enquanto vinha me preparando para o meu lado profissional, fui fomentando a minha paixão pela música, principalmente o rock em sua vertente metal, que é a que eu executo atualmente”, detalha.

Um exemplo de como a música pode ajudar no exercício da medicina é o da reanimação cardiopulmonar. “No momento de fazer a compressão torácica, o ritmo ideal é de ‘Stayin’ Alive’, do Bee Gees, naquela parte em que eles cantam ‘ah, ha, ha, ha, stayin’ alive’. É clássico e infalível”, relata.

Para ele, a música acaba sendo uma válvula de escape da rotina pesada nos hospitais. “Especialmente aquela mais nervosa e frenética, como o metal, tem ajudado muito. Mas gosto de música como um todo e aqui em casa tenho guitarras, baixos e violões e costumo ficar tocando para relaxar”.

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por