Entrevista: Flávio Renegado fala sobre racismo, música, rap mineiro e a ‘madrinha’ Elza Soares

Thiago Prata
@ThiagoPrata7
03/08/2020 às 10:41.
Atualizado em 27/10/2021 às 04:11
 (Denise Ricardo/Divulgação)

(Denise Ricardo/Divulgação)

O lançamento de “Negão Negra”, no último dia 24, pode ser traduzido como uma espécie de batismo musical a Flávio Renegado, agora como “afilhado” de Elza Soares, com quem divide os vocais da composição assinada por ele e o carioca Gabriel Moura. Um batismo que transcende a questão musical: a mensagem ali presente representa o epítome de um tema presente no dia a dia da sociedade brasileira.

Em “Negão Negra”, Renegado e Elza bradam contra o racismo por meio de versos como “Nunca foi fácil, nunca será/ Para o povo preto, do preconceito se libertar/ Sempre foi luta, sempre foi porrada/ Contra o racismo estrutural, barra pesada”. Em entrevista ao Hoje em Dia, o cantor, ator e compositor fala a respeito dessa aliança com sua madrinha musical, racismo, movimento antirracista, arte, música, cena mineira do rap, entre outros assuntos. Uma conversa franca, cirúrgica e potente, como seu discurso e sua história.

Primeiramente, gostaria que nos falasse deste seu mais recente batismo, o de ter se tornado afilhado musical da Elza Soares. E também do single ao lado dela, “Negão Negra”.
É louco como a vida é e as voltas que a vida dá. Hoje tenho a oportunidade de conviver e estar próxima da Elza, o que é um presente para mim. Ela representa muitas coisas em que acredito, da gente exaltar a mulher preta, do empoderamento... Por tudo e pela rainha que é, por toda sua maestria, é algo fenomenal. Ela é um grande exemplo, uma referência, de que é possível ao povo preto chegar onde quer chegar. Um presente ter a oportunidade de conviver com ela. Ela é única. Vejo como um presente e uma vitória.Denise Ricardo/Divulgação

Antes mesmo de a música ter sido lançada, a letra dela já havia sido divulgada. Uma letra muito forte, cirúrgica, sobre resistência e luta das pessoas negras. Como artista e cidadão, de que forma analisa o atual momento no país, em que, recentemente, tivemos muitas manifestações antirracistas, contando inclusive com o apoio de artistas nas ruas e o lançamento de músicas sobre o tema, incluindo essa parceria sua com a Elza?
“Negão Negra” é um presente. Eu a compus ao lado do Gabriel Moura. Já compusemos tantas outras composições, algumas delas gravadas por outros artistas. No meu último álbum (referindo-se a “Outono Selvagem”), tem outra parceria com ele, que é “Rotina”, com participação do Samuel Rosa. Ter essa oportunidade de escrever esta música (“Negão Negra”) num momento tão importante, tem um valor forte para mim. É uma triangulação de corpos pretos, eu e Gabriel escrevendo, e a Elza interpretando juntamente comigo. Tem uma coisa forte implícita na letra. Quando se escuta bem a letra, a gente vê que há pontos que estamos tentando discutir há muito tempo. Fazer análise... Mano, foi muita coisa, uma atrás da outra. Teve o João Pedro, o George Floyd, aí teve o ‘Black Lives Matter’ (‘Vidas Negras Importam’), e de uma hora para outra já tinha a pauta antirracial, veio as torcidas de futebol, os 70%... Fiquei vendo tudo aquilo. E pensando que o Brasil não conseguiu sequer parar para discutir a pauta racial. Esse abismo que habita entre classes é construído em cima do racismo. E o Brasil não teve preparação de dano. É um país que ainda acha que cota é esmola, em que se normaliza morte de preto... A sociedade brasileira não para para fazer uma discussão de uma pauta.

Você crê que houve um avanço neste ano em algum sentido?
Teve, claro que teve. Não posso dizer que não houve avanço. Isso teve. É bom você ver na TV, no cinema, um Lázaro Ramos, uma Taís Araújo, mas ainda é pouco, sabe. E aí você é obrigado a ver uma blogueira dizer que é preciso ter consciência que o negro comete mais crime. Ou seja, ainda existe uma mentalidade no Brasil, que pensa que quem nasceu numa condição sub-humana, no esgoto a céu aberto, comendo só farinha e feijão e no lado mais bruto da vida precisa ter super poderes. Isso dói. A palavra é essa: dói. Todo dia é preciso ser um Superman.

 E daí surgem coisas como “o branco sofre racismo”...
Mano, é. Essa coisa de racismo inverso não existe. Essa coisa que branco sofre racismo... Não tem condição. Uma galera que diz que existe preconceito para branco e que negro não tem que ter cota em universidade é a mesma, por exemplo, que diz que lugar de mulher é na cozinha... Essa galera existe. Só que o outro lado ganhou voz. E agora as pessoas têm que entender que, antes de tudo, é necessário ser antirracista, é emergencial ser antirracista.

Algo que sempre pergunto aos artistas é a forma como veem o papel da arte nos dias de hoje no Brasil. Queria que você falasse a respeito.
Sou apaixonado por história, sempre vejo, leio, pesquiso sobre nossa cultura, como registro histórico de músicas e da arte. A gente consegue entender o papel da arte por meio das músicas, por exemplo. A gente entende determinado momento do país dessa forma. Este é um dos papeis da música, da arte. E tento participar através da música. Não vamos nos calar. A música ajuda a segurar também a onda das pessoas, em qualquer momento. E a segurar, de alguma forma, à crise que as pessoas estão enfrentando nessa pandemia, no sentido de que a música se torna uma companheira, um ombro amigo. A música é isso. A arte tem que ser companheira das pessoas. Isso gera alegria e amor. Denise Ricardo/Divulgação

Falando em amor, você, inclusive, tem a palavra “amor”, tatuada nos dedos...
Sim, para mim é um presente escrever uma música, uma poesia. E tento me colocar no lugar de quem está lendo. Compartilho minhas histórias. Cara, existe amor ali. Se tem algo com o poder de mudar e transformar este é o amor. Não vamos vencer guerra se não for pelo amor, amor aos nossos iguais, aos familiares, às pessoas. Tudo que amamos nos move. O ódio é energia destrutiva, ele consume, ele devasta. É uma parada que move também, mas é algo que tem que ser dosado. Podemos nos indignar, claro que podemos. Mas é preciso que isso não vire ódio. Eu não odeio as pessoas. Pelo contrário, eu quero é ter aliados. Quero que as pessoas possam tirar as vendas dos olhos. Eu sou do lado do “juntos”. É importante que as pessoas entendam que os negros querem igualdade. Ninguém está querendo esmola, todo mundo quer oportunidade. Não somos iguais, temos que parar com isso. É preciso respeitar mais o ser humano, respeitar o outro.

Você é figura importantíssima no cenário do rap brasileiro, da cultura hip hop de uma forma geral. E temos visto nomes surgindo ou se consolidando que são de Minas, vide FBC, Djonga... De que forma você enxerga a cena atualmente?
Mano, eu fico muito feliz. Eu vejo que as sementes que foram plantadas lá atrás estão dando frutos maravilhosos. Eu fico muito feliz. Cada semente plantada deu resultado. É muito legal ver isso tudo acontecendo, sabe.

Dentro disso, existem grandes diferenças de quando você começou na música para o que é feito atualmente na cena?
Muita diferença, tudo mudou desde então. Inclusive, a tecnologia, que serviu como instrumento de transformação de lugares, conectando a quem você gosta e a quem produz. Temos uma cena organizada, temos público, temos casas de show, criamos um mercado. Denise Ricardo/Divulgação

E para você, particularmente, o que mudou desde seu início na música?
Quem está no dia a dia, sabe que todo dia é dia de construir, de colocar um tijolo. Todo dia tem uma tarefa. Estar num festival, fazer uma live, se emocionar e emocionar, como todo mundo. E com os pés no chão. Apesar de todos os festivais, dos discos, dos videoclipes, levanto sempre com aquela coisa do “o que tenho que fazer para hoje, qual a tarefa do dia?”. E chegar lá. Hoje, estou focado no “Negão Negra”, uma música de muita importância, uma pauta emergencial. E mesmo em meio a esta pandemia, todo dia tem uma tarefa.

Neste momento, o que você tem lido, ouvido, assistido... O que poderia indicar às pessoas nesta quarentena?
De livro, eu indico o “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo”, do (Aílton) Krenak, que é bem bacana. De música, eu tenho ouvido muita coisa nova. Pesquiso todos os dias, cada dia mais tenho escutado muitas coisas. Tenho aproveitado o tempo desta pandemia também para fazer algum curso que eu já tinha vontade de fazer. Sobre filmes... Não um filme, mas uma série, é o “The Boys”. Ah, e filme mesmo indico o “Infiltrado na Klan”. Spike Lee é muito genial.

Por fim, nos fale sobre seus próximos trabalhos, por favor.
Comemorar os 90 anos da Elza, essa mulher maravilhosa. Farei algumas lives aí também. Vai ter uma live em homenagem à Marielle. E estou cheio de novidades. Estou compondo muito e me preparando para, quando (a pandemia) passar, ter muita coisa para a galera.

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