Entrevista: Matheus Nachtergaele fala de 'Desconscerto', planos futuros e a arte no cenário atual

Thiago Prata
@ThiagoPrata7
09/06/2020 às 18:01.
Atualizado em 27/10/2021 às 03:43
 (Daryan Dorneles/Divulgação)

(Daryan Dorneles/Divulgação)

Nesta quarta-feira (10), Matheus Nachtergaele fará “um retorno ao útero”. É desta forma que ele denomina “Desconscerto”, uma versão mais intimista da peça “Processo de Conscerto do Desejo”, que, em julho, completará cinco anos desde sua primeira apresentação. A adaptação do espetáculo – guiado pelas cartas e poemas da mãe do ator, que os recita de várias maneiras – será exibida às 21h30, por meio do Instagram e do YouTube do Sesc São Paulo.

Nesta entrevista ao Hoje em Dia, Nachtergaele fala a respeito deste “novo batismo”, do teatro na Era das Lives, do papel da cultura no cenário político atual e de seus próximos projetos.Daryan Dorneles/Divulgação

“Processo de Conscerto do Desejo” é um monólogo único e emocional. Nos fale como é para você ter essa experiência agora em um formato ainda mais intimista? E como se deu essa mudança de nome para “Desconscerto”?
“Processo de Conscerto do Desejo” nasceu de forma muito intimista, no Teatro Poeirinha, do Rio de Janeiro, para 60 expectadores por dia, em horário alternativo. Ensaiei pouquíssimo, fui tomado por um impulso de fazer o espetáculo. Recolhi os poemas da mamãe (Maria Cecília Nachtergaele) e testei cinco anos atrás em Ouro Preto e Mariana, com a leitura dos poemas da mamãe diante do público, acompanhado já pelo Luã Belik tocando no violão as músicas que minha mãe gostava de tocar e cantar. A peça foi se desenvolvendo para este concerto maior, com violino, para plateias grandes em teatros italianos, lonas de circo e até igrejas. Fazer (em formato) intimista de novo é como um retorno ao útero. Como um retorno do começo da peça e também uma forma de repensar as motivações do espetáculo. A proposta que o Sesc me fez foi, a princípio, assustadora. Eu não conseguia imaginar fazer uma peça de teatro sem o público. O público não presente desconfigura o que é teatro. Torna-se uma outra coisa, apesar de ser quase ao vivo. (O nome) “Desconscerto” é para tentar utilizar de alguma maneira o título do espetáculo. E foi para brincar de novo com as palavras, de consertar com poemas e músicas meu desejo e o desejo de minha mãe, e por que não o da plateia, em um concerto.

Você define o monólogo como "um homem diz no palco as palavras escritas por sua mãe. É só isso, se isso for pouco". E pelo que vi em cena não é pouco. Como é a recepção das pessoas a cada espetáculo? Qual o feedback que você recebe, por ser um monólogo tão emocional e que com certeza emociona as pessoas também?
Nunca tive certeza da qualidade artística dos poemas da minha mãe, porque sempre estive muito envolvido com esse material, sou muito apaixonado por ele. E também não sabia como seria minha relação com ele, enquanto filho, tornando-o em espetáculo e dando voz e sendo arauto da minha própria mãe diante de uma plateia. Por isso que fui tateando, e a reação foi maravilhosa, desde seu início. A peça conseguiu não ser neurótica, de autoajuda ou autopiedosa. Um filho utiliza seu instrumental de artista... Não só de ator, porque eu dirijo, concebo, atuo, canto, danço, produzo junto com a Miriam Juvino a peça. A coisa se tornou um espetáculo trágico muito menos melodramático do que se poderia imaginar, muito por causa da presença dos músicos e a partitura que isso necessariamente acaba causando. E também porque os poemas são realmente bons, e fui descobrindo isso a cada apresentação; como são, ao mesmo tempo, muito afetivos, modernos e eternos. Minha mãe escrevia bem. A partir de um certo momento, transcendemos uma questão particular minha, minha queixa como filho e o suicídio da mamãe, para fazer um espetáculo sobre o embelezar das coisas tristes. É um ritual pagão, de luto, que procura jogar luz sobre aquilo que era escuro. Acho muito bonito a premissa e o resultado cênico.

Falando especificamente de ser uma apresentação online, como vem sendo essa questão para você? Aproveitando a deixa, qual sua opinião sobre lives de artistas como uma forma de expressão em tempos tão difíceis em que vivemos?
A tecnologia veio, surpreendentemente, salvar a nós do teatro. É surpreendente, porque, de uma certa maneira, a tecnologia dos celulares, da comunicação e da internet é mal recebida na hora do ao vivo do teatro. E agora ela vem nos salvando. Tenho assistido algumas lives, principalmente essas promovidas pelo Sesc. E percebo que, apesar da impossibilidade de estarmos juntos, as peças batem no coração com força. Repetindo mais uma vez: não se trata exatamente de teatro. É muito mais um exercício de um ator diante de uma câmera, num quase ao vivo que acontece, do que propriamente teatro. O teatro precisa do outro. Por isso que ele se aproxima e é uma atitude praticamente religiosa. O teatro é o irmão das religiões. O irmão mais antigo e que se atualizou com as perspectivas cientificas e artísticas que o homem foi adquirindo ao longo de sua existência. Para mim será um grande exercício voltar ao útero da peça. Não posso ter os músicos em cena, portanto vou assumir isso, fazer um exercício de estar em primeira pessoa, de uma maneira realista, olhando para a câmera como quem olha para alguém. A câmera será meu público. Há cinco anos, percebi que o teatro era o lugar a se estar, principalmente no Brasil. O teatro é, cada vez mais, um dos momentos mais valiosos dentro de uma sociedade, onde podemos estar juntos para rir ou chorar diante do espanto de quem somos e do que a vida é, fazendo uma oração catártica e pagã, uma prece sem dogmas. Voltei para o teatro depois de alguns anos fazendo muito cinema e televisão. Tenho certeza que assim que pudermos, estaremos juntos, mesmo com as restrições que a pandemia impuser, distância física, máscaras na plateia, descobrindo maneiras de interagir, sem colocar em risco a saúde de todos. São novos tempos, terríveis novos tempos. E o ser humano é uma beleza em descobrir como sobreviver a catástrofes e também em provocar catástrofes. Grande viagem esta nossa aqui na terra.

Pelo que você observa do cenário brasileiro nas esferas culturais, sociais e políticas, que análise faria do papel de arte nos dias de hoje?
A cultura de um povo não é obviamente o conjunto de tradições herdadas de antepassados. Ela é algo que se relaciona com o passado. Mas ela é muito uma projeção para o futuro. E o Brasil é um fazedor de cultura inesgotável a cada momento histórico e pela mistura de culturas que aqui se encontra. A juventude do país, a dimensão do país, a quantidade de povos que fundaram este país... Tudo isso faz com que a arte seja a maneira principal de descobrirmos nossa identidade. Não existe educação verdadeira sem um contato com a cultura. A cultura é quase um mar onde se desembocam os rios da educação, das tecnologias, dos aprendizados, dos rituais, enfim, de toda a dança. Ainda estamos criando a nossa. Os artistas estão neste momento terrível de isolamento e suspensão, procurando um meio em que seja possível se comunicar, se expressar; procurando não só entreter as pessoas, mas também encantá-las, discutir com elas o que está acontecendo e, politicamente, dar sua colaboração num momento tão obscuro quanto a aproximação de um Estado autoritário. O governo atual flerta com o autoritarismo, elogia coisas que considerávamos daninhas e mortas. E nossa função neste momento, mais do que nunca, é estar junto com o povo para deixar essas questões vivas, para que a resistência seja feita através da arte também, não só nos palanques políticos. A verdade é que o mundo tem desandado tanto, e o Brasil desandou tanto desde o golpe na Dilma, o golpe na democracia, com o impeachment da Dilma, que nós artistas acabamos ocupando um lugar de uma certa maneira confortável de consciência política. Nós gostaríamos de estar mais libertos dessas questões todas. Hoje em dia a gente se sente na obrigação de tangenciar política em qualquer obra, seja no teatro, no cinema, na TV, estamos todos preocupados. Isso é muito bonito, estar ressignificando a arte, ao contrário do que os mais obscurantistas desejam, estar reaproximando muitos os artistas do povo brasileiro. Se você tiver olhos críticos, vai conseguir assistir coisas muito bonitas. Não só conversas, debates sobre assuntos variados, mas também apresentações de artistas bem vocacionados que querem nos entreter e nos enriquecer com sua arte neste período.

Por fim, nos fale de seus próximos projetos.
Todos os projetos estão agora um pouco em suspensão; tenho muitos projetos que foram paralisados ou apenas suspensos. Assim que pudermos, vamos voltar a levar o “Processo de Conscerto do Desejo” pelo Brasil afora. Em julho a gente comemora cinco anos da primeira apresentação do espetáculo. Faremos uma apresentação da peça no Teatro da Net, que vai ser transmitida. Estarei no palco com meus músicos e minha equipe de luz e cenário, todo mundo protegido, mas ainda sem plateia. Vai ser mais um passo desse nosso reconhecimento de como fazer a arte durante a Covid-19. Vou fazer uma participação numa série do Bruno Mazzeo (“Diário de Confinado”), que ele está preparando dentro de casa. Vou gravar na terça-feira que vem. A série Cine Holliúdy (segunda temporada), já está escrita e na grade para ser gravada em breve, depois que passar o surto da Covid. A peça “Molière“ será retomada assim que der. E há quatro longas prontos, esperando para poder estrear: “Piedade”, de Cláudio Assis, “Cabras da Peste”, de Vitor Brandt, “Clube dos Anjos”, do Angelo Defanti, e “Carro Rei”, de Renata Pinheiro. Tem bastante coisa pela frente.

Muitíssimo obrigado pela entrevista, Matheus.
Quero agradecer o interesse e dizer que estou muito estimulado a fazer deste “Desconscerto” um momento bonito para nós todos, para mim e todas as pessoas que estiverem assistindo. Vou estar sozinho fazendo teatro ou, como eu disse, aquilo que se parece com teatro. O teatro é uma arte coletiva, e essa é a mais política de todas as lições que se aprende quando se é um artista das cenas. O teatro é um aprendizado do coletivo, o cinema é um aprendizado do coletivo, a TV é um aprendizado do coletivo. É muito bonito que seja assim. Por isso que eu digo, é quase que natural que os artistas, principalmente os artistas da cena, se coloquem quase que invariavelmente mais à esquerda das coisas, do ponto de vista político. Nós somos bailarinos do coletivo.
 

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