Entrevista: Milton Hatoum fala sobre carreira, literatura, política, pandemia e Minas Gerais

Thiago Prata
@ThiagoPrata7
02/07/2020 às 18:04.
Atualizado em 27/10/2021 às 03:55

“Planejava passar uma temporada numa cidade histórica mineira, onde pretendia terminar meu livro”. O livro ao qual Milton Hatoum se refere é a terceira parte da trilogia “O Lugar Mais Sombrio”, que terá as Gerais inserida em suas páginas. Estado este que arranca elogios do escritor, professor e tradutor amazonense de 67 anos, mas que infelizmente não poderá receber a visita do autor, em função das limitações da quarentena.

A fruição presente nas palavras de Hatoum ao falar de Minas e literatura contrasta com a revolta à política de seu estado-natal e do país. Confira mais na entrevista a seguir.

Olá, Milton. Como você está neste momento de pandemia?
Estou bem, quieto no apartamento, com a família. A gente não sai, a não ser que seja pelo básico. Estamos fazendo o melhor possível.

Você vai lançar um livro pela Páginas Editora, de Belo Horizonte, chamado “Sete Crônicas de Milton Hatoum”. Nos fale dele, por favor.
A Leida Reis, escritora, editora e livreira da Páginas, me pediu um conto inédito, mas seria difícil escrever um texto agora, porque aí eu teria que interromper meu romance (terceira parte da trilogia ‘O Lugar mais Sombrio) e outros trabalhos. Então sugeri a ela uma seleção de sete crônicas, do livro ‘Um Solitário à Espreita”, e ela topou. São crônicas de assuntos variados. Acho que duas ou três são ambientadas em Manaus; tem uma crônica sobre racismo: "História de dois encontros", um lance fisgado pela memória manauara... Em outra (“Um enterro e outros carnavais”), Manaus aparece como uma cidade devastada, em que o cemitério é o único lugar viável. Essa crônica deu o título a um livro que saiu na Inglaterra, na Flip de lá. Outras crônicas são ambientadas em São Paulo. Enfim, são recortes da memória e invenções também. Leida gostou da ideia, das crônicas e decidiu lançar esse livreto.Marcos Alves/Divulgação

Algo interessante, além do lançamento, é que a renda será revertida para quatro ONGs da região amazônica. Isso foi um pedido seu. Nos fale sobre isso e sobre as ONGs, em um momento, inclusive, que a região Norte do país e a Floresta Amazônica vêm enfrentado muitos problemas.
Abri mão de direitos autorais para facilitar a publicação. Indiquei algumas ONGs, e a Leida indicou uma. São ONGs indígenas, que estão precisando de apoio. Sei que é uma contribuição modestíssima, muito pequena, não é um best-seller. Mas o pouco já ajuda. Em aldeias indígenas, o número de mortes pela Covid-19 é muito maior que a média no país. É uma catástrofe...

E como você fica sabendo das notícias de lá?
Tem um site de jornalismo, que é uma das melhores coisas da Amazônia, chamado “Amazônia Real”, de duas amigas: Katia Brasil e Elaíze Farias. Há também o site do Instituto Socioambiental (ISA) e o blog do premiado jornalista paraense Lucio Flavio Pinto. Tento colaborar com o “Amazônia Real”, um site independente, que não tem ajuda de governo, nada ‘oficial’. A partir da leitura dessas reportagens fico a par do que está acontecendo em termos de invasão de terras, violência... São equipes que fazem jornalismo investigativo. E são minhas principais referências do que está acontecendo, além de notícias que recebo de outras pessoas. O mais importante é a voz das lideranças indígenas, homens, mulheres e jovens que falam nas redes sociais. São eles e elas que estão na vanguarda da resistência contra a destruição, as ameaças, o genocídio. E nós devemos apoiá-los. Muitas tragédias estão acontecendo em várias partes da Amazônia. É difícil acompanhar tudo numa região imensa, ciclópica. Há muitas mortes por Covid, até de lideranças indígenas, professores indígenas. Há poucos dias, morreu um grande pedagogo, professor da etnia tuyuca. Fora o fato de Manaus e Belém serem cidades muito castigadas pela Covid. O Amazonas, politicamente, carrega uma maldição. O governador e a secretária de Saúde estão implicados num superfaturamento de respiradores. Uma coisa horrorosa. Praticar ilícito na área da saúde devia ser crime hediondo. Como, aliás, aconteceu no Rio de Janeiro e em outros estados. No Amazonas, há uma maldição, em função de políticas públicas gritantemente falhas, sem investimento em educação, saúde, saneamento e transporte. São 100 anos de solidão e desgoverno. Lá se mantém o povo ignorante para se ganhar eleições. Isso também aconteceu de algum modo nas eleições para presidente. As pessoas são ludibriadas e enganadas.Olga Vlahou/Inspire-c/Divulgação

Recentemente, você disse que gostaria de participar de manifestações nas ruas, mas não podia por conta da pandemia. De que forma você analisa as manifestações atualmente pelo país?
Na verdade, eu acho um risco sair. E também por conta da minha idade, pertenço ao grupo de risco. Não quero me arriscar, por prudência, por também ter filhos jovens.  Mas houve manifestações na (avenida) Paulista (em São Paulo) com 150 a 200 pessoas. E elas mantiveram um distanciamento de dois metros uma das outras e usavam máscaras. Creio que esse tipo de ato, com distanciamento e sem aglomeração, é lícito, um ato até mesmo desejável para protestar contra essa política nefasta. Agora, quando há aglomeração, sou totalmente contra, pois isso aumenta o número de contaminados. Quando houver uma vacina, e a Covid não apresentar mais risco, eu irei às manifestações. No Brasil, não se trata só do descaso à saúde, há um descaso em relação a tudo. Este é um governo destruidor. Destruíram até os pequenos avanços feitos nos 20 anos anteriores a 2016, algo que vinha desde o Fernando Henrique. Claro que de lá para cá, houve muitos erros gravíssimos, aqui e ali, mas houve avanços importantes também, temos de reconhecer. O atual governo é muito diferente de todos. Nunca tivemos na democracia um governo de extrema direita, comandado por um grupo de celerados, cujo chefe ideológico mora nos Estados Unidos. Lembra um pouco o teatro do absurdo, aquela peça de Ionesco: "Rinoceronte", que é uma crítica sarcástica aos governos extremistas. Você vê o que está acontecendo no Ministério da Educação... É inacreditável. Há dezenas de professores, intelectuais comprometidos com a educação pública. E o presidente escolhe Weintraub e depois apresenta um cara com credenciais e currículo falsos. Não se escolhe mais ministros com o mínimo de competência ou experiência na área. E assim também na saúde. O Brasil vive o pior momento de sua história republicana, infelizmente.

Qual o papel da literatura e das artes em geral nos dias hoje? O que a difere, por exemplo, de outros anos da história recente?
Em situações extremas, durante uma ascensão do fascismo ou de governos opressores, as artes também desempenham um papel importante. A arte expressa gestos de liberdade e crítica, mesmo a obra mais intimista pode ser lida ou vista como gesto crítico. Governos autoritários não aceitam a crítica, por isso a perseguem. Não por acaso, o governo acabou com o Ministério da Cultura e colocou pessoas medíocres na Secretaria de Cultura. O governo não está nem um pouco interessado em promover e divulgar a arte brasileira. E isso por uma questão ideológica. Esse discurso de acusar a oposição de "comunista" é a coisa mais abjeta que existe. Só mesmo no Brasil o comunismo virou uma ameaça. No fundo, é uma miséria intelectual, uma mistura de fundamentalismo religioso com extremismo ideológico. No entanto, acho que as pessoas estão respondendo com muita firmeza. Músicos como Gil, Chico Buarque e Caetano possuem um alcance muito maior que um escritor, escultor, pintor, ator ou atriz, mas todos estão se manifestando a seu modo. Tenho feito várias transmissões e debates. Se alguns achavam que poderiam silenciar os artistas, se enganaram. Nem a ditadura silenciou. Muitos foram exilados e presos, mas não se calaram. Por que o fariam agora? Não estamos numa democracia? Algo que pode ser fundamental para desmascarar de vez esse governo é o julgamento das fake news. Acho que é o calcanhar de Aquiles dos bolsonaristas, a divulgação de suas mentiras. Por isso eles estão com tanto medo. Isso deu muita força à extrema direita durante as eleições. Foi uma jornalista da Folha que fez uma reportagem sobre isso durante o segundo turno, poucos dias antes das eleições (de 2018). Se a usina de mentiras for fechada ou pelo menos controlada e punida, eles não têm para onde ir, não haverá escapatória. Nas eleições inventaram coisas como kit gay, mamadeira de piroca, tantas coisas horrendas, baixarias. E as pessoas mal informadas acreditaram. Na verdade, conheço gente informada que acreditou. Hoje a gente ouve o presidente da Fundação Palmares criticar movimento antirracista ou pessoas dizendo que o nazismo era de esquerda, sendo que os comunistas foram perseguidos e assassinados na Europa pelos nazistas. Eu não sou comunista, mas falsificar essas coisas é um atropelo na história. Será que esses generais, que apoiam um miliciano, não conhecem a história do Marechal Rondon, a relação compassiva e respeitosa com os povos indígenas? Nas academias militares, ninguém mais estuda sua biografia? Que formação é essa que dão aos jovens cadetes?Olga Vlahou/Inspire-c/Divulgação

O que tem chamado sua atenção na literatura ultimamente? Novos escritores, livros recentes...
Há bons livros, isso nunca foi interrompido. Acompanho alguma coisa, leio o que é possível.  Na minha idade, não dou conta de ler tudo (risos). Mas há poucos dias, li um livro da mineira Maria Esther Maciel, ‘Longe, Aqui’. Uma bela prosa poética, com reflexões e insights. A grande poesia entranhada na prosa. Não tem um gênero específico, é uma miscelânea de gêneros. Um livro muito bonito, uma escritora que me interessa muito. É um livro dos mais bonitos que li, gosto muito da obra dela. Tenho lido outras coisas, como a obra do Joca Terron, coisas que saíram nos últimos meses... E tenho lido muita coisa de literatura estrangeira. Além disso, escrevi um textinho, minha penúltima orelha, pois vou me aposentar como orelhista (risos). É um livro de um poeta palestino, que já faleceu, chamado Mahmoud Darwish, um dos maiores poetas árabes contemporâneos. O livro é ‘Da Presença da Ausência’. Foi traduzido do árabe e vai ser publicado pela Editora Tabla, do Rio de Janeiro. Estou trabalhando, lendo e fazendo minhas coisas, terminando a trilogia.

Por fim, gostaria de saber o que mais chama sua atenção em Minas Gerais? O que você mais gosta daqui?
Gosto de muitas coisas de Minas. O lado paterno da família da minha mulher é mineiro. Então há esse laço, por tabela, indireto. Meu sogro pertencia a uma família de Ponte Nova. A voz mansa dos mineiros lembra a fala da Amazônia. Esse intimismo, essa desconfiança, esse movimento para dentro tem algo a ver com o relevo. Um estado contemplativo, diante de algo grandioso, indecifrável, ou de difícil decifração, como o "Recado do morro", essa maravilha do Rosa. A natureza ciclópica da Amazônia também age sobre o modo de ser das pessoas. Muito jovem, quando morava em Brasília, conheci muitos mineiros e viajava para Minas. Minas é um mundo. Algo da cultura mineira aparece no romance ‘A Noite da Espera’, em que há várias referências à comida mineira, a escritores, pintores e à paisagem do cerrado. Vários dos melhores ensaios e dissertações sobre meus romances vêm de universidade de Minas. Na década de 1970, quando estudava arquitetura em São Paulo, fiz várias visitas às cidades históricas. Tem uma coisa misteriosa, um lado intimista que me agrada na literatura mineira. É algo interessante, que produz esquisitices também. Em Brasília, um dos filhos do Cyro dos Anjos, o Francisco, Chico, que faleceu ainda jovem, era meu amigo no colégio de aplicação. Li naquela época os romances do Cyro, e, há poucos anos, a correspondência dele com Carlos Drummond de Andrade. Tem uma coisa muito interiorizada na literatura de Minas que me fascina. Passa pela memória sedimentada, refletida, lavra da palavra, como diz a canção. E lavra de histórias particulares, que se originam de uma experiência longa, duradoura, vital. E é de Minas que vem uma verdadeira e inovadora experiência linguística. Isso eu vejo no ‘Grande Sertão: Veredas’, onde em mais de 500 páginas um velho jagunço repassa a vida dele, dando origem a um romance de formação de um Brasil profundo. O silêncio e a reticência do conto "A terceira margem do rio"... A literatura explora isso: a impossibilidade de dizer tudo, ou dizer com muitas incertezas e dúvidas. Planejava passar uma temporada numa cidade histórica mineira, onde pretendia terminar meu livro. Mas aí houve essa interrupção. Irei quando acabar a pandemia, se acabar... Queria ouvi o recado das montanhas e os sons dos sinos, antes que tudo desabe.Fabio Setimio/Divulgação

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