Entrevista: Sergio Vilas-Boas: ‘Cada indivíduo é um universo’

Patrícia Cassese - Hoje em Dia
28/09/2014 às 08:42.
Atualizado em 18/11/2021 às 04:23
 (Divulgação)

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  Uma obra “possivelmente” destinada a um público ainda capaz de sentir prazer com a leitura. Não bastasse, que esteja em busca de se identificar (para o bem ou para o mal) com “o mundo dos outros”. Seja como for, o fato de “Perfis – O Mundo dos Outros” (Manole Editora), do jornalista Sergio Vilas-Boas, chegar à terceira edição é, claro, um excelente indicador. Mesmo que ele, todo modesto, faça uma ressalva, relativa às ditas “reportagens mais profundas”, que, lamenta, vêm sendo eliminadas de muitos veículos. “Para você ter uma ideia, todos os 12 perfis das edições anteriores haviam sido publicados originalmente no prestigioso caderno ‘Fim de Semana’ da ‘Gazeta Mercantil’, que, nos anos 1990, era um jornal diário de grande circulação”, ressalva.    Sergio conta que o livro se tornou mais “visível” junto ao meio universitário, “onde ainda há maior oxigenação e aceitação para ‘reportagens aprofundadas’, sem um objetivo estritamente comercial”. Mas, não obstante todo o relativo “sucesso” (sim, as aspas são do próprio Sergio, referindo-se aos padrões brasileiros), o jornalista não estava satisfeito com as edições anteriores, como confessou ao Hoje em Dia.    Qual o motivo desta “insatisfação”? Primeiro, porque o livro fazia parte de uma coleção totalmente voltada ao público acadêmico. Segundo, a edição não fazia jus ao conteúdo, era pouco convidativa. Terceiro, os personagens eram todos escritores e, apesar de alguns não serem muito conhecidos, a maioria era famosa. E o ensaio reflexivo que, nas edições anteriores, tinha o título de “Feições de um perfil jornalístico”, estava defasado em relação ao meu próprio amadurecimento como autor e estudioso do assunto. Daí decidi aperfeiçoar a coisa toda, mesmo que isso implicasse mudar de editora.   Conseguiu, pois, resolver a contento essas questões? Agora, sim, o livro pode atingir um público mais amplo e o projeto gráfico está afinado com o conjunto da obra. Além disso, há uma variedade maior de personagens – e com um bom equilíbrio entre famosos e não famosos, algo que sempre quis (até para mostrar que o “problema” de escrever perfis é sempre do autor, nunca do personagem). Por fim, mantive os 12 perfis das edições anteriores e acrescentei dez, como o Tostão (ex-jogador) e o jornalista Maurício Kubrusly. E o principal: finalmente, acertei a mão com o ensaio “A Arte do Perfil”, em que apresento o gênero e me posiciono mais firmemente sobre o método de trabalho que, até o momento, me parece o mais adequado.   Na sua opinião, a quem a obra se destina?  Cada indivíduo é um universo, no caso, e os 22 textos do livro são escritos de maneiras diversas, com linguagens variadas e sob circunstâncias também muito diferentes. Mas não tinha um “alvo” claro em mente. Como ter?    Como foi o feedback aferido nas edições anteriores? A maioria dos retornos dizia respeito à “sensibilidade do autor para adentrar e compreender a vida alheia”. E confesso que fiquei bem contente com isso, porque, no fundo, é o que eu tento fazer mesmo. Mas também recebi retornos menos linguísticos e mais jornalísticos, do tipo: “Apuração minuciosa, senso de detalhe e paciência para encontrar o ponto de equilíbrio entre o diálogo presencial e a observação do que não é verbal”. Um feedback que me sensibilizou, especialmente, foi o de uma jornalista recém-formada. Ela me enviou uma mensagem pelo meu blog dizendo: “Seu livro ‘Perfis’ me fez repensar meu projeto de vida. Não quero mais trabalhar com noticiários nem com informações urgentes”. Uau, achei isso extraordinário, pois foi mais ou menos o que senti quando, uns 20 anos atrás, descobri o jornalismo literário de reportagens especiais praticado pelos norte-americanos.   Bem, vamos entrar na seara das perguntas óbvias: quem você nunca “perfilou” (sim, sei que você não gosta dessa palavra, li no ensaio) mas gostaria de...? Não produzo nada, digamos, industrialmente. Nem perfis nem nada [risos]. Sou antiindustrial por natureza. Tampouco (sobre)vivo de escrever narrativas biográficas. O que ocorre é que ou eu sugiro os personagens, ou aceito sugestões alheias ou simplesmente me deixo levar pelas histórias de indivíduos que se cruzam com a minha vida em dado momento. Então, não sou – nem pretendo ser – do tipo “caçador de personagens”. Não me atrai a ideia de ficar obcecado por uma pessoa ou lamentando se perdi (ou ganhei) a “pessoa certa” para “o perfil ideal”. Além do mais, tenho duas características pessoais que, bem ou mal, impactam tudo o que faço: 1) sou reservado; 2) não idolatro nem idealizo objetos ou pessoas.      Você fala em não idealizar o personagem... No passado, já incorreu nesta armadilha? A decepção foi grande? Nunca idealizei um personagem em si, mas já idealizei as condições de retratá-lo(a). Por exemplo, criar expectativas de que vou poder encontrar a pessoa em lugares/situações diversas e que ela vai se abrir para mim, bastando, para isto, que eu use a minha capacidade de gerar empatia; ou que vou poder ouvir vários convivas e que eles/elas certamente me dirão coisas surpreendentes, imperdíveis. Em alguns casos, a pessoa nem topa, e tudo para. As situações são tão singulares, tão irrepetíveis, que o único dos 22 perfis do livro em que tive todas as condições para construir uma narrativa plenamente à minha maneira (ou à maneira proposta no ensaio “A arte do perfil”) foi a que retrata o sr. Jayme Sirotsky, presidente do Grupo RBS. Passei quatro dias em Porto Alegre. Durante esse período, estive com ele tête-a-tête, conversando mesmo (em particular), em quatro lugares diferentes e ainda pude acompanhá-lo e observá-lo em outros três acontecimentos sociais importantes para ele. Alguns desses encontros tinham movimento – por exemplo, caminhamos juntos pelo calçadão às margens do rio Guaíba numa manhã de sábado, totalmente “desarmados”. E mais: entrevistei seis pessoas, que me ofereceram perspectivas valiosas.     Dos personagens com os quais já trabalhou, poderia citar uma história interessante? Um fato inusitado, engraçado ou imprevisto? Normalmente, incluo nos perfis informações de bastidores, se as considero cabíveis – no sentido de ajudar a entender o momento do personagem ou as condições em que as histórias foram apuradas. Fiz isso no perfil do João Ubaldo Ribeiro, por exemplo. Reproduzi na íntegra o diálogo pouco amigável que se deu início ao nosso encontro, num momento em que os “vários ubaldos” (o título desse texto é “Ubaldos brasilis”) estavam em conflito, atravessando um momento de maus humores e grande pressão. Ele me recebeu no apartamento dele bastante contrariado, como se houvesse sido pego de surpresa (e não era o caso). Outro fato interessante (e que eu também mencionei no livro) ocorreu no primeiro encontro que tive com o escritor Francisco J.C. Dantas, em Itabaianinha (SE), na fazenda em que ele morava, na época. Ele é um sujeito muito sério e cauteloso. A conversa tinha um fluxo, mas não fluía, biograficamente. Não saíamos da lógica intelectual. Mas eu acreditava que ele finalmente entraria em sintonia comigo – e eu com ele. Era questão de paciência. A sintonia é sempre uma questão de tempo e paciência. Daí, depois do almoço, cada um ocupou uma rede para a sesta, como é de praxe por lá. Dormi profundamente. Por volta das 16h, acordei com um cutucão. Era ele, Dantas. “Vamos tomar um banho de bica?”, ele perguntou. “Claro”, respondi, pulando da rede como se ela estivesse eletrocutada. Ainda zonzo, parei para pensar e a ficha caiu: “Ih, eu não trouxe short”, falei. “Tem problema, não. Te empresto um”, ele disse. É como se ele tivesse, depois de um tempo, aceitado que eu não estava ali apenas para fazer o papel de “perguntador profissional” [risos]. Outra situação interessante foi a que vivi com a Jaqueline Ortolan, uma das primeiras mulheres a abraçar a carreira de piloto de jatos comerciais no Brasil e hoje é comandante de Boeing 777 na TAM em voos internacionais. Todas as conversas com ela foram acompanhadas de perto – em estado de vigília permanente – por uma jovem funcionária do departamento de “relações com imprensa” da TAM, o que dificultou imensamente a espontaneidade da Jaqueline. Eu não estava lidando com uma pessoa, na verdade. Eu estava lidando com toda uma corporação, num processo tão burocrático quanto desumanizante. Foi difícil, mas dei um jeito.     Sergio, o que te apraz, hoje, como leitor?  Infelizmente, o Brasil não possui uma sólida tradição em jornalismo narrativo – que é a reportagem de imersão, com apuração detalhada e aguçado senso estético. É a essa tradição de reportagem que os perfis jornalísticos se vinculam, historicamente. Mas houve um “renascimento” desse jornalismo narrativo no país nos últimos 15 anos. Fatores que contribuíram para isso, na minha opinião: necessidade de variação de métodos no jornalismo impresso de noticiários com o advento da “era digital”; retorno da narratividade como conteúdo específico em cursos de graduação e pós-graduação em Jornalismo; o surgimento da coleção Jornalismo Literário, da Companhia das Letras, em 2002, que resgatou clássicos do gênero; a entrada no mercado de revistas como “Piauí”, “Brasileiros” e “Rolling Stones”, entre outras. E o principal: esse tal “renascimento” veio responder a uma necessidade de valorização do “personagem real” num contexto jornalístico marcado pelo excesso de abstrações. Estatísticas e futilidades se tornaram mais importantes do que “gente que realmente (se) realiza”. Entre os perfis escritos por autores brasileiros que mais gostei de ler, nos últimos anos, estão certamente alguns do João Moreira Salles e da Daniela Pinheiro na “Piauí”. E admiro o trabalho de reportagem em profundidade (não exatamente no gênero Perfil) que a Eliane Brum fez durante um bom tempo na revista “Época”. Singular a maneira como ela capta os sentimentos e emoções dos personagens de suas matérias. Mas, acredite: não há texto perfeito. Nem meu nem de ninguém. A perfeição é um ideal humano, logo... Imperfeito [risos].  

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