Filme com Regina Casé leva à reflexão sobre relação de patrões e empregados

Vanessa Perroni - Hoje em Dia
19/09/2015 às 08:43.
Atualizado em 17/11/2021 às 01:48
 (Divulgação)

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Raros personagens brasileiros são tão comuns como Val, a empregada doméstica vivida por Regina Casé no filme “Que Horas Ela Volta?”. O longa-metragem assinado pela diretora Anna Muylaert vem suscitando um sem número de discussões entre os espectadores, desde sua estreia no final de agosto.

Natural de Recife, a personagem Val mora há mais de 13 anos em São Paulo, na casa dos patrões. Não apenas arruma a casa, mas lava as roupas, cuida do jardim, passeia com o cachorro, prepara o almoço e cerca de cuidados Fabinho (Michel Joelsas), o filho dos patrões. Sempre solícita, nunca questiona sua posição dentro do lar, como ter que fazer as refeições em uma mesa separada e dormir no quartinho “dos fundos” – e isso, só quando todos os demais da casa já foram dormir.

Não bastasse, jamais colocou os pés na piscina da residência de classe alta, localizada no Morumbi. Val sabe que “a pessoa já nasce sabendo (sua posição)”, como explica à filha Jéssica (Camila Márdila).

Conflito

E por falar em Jéssica, a tensão, no longa, tem início quando a filha da empregada – que, para a patroa Bárbara (Karine Teles), é “praticamente da família” –, chega a São Paulo para prestar vestibular – e passa a morar junto à mãe, na casa dos patrões.

Mais consciente de sua posição na sociedade, a personagem começa a desconstruir uma estrutura que, tanto para os patrões quanto para Val, parecia natural. Expõe, pois, a artificialidade das relações firmadas na trama.

O Hoje em Dia esteve em uma das sessões do longa para acompanhar a reação do público. Em uma sala lotada, com pessoas de perfis diversos, foi possível perceber o incômodo ante algumas cenas. Estudante de Letras, Melissa Moraes, 23 anos, disse que entrou em conflito consigo mesma em diversos momentos. “Certas ideias são construídas socialmente, como essa questão de a empregada doméstica não se sentar à mesa com os patrões. E me vi desconstruindo vários pensamentos durante o filme”, comentou a moça, que diz conhecer pessoas como Val.

“A empregada da minha vizinha é exatamente como ela. Passa o dia todo no trabalho. Cuida da filha dos patrões e não tem tempo para cuidar do próprio filho”, relata.

Bom-senso

A aposentada N.C.S preferiu não ter o nome identificado) achou algumas cenas exageradas, por entender que todos devem manter uma postura em seus locais de trabalho. “Ninguém leva o filho para a empresa que trabalha e deixa ele fazer o que quiser. Se a filha da empregada vai à casa dos patrões, também tem que saber se comportar”, compara.

Discussões à parte, “Que Horas Ela Volta?” é político sem ser panfletário. Torna visível o invisível e abre espaço para o debate, reivindicando uma mudança de ideias. Mas também é uma história de amor, pois, ao fim, há esperança e transformação.

- Escolhido para representar o Brasil no Oscar 2016, “Que Horas Ela Volta?” já foi vendido para mais de 30 países, entre Europa, América, África e Oriente Médio. Em quatro semanas de exibição na França, superou 150 mil espectadores

Livros reverberam a questão da 'invisibilidade'

Em 2012, o psicólogo paulista Fernando Braga lançou o livro “Homens Invisíveis – Relatos de uma Humilhação Social”, fruto de uma experiência vivida nas dependências da Universidade de São Paulo. Durante dez anos (em média, uma vez por semana), ele assumiu a função de gari. “Lembro de passar por colegas de classe e professores e ninguém me reconhecer. É como se não estivesse ali”, lamenta. Além do livro, a experiência foi tema de seu mestrado e doutorado.

Para Fernando, existe uma “cegueira social” por parte das classes mais favorecidas, que veem trabalhadores de classes inferiores, como objetos que servem às suas necessidades. E afirma que a grande lição de sua experiência reside em valorizar as coisas simples. “Descobri que um bom dia, que nunca recebi como gari, pode mudar o dia de uma pessoa. É um sinal de que você existe”, relata.

Sentindo na pele

Durante dois meses como auxiliar de serviços gerais – ou “faxineira” – em uma escola particular, a massoterapeuta mineira Maria Aparecida de Rezende, 38 anos, vivenciou momentos de discriminação e invisibilidade. A experiência resultou no livro “Sentindo na Pele”, lançado na Bienal do Livro do Rio de Janeiro.

A autora foi movida pela vontade de conhecer as dificuldades que muitas mulheres enfrentam, por terem que trabalhar o dia todo fora de casa e ainda cuidar da família e do lar. Com um salário de pouco mais de R$ 700 reais/mês, Maria Aparecida passou a usar dois ônibus para chegar ao serviço.

Lá, encontrou pessoas que a ajudaram, mas também quem não notasse sua presença. “Tem muita gente bacana. Mas também professores que fingiam não nos ver”, comenta ela, lembrando do dia em que limpava a sala dos professores e um dos educadores entrou e cumprimentou todos os presentes – menos ela, a “faxineira”. “Muitos alunos não passavam perto da gente. Ou passavam com olhar de desprezo, como se fôssemos sujas”, lamenta. Com o livro, Maria espera mudar o olhar das pessoas sobre esse tipo de profissão.

Divã de papel

A mineira Maria de Jesus da Silva, a Zuza, também lançou um livro impactante, “Divã de Papel”, no qual repassa sua trajetória. Como o período em que viveu em um orfanato. “Era nítida a diferença de tratamento dada às crianças por parte das freiras. Nós, negras, éramos chamadas de pobretonas, cabelo duro...”.

Consciente, ela sabe que esse tipo de atitude se reproduz em várias situações, como na diferença entre zona sul e zona norte. “Como se essa (cidade) fosse só dos bairros ricos. E a invisibilidade social muitas vezes vem camuflada, como no caso da empregada, que está todo dia na casa da família, mas não pode se alimentar perto dos donos (da casa). As propagandas e programas de TV muitas vezes reforçam essas atitudes”, diz ela, que vê a política como único meio para colocar um ponto final nesta história de matizes tão sombrios.

E mais

Filmes flagram o uso da mão de Obra de Portugal na França

A mão de obra made in Portugal na França tem gerado filmes muito interessantes. Vale muito a pena ver “As Mulheres do 6º Andar”, de Philippe Le Guay, com Fabrice Luchini na pele de um aristocrata cuja vida muda quando conhece a realidade de suas empregadas (foto abaixo). No mesmo diapasão está “A Gaiola Dourada”, do luso-francês Ruben Alves, que, a exemplo de “Que Horas Ela Volta?”, mostra também os filhos do casal português que trabalha em um condomínio na França. No filme coletivo “Paris, Je T’Aime”, o episódio de Walter Salles mostra uma moça que deixa o filho bebê em casa para cuidar do rebento de sua patroa.

Outros exemplos do tratamento do tema por seriados, filmes e música
Na extinta série “A Diarista”, a personagem de Claudia Rodrigues sorria, irônica, ao ganhar de presente, de uma das patroas, um relógio de parede... sem os ponteiros! Ou uma panela de pressão sem a tampa. O filme “Histórias Cruzadas” explicita toda a invisibilidade que pairava, nos EUA dos anos 1960, sobre as mulheres negras que criavam os filhos das senhoras brancas da sociedade. O filme “Crianças Invisíveis” é outro que merece ser visto. Recentemente, causou frisson o clipe “Boa Esperança”, de Emicida. Dirigido por Katia Lund e João Wainer, traz uma cena que quem assistiu a “Uma História Americana” (e a “Histórias Cruzadas” também) vai reconhecer. Pra lá de impactante, o clipe tem movimentado a web.

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