
Gêneros como faroeste e ficção-científica são muito identificados com a produção norte-americana – com exceções ao western spaguetti (da Itália dos anos 60 e 70) e os filmes cerebrais do russo Andrei Tarkovski passados no futuro, como “Solaris” e “Stalker”. Qualquer procedência diferente passa a estabelecer outro vínculo, geralmente como metáfora de uma determinada realidade social.
Sob certo aspecto, os longa-metragens brasileiros sobre o cangaço tinham esse pé no faroeste, mas não estavam falando da corrida do ouro no leste dos Estados Unidos, durante o século 19, tema principal dos filmes de bangue-bangue de Hollywood. É neste sentido que se insere “Bacurau”, vencedor do Prêmio do Júri da última edição do Festival de Cannes e principal estreia de hoje nos cinemas.
O filme pernambucano de Juliano Dornelles e Kléber Mendonça Filho (de “O Som ao Redor” e “Aquarius”) evoca o gênero não como imitação, mas como crítica a formas legitimadoras de violência, papel que coube ao próprio cinema americano por anos. É muito singular que, num momento capital da trama, um povo atacado por invasores estrangeiros retome o passado de cangaço.
Não se trata do enfrentamento da violência com violência. Não por acaso, as armas dos cangaceiros são retiradas de um museu, deixando clara a ideia de uma resistência cultural. Os antagonistas não se interessam em entrar no museu, estampando menosprezo pela história de seus inimigos – uma clara citação à desastrosa aventura americana no Vietnã.
Os invasores são arquétipos do cinema, não indo além do que são (soldados) e do que propõem (matar por esporte), numa inversão à cartilha dos faroestes. Os “índios”, no caso os habitantes de um distrito praticamente esquecido no mapa e que representam em sua variação de tons de pele e fala um Brasil múltiplo, exibem uma riqueza que contrasta com a pobreza do lugar.
É como se “Bacurau” dividisse sua história entre um mundo que parece saído da ficção cinematográfica e outro bastante real e palpável. Essa transição entre universos é feita de forma brilhante pela dupla de diretores, sem que um “contamine” o outro. E uma das razões de dar tão certo é que eles praticamente não se encontram, com exceção do líder invasor vivido pelo alemão Udo Kier.
É sintomático que, em determinante instante, ele seja enterrado vivo, como se fosse posto num museu, para que a população se lembre do ocorrido, até porque uma das frases deste líder é “Está apenas no começo!” – alerta sobre uma invasão estrangeira que se tornará mais frequente. A imagem frisada numa reportagem de TV faz o link entre o distrito e o resto do país, quando se lê que “novas execuções no Vale do Anhangabaú serão retomadas às 14 horas”.