A saga dos queijos especiais da Dinamarca para a pequena Cruzília

Hoje Em Dia
20/11/2015 às 16:48.
Atualizado em 17/11/2021 às 03:01
 (Divulgação)

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O dinamarquês Thorvald Nielsen chegou ao Brasil no início do século XX. Ele fugia da Primeira Guerra Mundial e pretendia seguir até a Argentina para produzir queijos. Um primo que trabalhava em uma fábrica de creme de leite no Rio de Janeiro, avisou: “aqui no Brasil tem um creme de leite muito bom, chega de trem, é bem cremoso”.

Nielsen correu para a estação ferroviária e descobriu que o creme de leite vinha de uma região de fazendas no Território da Mantiqueira. Veio para Minas Gerais com os cinco filhos e a esposa, associou-se a um fazendeiro e, montou um laticínio.

O produtor não conhecia ninguém na pequena Cruzília, incrustada no alto das montanhas, no caminho velho da Estrada Real. Decidiu então trazer dois queijeiros da Dinamarca para ajudá-lo, Hans Norremose e Axel Sorensen. Com eles, vieram técnicas que revolucionaram a pecuária na região. Adubaram as pastagens, introduziram a inseminação artificial do rebanho e foram chamados de loucos quando mandaram ordenhar as vacas duas vezes por dia.

A cultura dos queijos europeus prosperou na Mantiqueira, de onde começaram a sair gorgonzolas, camemberts, bries, ementais e provolones de altíssima qualidade. Mas ainda havia desafios. Muitas fazendas eram isoladas. Apenas as maiores contavam com estradas precárias para escoar a produção.

Sem possibilidade de buscar o leite fresco nas propriedades vizinhas, os produtores decidiram abir pequenos laticínios em cada uma delas. Hans chegou a ter 21 fábricas. Ele usava um monomotor para recolher a produção.

Assim, a tradição dos queijos finos espalhou-se pela região. Com o tempo, funcionários das fazendas abriram seus próprios laticínios, ensinaram os filhos e passaram aos netos.

Tudo ia muito bem até quando, na década de 1990, multinacionais fizeram ofertas tentadoras e compraram a maioria das queijarias da região. Compraram, mas não levaram. Sem a sabedoria dos produtores artesanais e com foco no mercado, todas as fábricas fecharam as portas.

Uma tradição fadada a desaparecer, não fosse uma família que comercializava queijos em São Paulo.

“Meu pai vendia queijo em uma banca no Mercado da Cantareira. Em 1996, eu e ele viemos prá cá e passamos a nos dedicar exclusivamente à produção, sempre com essa ‘pegada’ de queijo especial”, lembra o empresário Luiz Sérgio Medeiros.

Em 2010, a família arrematou, em um leilão, o prédio do primeiro laticínio da cidade, construído em 1920. Um local repleto de anedotas da nossa cultura gastronômica. “A primeira vez que os dinamarqueses produziram um queijo como o Danbo, que é redondo e baixo, um fiscal do Ministério da Agricultura viu e disse: ‘isso não é um queijo, é um prato’. Aí nasceu o queijo prato, que a gente encontra em todo o país”, conta Luiz Sérgio.

A elaboração de novos tipos de queijos já rendeu diversos prêmios ao laticínio, que há cinco anos figura no topo do ranking nacional de queijos. O destaque fica por conta do queijo ‘A lenda’ criado a partir da descoberta de um verdadeiro tesouro. “Quando compramos o prédio, que estava abandonado há alguns anos, encontramos um cofre em um galpão cheio de entulho. Sempre tive curiosidade de saber o que tinha dentro. Um dia, chamei um serralheiro e, depois de um dia inteiro de trabalho com a furadeira, conseguimos abrir o cofre”, explica o dono da Laticínios Cruzília.

Além de documentos antigos, no cofre havia o desenho de uma prensa rudimentar e um pequeno frasco de fermento enrolado em um papel com os dizeres: “Sorensen. Contém três fermentos láticos”. “Eu abri e só tinha um fermento. Achei que já estava morto, mas meu funcionário insistiu em tentar reativar a sepa”, lembra o produtor.

Deu certo. Durante um ano, a fábrica replicou o fermento do cofre. “Mandei fazer uma prensa igual a do desenho. Tivemos que improvisar porque vimos que o queijo precisava ser bem grande para ficar bom. A mistura leva 250 litros de leite e o queijo fica com uns 16 quilos”, diz Luiz Sérgio.

O produtor diz que o nome surgiu quando começaram a curar o queijo. “Sempre ouvimos histórias de fantasmas na fábrica e meus funcionários começaram a dizer que os queijos estavam mudando de lugar à noite. Era colocado em uma prateleira no fim do expediente e aparecia em outra pela manhã”, comenta. “Eu brincava que aquilo era ótimo. Dizia que o Hans e o Sorensen estavam nos ajudando a curar os queijos, que ia ficar uma delícia. Daí, o batizamos de ‘A Lenda’ e ele ganhou o concurso de melhor queijo do Brasil em 2013”, completa.


Terroir da Mantiqueira é o segredo do sucesso

A palavra ‘tipo’ sempre incomodou os dinamarqueses. “Hans vivia dizendo que era impossível produzir gorgonzola no Brasil. Ele queria criar o queijo azul, mas nunca conseguiu. O Ministério da Agricultura nos obriga a fazer queijo ‘tipo gorgonzola’. Não adianta explicar que o terroir mineiro dá outros sabores ao queijo”, afirma Luiz Sérgio.

Em 2006, para homenagear Hans, o produtor criou o queijo Azul, que também ficou em primeiro lugar no Concurso Nacional de Produtos Lácteos. “No dia da premiação, havia várias pessoas do Ministério no evento e insisti que devíamos começar a reconhecer o queijo especial de Minas como tal. Demorou, mas em 2010 consegui registrá-lo como o primeiro queijo Azul de Minas”

O produtor explica que as pastagens da Mantiqueira possuem uma bactéria natural, o propriônico, que dá um sabor levemente adocicado ao queijo e permite a formação da olhadura - aqueles furinhos presentes na massa.

“Não adianta termos a tecnologia da produção do parmesão. O pasto é diferente do italiano, o gado é diferente, o clima é outro. O queijo não sai igual. Mas pode ficar até melhor”, comenta Sérgio, que luta para acabar com a nomenclatura europeia.

“Além de ser mais justo com o consumidor, que tem que saber que está comprando um produto típico mineiro, com o sabor da nossa terra, é também uma forma de criar nossas próprias tradições”, diz.

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