'Imortal' recém-empossada, Maria Antonieta Cunha quer incentivar literatura infantojuvenil

Paulo Henrique Silva
phenrique@hojeemdia.com.br
16/10/2021 às 10:56.
Atualizado em 05/12/2021 às 06:04
 (ARQUIVO PESSOAL)

(ARQUIVO PESSOAL)

Ao lado de Berenice Menegale, Maria Antonia Cunha é a grande dama da cultura mineira. As duas, uma na música e a outra na literatura, defenderam a arte do Estado em iniciativas que frutificam até hoje, levando experiências para a gestão pública, esfera em que também marcaram época.

No caso de Maria Antonieta, foi na passagem dela pela Secretaria de Cultura de Belo Horizonte (1993-1996) e pela Fundação Municipal de Cultura (2005-2008) que a capital mineira viu nascer o Festival Internacional de Teatro Palco & Rua (FIT) e o Festival de Arte Negra (FAN).

Fundadora de uma pioneira editora dedicada aos livros infantojuvenis, em 1979, essa ribeirense (nasceu em Ribeirão Vermelho) de 82 anos teve recentemente sua importância reconhecida pela Academia Mineira de Letras, que a elegeu para ocupar a cadeira número 9, cujo fundador foi Bento Ernesto. 

Como Berenice Menegale, que foi secretária de Cultura do município e do Estado, Maria Antonieta dedicou-se à educação e a formar gerações e gerações de alunos ligados ao ensino e à cultura, duas áreas que, como ela mesma ressalta, foram deixadas de lado no governo de Jair Bolsonaro.

“Educação e Cultura são, para mim, irmãs gêmeas. Não estou conseguindo ver com clareza a valorização de projetos e mesmo o apoio ao que temos de mais significativo e genuíno nas duas áreas”, lamenta a imortal, que tem lido muito “A Peste”, de Albert Camus, para refletir sobre o momento atual do país.

Ela cita o personagem Dr. Rieux, um combatente da guerra contra a peste. Guerra que, segundo Maria Antonieta, vale para outras tantas formas de luta – como na defesa de nossa cultura. Para se ter êxito, é preciso muito empenho e convicção, além de termos o coração alerta, porque bactérias ou vírus podem estar apenas adormecidos.

O que representa estar entre “imortais” da Academia Mineira de Letras? Como a presença de mulheres é sempre pequena, você pensa em fazer algo para divulgar o trabalho de escritoras?
Essa entrada para a Academia Mineira de Letras, fora a oportunidade de convivência enriquecedora com tanta gente que vive e respira arte e literatura, para mim, é mais uma oportunidade de trabalhar com as questões da literatura, especialmente a mineira, e mais diretamente ainda, com a nossa bela literatura para crianças. Nossas escritoras, aí também, têm atuação preciosa. Já conversei com o presidente Rogério (Faria Tavares), incansável incentivador de projetos, sobre uma reunião para falarmos de alguns planos meus, logo que a pandemia permitir. 

O interesse pela literatura infantojuvenil nasceu na sala de aula, quando era professora no Instituto de Educação?
Desde lá, meu interesse por essa literatura só cresceu, a ponto de ter iniciado na FALE (Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais) cursos regulares do tema, na graduação e na pós-graduação, na universidade brasileira. E tenho muito orgulho de ver muitos alunos meus seguindo como professores e pesquisadores da área. 

Como surgiu a ideia de criar uma editora voltada para o setor? Na época, havia outras editoras nesse segmento em Minas?
Na verdade, tudo começou com a criação da Casa de Leitura e Livraria Miguilim, porque não havia, em 1979, nas livrarias brasileiras, sequer um acervo significativo, nem um cantinho adequado para a leitura das crianças. Meus alunos nem conseguiam comprar livros indicados no curso, e as próprias bibliotecas escolares tinham acervo reduzido e pouco atualizado. Na nossa livraria, havia um grande espaço para a leitura das crianças, com pais e com professores, e uma atividade constante de atendimento a crianças e a educadores. Daí para a criação da editora foi um ano de boas experiências. Havia muitas editoras voltadas para livros didáticos, e a literatura infantil era produção praticamente de “entressafra”. Preciso ressaltar que minha experiência como conselheira da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e minha participação em feiras e prêmios internacionais da área me puseram em contato com a produção do mundo inteiro na área do infantojuvenil, e me mobilizaram para essas empreitadas.

Era comum, naquele tempo, ter mulheres à frente de editoras?
Tanto na livraria quanto na editora, nós éramos um grupo de mulheres, mas, àquela altura, não foi uma definição pensada, de ‘empoderamento feminino’. Por acaso, à minha volta, estavam colegas e monitoras excelentes e profundamente interessados no tema. Não saberia dizer se era uma novidade o fato de mulheres estarem à frente da empresa. Nossa preocupação, basicamente, era suprir reais e grandes lacunas, no tratamento da literatura para crianças e jovens.

Como a Miguilim contribuiu para fortalecer a literatura infantojuvenil?
O fato de sermos proprietárias e atuantes na livraria e na editora nos dava condições de fazer a seleção de textos e de ilustradores, criando projetos inovadores, sem a preocupação primordial de grandes lucros. Quer dizer, éramos responsáveis pelos recursos e pelos gastos. Pudemos fazer obras preciosas, de Bartolomeu (Campos de Queirós), Angela Lago, Joel Rufino, Sylvia Orthof, Antonio Barreto, e com ilustradores como Marilda Castanha, Ana Raquel, Paulo Bernardo, entre tantos outros. Chegamos, em 1986, a ganhar dois dos três prêmios conferidos pela Câmara Brasileira do Livro.

Você nunca deixou de estar ligada a editoras, como a Rona, entre outras, mas a experiência de criar uma editora nunca mais se repetiu? Por quê?
Faço trabalhos esporádicos e não conflitantes para algumas editora, como a Rona, a Physalis, do Rio Grande do Sul, mas, a não ser na grande crise iniciada em 2015, sou editora da Dimensão, que começou como grande editora de didáticos, mas resolveu investir mais seriamente em literatura em 2004, e tem, hoje, um catálogo de muitos prêmios e menções importantes. Depois da Miguilim e da Secretaria (<CF36>Municipal</CF>) de Cultura, fui sendo requisitada para trabalhos no Ministério da Educação e na Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais. Não houve tempo mais para pensar na criação de outra editora. 

Essa experiência foi importante quando você aceitou ser secretária de Cultura do município? Quais foram as grandes dificuldades?
Penso que, no convite para estar à frente da Secretaria de Cultura, em 1993, pesou para o prefeito eleito Patrus Ananias de Sousa o fato de ele ter sido meu alunos, ainda no curso “ginasial”, o Fundamental II de hoje, e ter tido a oportunidade de oferecer minha biblioteca para os alunos escolherem livros para ler. E também o fato de ter criado, havia pouco tempo, o projeto da Biblioteca Infantil e Juvenil de Belo Horizonte, a convite da sempre saudosa secretária de cultura Berenice Menegale. Fui também a primeira diretora da biblioteca, e lá desenvolvemos atividades incríveis de promoção de leitura. Para você ter uma ideia: abríamos aos sábados e domingos, para lazer de pais e filhos, não só de leitura, mas sessões de teatro, de música, de contação de histórias. Quando assumi a Secretaria de Cultura, por motivos éticos, deixei a sociedade. Sobre dificuldades: certamente existem, mas todas elas são resolvidas ou bem contornadas, quando temos prefeitos que valorizam a área e dão autonomia e apoio aos projetos idealizados.

Criada por Maria Antonieta, Miguilim foi pioneira na publicação para jovens e crianças no Brasil

O Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte (FIT) e o Festival de Arte Negra (FAN) foram criados em sua gestão. Você imaginava que esses festivais iriam tão longe, se tornando referências culturais no Estado e no país?
É uma alegria constatar que a população e a Prefeitura de Belo Horizonte tenham percebido a extraordinária importância e força desses festivais, que nasceram como grande inovação, e os tenham conservado até hoje. Tomara que tenham vida longa, cada vez mais fortes. É preciso registrar que uma equipe capaz de pensar grande e interagir de verdade com a população fez sempre a diferença, nas minhas duas gestões da cultura da cidade.

Outro passo aconteceu na esfera federal, à frente do Plano Nacional do Livro e Leitura. Como vê hoje o incentivo à literatura pelo governo?
Estive pouco tempo – pouco mais de dois anos – ligada ao Ministério da Cultura, à Biblioteca Nacional e ao Plano Nacional do Livro e da Leitura, exatamente porque, na minha visão, as condições de um trabalho realmente produtivo eram reduzidas. O governo federal tem atuado sobretudo nos editais de aquisição de livros para as escolas, via Ministério da Educação, continuando e até ampliando esse programa iniciado por governos anteriores. Ainda não houve os resultados dos últimos três, e esperamos que equipes qualificadas e com a visão mais apurada da literatura e da arte, na formação de leitores e cidadãos, estejam na seleção das obras inscritas. Os editais são um passo inicial importante na promoção da leitura, mas acredito que é preciso fazer mais pelo próprio magistério e pela escola para um avanço mais qualificado de todo o sistema educacional. Acredito que o cuidado com a cultura tenha de passar pelos mesmos cuidados e apoios a equipamentos e projetos, o que exige um real conhecimento da área.

Como você avalia esse difícil momento da cultura no país?
Acho bastante difícil separar as questões de educação e da cultura, para mim, irmãs gêmeas. Não estou conseguindo ver com clareza a valorização de projetos e mesmo o apoio ao que temos de mais significativo e genuíno nas duas áreas. Nesse momento difícil, que se conjuga com essa pandemia, sempre releio Albert Camus e seu extraordinário ‘A peste’, título que é, na verdade, uma metáfora da guerra e, como tal, vale para todas as guerras que, de vez em quando, somos obrigados a enfrentar e procuramos ganhar, para nos sentir humanos. No livro, o Dr. Rieux, que enfrenta e, a custo, vence a peste, termina o romance nos lembrando de que vencer qualquer tipo de peste exige muito empenho e convicção, e que é bom termos o coração alerta, porque as bactérias ou vírus de alguma peste podem estar apenas adormecidos, e reaparecerem, ao menor descuido.

Ela se formou em Letras Neolatinas, com mestrado e doutorado em Letras pela UFMG. Lecionou Língua Portuguesa no chamado “Curso de Formação” de Professores do Instituto de Educação de Minas Gerais, de 1964 a 1970

Quais são os seus próximos projetos?
O próximo projeto é voltar à vida normal o quanto antes, e estar viva para continuar as ações que estão pensadas, para a Academia Mineira de Letras, para a curadoria de Feira do Livro de Joinville, para a editora Dimensão e para quem mais me pedir a colaboração que eu puder dar, onde quer que seja.

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