Júlia Rocha: 'Este livro é o maior grito de viva o SUS que eu poderia dar'

Paulo Henrique Silva
phenrique@hojeemdia.com.br
14/12/2020 às 06:55.
Atualizado em 27/10/2021 às 05:18
 (ÁTILA SOUZA/DIVULGAÇÃO)

(ÁTILA SOUZA/DIVULGAÇÃO)

No lugar de promover saúde, um médico pode levar um paciente ao adoecimento e, muitas vezes, ser o principal motivo para muitos deixarem de lado os ratamentos.Uma triste realidade, presente, principalmente, em comunidades periféricas, que Júlia Rocha se esforçou para transformar em dez anos de carreira – boa parte deles dedicados aos Sistema Único de Saúde.

Os questionamentos da médica mineira, especializada em atendimento primário à saúde na Região Metropolitana de Belo Horizonte, ganharam as redes sociais e milhares de seguidores em textos cuja mensagem principal apontou para a possibilidade de sermos agentes transformadores. As postagens agora estão reunidas no livro “Pacientes que Curam: o Cotidiano de uma Médica do SUS”, recém-lançado pela editora Record.

Não podemos nunca tirar de perspectiva essa ideia de que o medicamento e o tratamento vêm como complemento para uma vida digna. E não como substitutos”, alerta Júlia, que agora planeja se dedicar com mais intensidade a outra grande paixão: a música.

Como a experiência de ser uma médica do Sistema Único de Saúde transformou a sua vida?
É absolutamente definidor da profissional que eu sou o fato de ter sido médica do SUS por dez anos.O livro é uma comemoração dos meus dez anos de formada, reunindo casos de pacientes com quem tive a oportunidade de conviver e aprender.Com o passar dolivro, a gente vai percebendo que há coisas que o SUS traz como aprendizado, como a vivência em extremos sociais e de coletividade dentro de uma comunidade. Foi muito rico trabalhar na saúde pública, apresentando uma perspectiva da saúde como um direito e não um bem a ser consumido.

Você deixa bem claro no livro que a palavra saúde não representa apenas atendimento médico, mas também questões como moradia e trabalho. Por quê?
Saúde pouco se relaciona com oconsultório médico e com a unidade básica de saúde. Claro que, em alguns momentos específicos, para algumas pessoas
mais eoutra smenos, a gente vai precisar desses serviços ,mas a saúde é construída no cotidiano, com o acesso a uma moradia digna, a um ambiente seguro, a saneamento básico, à soberania alimentar. E quando uma parcela significativa da população tem seus direitos alijados, o médico acaba não conseguindo, dentro do consultório, promover saúde de forma plena. Por mais que a gente faça, nada substitui este tipo de amparo que só o Estado pode prover. Não podemos nunca tirar de perspectiva essa ideia de que o medicamento e o tratamento vêm como complemento para uma vida digna. E não como substitutos. A gente aprende a lidar com estas coisas e tentar contornardamelhorforma possível, mas nunca um remédio para verme será capaz de substituir saneamento básico e levar para estas pessoas dignidade.

O livro é fruto de textos escritos desde 2014 para as redes sociais. Como é que surgiu o desejo de mostrar esta vivência dentro do consultório?
Comecei a escrever sobre os encontros que eu tinha com meus pacientes, não em relação a questões técnicas que envolvem um diagnóstico ou a proposta de tratamento. Mas sim aspectos relacionados às humanidades, com um ser humano encontrando outro ser humano. Comecei a expor estes textos no Facebook, preservando a identidade dos pacientes e mudando alguns contextos para que não fossem identificados. Isso começou a tomar uma proporção que fugia daquilo que eu tinha como expectativa. Este volume de informações foi crescendo e, de repente, eu me vi com incontáveis casos que mostravam um Brasil que eu gostaria que mais pessoas conhecessem, principalmente quem não vivencia uma realidade de injustiça social. Uma produtora de São Paulo, Amália Parallo, me propôs reunir esses textos e chamou um amigo para fazer a organização. Fiz a revisão e, a convite do grupo editorial Record, topei realizar esta aventura. Decidi lançá-lo de última hora neste ano, por conta das impossibilidades geradas pela pandemia. Casou bem, porque são dez anos de formada e eu quis comemorar com este registro. Ainda na pré-venda, já estou recebendo alguns retornos sobre a mensagem que eu quis passar. Eu digo que este livro é o maior grito de “Viva o SUS!” que eu poderia dar, porque ele é realmente a celebração desta conquista do povo brasileiro.

“Comominha rotina é de ser multi-tarefas, optei por não estar no SUS neste momento. Como a condição de médica de família exige uma dedicação integral, avaliei que seria melhor para mim e os pacientes que eu encontrasse outra forma de trabalhar”


Há pelo menos dois textos no livro que falam da questão do machismo na sociedade, como o caso de uma mulher que queria um remédio para diminuir o desejo sexual dela.
Até que eu me tornasse essa pessoa que eu sou hoje, com as reflexões criadas durante os últimos anos, não conseguiria enxergar nestes relatos, nestas demandas trazidas por meus pacientes, o contexto social que determina o adoecimento deles. Isto também é fruto de um amadurecimento meu. Eu acredito que este livro possa trazer como contribuição uma otimização do amadurecimento destes jovens médicos que vão ter este olhar mais apurado. Eu não consegui enxergar o machismo numa mulher que vem com a demanda de uma demanda de renovação de receitas por antidepressivos, com uma vida sofrida e limitada por conta deste poder patriarcal que a gente está submetida o tempo todo. Eu não consegui enxergar o machismo nesta mulher que vem com a demanda de um medicamento para diminuir o desejo sexual, já que, dentro da fé que ela processa, não pode manifestar este desejo. Todas estas repressões vieram na forma de crônicas. Durante a seleção dos textos, notamos que tinham quatro, cinco crônicas sobre mulheres passando por isso, por uma medicalização de um contexto social. Ao invés de a gente questionar o machismo, a gente dá um comprimido que silencia a dor daquelas mulheres.Lucas Prates / N/A

Em 2016, você escreveu um texto em resposta a um médico que zombou do linguajar coloquial de um paciente. Nos comentários, houve muita manifestação de apoio e alguns ataques racistas. Como vem lidando com esta hostilidade nas redes sociais?
Eles (os ataques) vêm de todos os lados. Tenho me protegido, no sentido de me fortalecer mesmo, de estar entre os meus pares. E entender também que as pessoas têm direito de pensarem de forma diferente. Nem todo mundo vai olhar para o mundo da mesma forma que eu olho. É bom que opiniões diferentes estejam no debate público para que a gente possa fazer estas reflexões. Eu não aponto o dedo – nem na ocasião eu apontei o dedo. Mas é preciso fazer esta reflexão: médicos e médicas pertencem a classes sociais mais endinheiradas ainda hoje. Vemos poucos médicos de origem pobre, vindos da classe trabalhadora, negros ou indígenas. É importante ter um olhar de classe para estas questões e conceitos. Nós que queremos prestar uma assistência qualificada temos que ficar atentos a estes aspectos, justamente para não nos tornarmos mais um canal de violência para aquele paciente, virando um fator adoecedor. Há relatos de organizações de pacientes falando sobre como a assistência médica pode ser danosa quando ela não enxerga o paciente dentro deste contexto social e econômico. Ao invés de promover a saúde, às vezes a gente pode levar adoecimento, tristeza e angústia, provocando o abandono do tratamento ou a negação de procurar assistência médica justamente pelo fato de os pacientes acharem  que serão vítimas de novas violências.

Li um relato seu sobre a mudança de pensamento da época em que fazia a faculdade de Medicina e o que é hoje. Como foi este processo?
Sempre tive um posicionamento político mais centro-esquerda, mais liberal. Mudei muito minha concepção de ordem de mundo e me entendi como uma mulher latino-americana, com todas as implicações que isso venha a ter. É fato que, quando a gente lê sobre a realidade nos livros, temos uma percepção, mas quando sentimos o cheiro da dor, é diferente. Apesar de, quando se termina o turno, a gente põe as coisas na bolsa e volta para aquilo que é quase um outro mundo, é impossível não se deixar atravessar por estas vivências. São muitos fortes e emblemáticos deste Brasil que criminaliza a pobreza, a cultura e a religião de forma preconceituosa. Não temos noção que é essa realidade. Este livro traz a oportunidade para àquela pessoa que vive dentro de seu apartamento, de forma digna, com seus direitos preservados, tenha consciência de que há brasileiros e brasileiras, crianças, idosos e jovens, passando por negação de seus direitos e uma vida indigna, porque a gente tem um Estado que não ampara, que é injusto e concentrador de riquezas. Este Estado precisa ser questionado. O livro trata dessa possibilidade da transformação pela emoção, ao dizer que estas pessoas são gente. Não são coisas, tendo sentimentos como nós e que precisam viver com dignidade.

“Eu entro em estúdio agora para fazer a gravação de um EP em comemoração ao livro, em parceria com dois amigos compositores. As pessoas que compraram na pré-venda vão ganhar um QR Code para terem acesso a este EP”

É muito nítida a sua transformação, principalmente após ser mãe de Gabriela, chamando a atenção para ecologia, veganismo e maternidade. Num show, por exemplo, você cantava e, ao mesmo tempo, amamentava Gabriela. Com milhares de seguidores, isso traz também uma carga de responsabilidade grande, não é verdade?
É uma responsabilidade grande, mas é uma responsabilidade possível. Quando a gente faz uma coisa e acredita naquilo, você não precisa se esforçar, de pensar que o que eu faço é responsável ou boa influência, porque simplesmente sou eu. De fato, a maternidade foi um grande catalisador deste processo de transformação. Ter a minha filha e poder vivenciar o que vivenciam as mulheres neste período de suposta fragilidade, no pós-parto, no puerpério e no cotidiano com ela, é algo que me acrescenta muito, transformando-me como mulher e ser humano todos os dias. De modo mais militante, podemos dizer assim, a maternidade me trouxe a exata noção da importância da luta feminista. Foi uma grande lupa que me mostrou “olha o que as mulheres estão vivendo e o que elas precisam para ter uma vida mais digna”. Quando se é mãe, quando se está neste processo de gestação, a gente é o tempo todo confrontado com o que a sociedade espera do que seja uma mulher. E isso é feito sem que se importem com nossos desejos, com a forma que a gente quer viver e estar neste mundo. Minha militância hoje passa por ser esse canal de informação. Por mais que a música traga a arte e por mais que minha presença traga uma tentativa poética com as crônicas que eu compartilho com as pessoas, ela é, essencialmente, uma presença política, trazendo a informação de que como a transformação pode vir de uma tomada de consciência. E não ser apenas uma pessoa que mudou, mas também um agente de transformação neste mundo, lutando por uma realidade mais justa e por um mundo mais possível. Já que você falou do veganismo e do ecosocialismo, a gente está vivendo sérias consequências da forma como a gente existe neste mundo e o veganismo e o ecosocialismo são uma forma de me posicionar politicamente para que outras pessoas se inspirem e se entendam como esses agentes de transformação.   

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