João Cândido fala com exclusividade ao Hoje em Dia

Clarissa Carvalhaes - Hoje em Dia
25/10/2014 às 10:56.
Atualizado em 18/11/2021 às 04:46
 (Carlos Rhienck)

(Carlos Rhienck)

Aos 18 anos de idade, João, filho do pintor Cândido Portinari (1903– 1962), decidiu: precisava sair de casa. Fugir da sombra do pai famoso e do sufocamento que, de certa forma, a imagem do artista provocava. Para tanto, arrumou as malas e traçou o próprio destino: nada de desenhos, telas ou pinturas.

Estudou Matemática na Europa, formou-se também engenheiro de telecomunicações e é Ph.D. pelo Massachusetts Institute of Technology. Dedica-se à educação com devoção admirável. Hoje, aos75 anos, João carrega a serenidade de um homem que não poderia ter feito melhores escolhas, ainda que tenha voltado, de bom grado, e já há algum tempo, ao legado do pai artista, de reconhecimento internacional.

À frente do Projeto Portinari desde a sua fundação, em 1979, João recorda que, se nos anos 1930 e 1940 o artista era sinônimo de pintura no Brasil, nas décadas que se seguiram a obra do pai caiu num certo esquecimento. Mas o projeto, frisa, não nasceu para enaltecer o artista, e sim para garantir, aos brasileiros, o acesso a uma obra que diz respeito à própria história do país, “e que, naquele momento, estava invisível, escondida”.

Com o tempo, o projeto realizou vários feitos: catalogou mais de 5 mil obras de Portinari pelo mundo, reuniu mais de 30 mil documentos (como cartas e depoimentos de gente como Luís Carlos Prestes, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e Carlos Drummond) e promoveu a itinerância de uma das mais importantes obras do artista – o gigante painel “Guerra e Paz”.

Apesar das bem-aventuranças e da importância reconhecida por público e crítica, João não esconde um certo temor quanto ao futuro. “As pessoas pensam que somos uma Fundação Roberto Marinho, mas o que existe é um projeto modesto, com poucas pessoas, e que precisa de apoio para se tornar autossustentável. Só assim vamos terminar essa grande carta que Portinari escreveu ao povo brasileiro”.

Ainda que a necessidade urgente tire o sono de João, há, na manga, um projeto tão arrebatador quanto os já citados: uma grande retrospectiva para circular internacionalmente. “E vai ter uma característica única: incluir os grandes painéis, como ‘Tiradentes’, ‘A Primeira Missa no Brasil’, ‘Descobrimento do Brasil’, ‘A Chegada de Dom João VI’, ‘Navio Negreiro’”, enumera.

A ideia é inaugurar a exposição no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro e, dali, seguir para França, Itália, China e EUA (Nova York). Para vir a BH, diz João, seria necessário encontrar empresas interessadas em promover a itinerância. “Queremos que isso aconteça em 2016, durante as Olimpíadas, mas vou ter que correr muito para conseguir”.

Entrevista
 
Criador da própria jornada

 
Você sempre soube da importância de “Cândido Portinari” – não o pai, mas o pintor?

Eu tenho até um pouco de vergonha de falar sobre isso porque foi muito tardia, a minha descoberta. Quando era rapazinho não tinha a menor ideia de quem era aquele homem que estava na minha casa. Há um fato que ilustra bem como eu era completamente alheio a quem era Portinari, o pintor: nossa casa sempre foi frequentada por artistas, poetas, escritores, políticos, jornalistas. Pessoas que pertenciam àquele meio em que meu pai circulava, como Manoel Bandeira, Drummond, Jorge Amado, Mário de Andrade, Graciliano Ramos, Villa-Lobos, Oscar Niemeyer... Gente que para mim não significava nada. Pois bem, nós morávamos no Leme, em frente ao mar, e eu era um garoto de praia. Aos 14 anos, só pensava em jogar futebol, pegar onda e namorar. Certo dia, cheguei da praia e, quando abri a porta da sala, lá estava toda aquela gente. Eu vi um sujeito sentado com meu violão na varanda e pensei: “pô, esse cara vai desafinar meu violão”. Perguntei para minha mãe quem era ele e ouvi dela: Villa-Lobos.

E como foi esse processo de (re)conhecimento do artista Portinari?

Ah, foi bem longo. Quando criança, perguntei para minha mãe se meu pai não trabalhava. E ela respondeu: “mas como não trabalha, menino? Ele fica aí pintando o dia inteiro” (risos). Mas era uma pergunta legítima, porque, naquela época, achava estranho ele estar em casa quando os pais dos meus colegas saíam para trabalhar. Já aos 18 anos, me senti sufocado por aquela presença monumental de meu pai. Todo lugar em que chegava, as pessoas apresentavam: “Esta aqui é a Elisa, este é o Jorge e este é o filho do Portinari”. Aquilo foi não apenas doendo, como me fez sentir urgência em tomar uma atitude radical. Sabia que, se continuasse naquele lugar, ficaria na sombra dele para o resto da vida. Por isso fui embora, decidi estudar Matemática e nunca mais voltei. Estava estudando na França quando meu pai faleceu. Eu tinha 23 anos e não cheguei a tempo de vê-lo com vida para me despedir. Quando desembarquei no Brasil, ele já tinha morrido.

Mas havia algum ressentimento entre vocês, uma mágoa?

É claro que, quando fui adolescente, como todo mundo nesta faixa etária, tive um embate com o pai, mas não foi uma coisa que deixasse nenhuma marca. Portinari sempre foi um pai afetuoso. Lembro de quando era criança e tinha febre: ficava o tempo todo colocando a mão dele sobre minha testa. Era uma sensação de segurança e amor. Isso é uma bobagem, mas está eternamente gravado no meu coração. Quando vejo minhas fotos de infância, estou sempre no colo dele, ou nas costas, ou na cabeça. Estava sempre pendurado nele. Quando fui embora, não tardou para trocarmos cartas de carinho. Uma das últimas vezes que estive com ele, o levei ao planetário de Paris. Quando as luzes começaram a se apagar e foram surgindo estrelas, ele virou criança, ficou fascinado com aquilo. E esse fascínio e admiração que ele tinha pela ciência certamente nos aproximou, porque eu estudava Matemática, né?

Uma escolha feita para sair da sombra?


Sim, sim. Mas não foi uma escolha aleatória. Tive um tio francês, matemático, que foi uma pessoa com influência muito poderosa na minha juventude. Eu tinha uma admiração enorme por ele, era uma espécie de alterego para o meu pai. E, ao contrário dele, esse tio não tinha o problema de ser uma presença esmagadora. Foi ele quem me fez enxergar uma avenida de oportunidades e me mostrou a beleza da matemática, pela qual fiquei apaixonado.

Mas, e antes? Você chegou a se arriscar no desenho ou na pintura?

Quando era jovem, falei com ele que queria aprender a desenhar e ele disse: “está vendo aqueles livros que naquela mesa? (com desenhos de Leonardo Da Vinci e Michelangelo) Pois copie todos eles e depois venha falar comigo” (risos). Depois, quando voltei a tocar no assunto, ele falou: “João, se você for um médico mais ou menos você vai sobreviver. Pode ser até um engenheiro e advogado mais ou menos, mas, acredite: se você for um artista mais ou menos, você vai sofrer muito nessa vida”. Eu ouvi aquilo com muita atenção, porque sabia que era um gesto que revelava a preocupação dele com a minha sobrevivência.

E o que você fez nesses anos fora do país? Por que decidiu voltar?

Foram dez anos vivendo fora. Depois de estudar na França, fui fazer o doutorado nos Estados Unidos. E já estava morto de saudade do Brasil quando recebi o convite da PUC do Rio de Janeiro para criar o departamento de Matemática – que não existia na época. Voltei em janeiro de 1967 e, no ano seguinte, aos 28 anos, era diretor do departamento.

E só depois nasceu o Projeto Portinari?

Exatamente. No Dia dos Pais de 1978, escrevi uma carta póstuma a ele. Nela, deixo claro como só ali, aos 40 anos, me dava conta de quem era esse pintor e homem. Foi ali que começou o Projeto. Hoje, quando me perguntam de onde eu sou, brinco que sou uma mistura de carioca com caipira – porque eu guardei muito isso, que era dele, no meu coração.

E o brasileiro? Pode se orgulhar da arte feita por aqui?

Há poucos meses, estava concedendo uma entrevista a uma jornalista em Paris e ela disse: “Então, posso dizer que Portinari é o Picasso brasileiro?” Eu respondi: “Claro! A senhora pode dizer isso à condição de que diga que Picasso é o Portinari espanhol”. E ela levou aquele susto, como se pensasse: “Como um sul-americano ousa dizer uma coisa dessas?” (risos). Mas a verdade é que não há porque sermos subservientes. Não devemos ficar com a espinha curvada diante do que vem de fora. Temos artistas grandiosos e são muitas as razões para nos orgulharmos. Aliás, deveríamos ter os melhores pintores do mundo!
 

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por