Jovens de BH reverenciam artistas como Os Mutantes, Ave Sangria e Odair José

Hoje em Dia
23/11/2015 às 08:26.
Atualizado em 17/11/2021 às 03:02
 (Luiz Costa)

(Luiz Costa)

Os Mutantes surgiram em 1966 e gravaram seu primeiro álbum dois anos mais tarde. O grupo seguiu em sua formação original até 1972, quando Rita Lee se desligou dos outros “bruxos”. Já para o Ave Sangria, tudo começou em 1974, em Pernambuco. O único disco produzido pela banda de rock psicodélico nunca havia sido relançado. Pulamos para 1977, quando as coisas não iam lá muito bem para o cantor e compositor goiano Odair José, que lançava seu “maldito” “O Filho de José e Maria”.

Um corte radical no tempo. Os bolachões dos anos de 1960 e 1970 são substituídos pelos CDs. E veio o advento do computador: nele, os arquivos de música foram ainda mais compactados. Hoje, podem ser ouvidos em streaming, em serviços como Spotify ou Rdio. E, bem, agora que o mercado fonográfico definitivamente já não é mais o mesmo, e sem que ninguém e nem mesmo eles esperassem, eis que as músicas de alguns desses artistas citados no início da matéria têm – acredite! – sua volta triunfal.

Em BH, o Olÿmpia Chop Bar (2º piso do Edifício Maletta), por exemplo, reúne, ocasionalmente, jovens que têm um apreço particular pela psicodelia nordestina. E uma banda sempre discotecada é justamente a Ave Sangria.

O público é formado por jovens – a maioria nem mesmo era nascida na época que a banda se lançava. Caso de Orlei Brum, nada menos que 20 anos mais novo que o citado disco de Odair José. Aliás, ele conheceu o petardo pelo YouTube, e agora ouve sempre que possível. Já o músico Thiago Cruz, 31, não tem dúvidas: foram os Mutantes que marcaram sua vida. “Ouvi-los, foi um baque”.

Mais que uma moda

Ok, é verdade que Os Mutantes voltaram à moda faz tempo. Tanto que é de 2006 o revival, com Zélia Duncan no lugar de Rita Lee. E ainda é possível assistir a shows esporádicos do grupo, mas sem a bênção de Arnaldo Baptista – para ele, a banda acabou em 1986. Mesmo assim, os fãs nunca deixaram de se renovar.

Apesar de todo sucesso, foi só neste ano que o projeto de livro fotográfico “A Hora e a Vez”, de Leila Lisboa, que traz bastidores da primeira formação d’Os Mutantes, se tornou real – e através de financiamento coletivo, já que as editoras nunca acreditaram no potencial do produto.

Com a Ave Sangria a coisa foi diferente. O disco, que leva o nome da banda, de 1974, nunca foi relançado. No entanto, o grupo passou a receber, em 2008, convites para shows. Quase 40 anos depois, voltou aos palcos, em festivais independentes de projeção nacional, como o “Abril Pro Rock”, em Pernambuco, e o “Psicodália”, em Santa Catarina.

Nos shows, os artistas ficavam, claro, surpresos – afinal, o público cantava e vibrava junto. Inicialmente, nos primeiros reencontros, “o grosso do público era das antigas, mas já se mesclava a um pessoal mais jovem. E a cada show, a faixa etária ia diminuindo, tanto que eu, por brincadeira, disse que, daqui a pouco, a gente estaria fazendo show em berçários”, lembra Marco Polo, um dos vocalistas do grupo.

De volta às lojas

No ano passado, o grupo finalmente relançou seus dois discos: “Ave Sangria” e “Perfumes e Baratchos”. Já Odair José sempre acreditou no potencial de “O Filho de José e Maria”. O disco conceitual, no entanto, foi um terror para a sua carreira e sempre foi evitado pelas emissoras de rádio.

Mas, com o tempo, os críticos começavam a se mostrar arrependidos, garante o músico. Tanto que começaram a surgir propostas para mexer, outra vez, neste material. A oportunidade veio e a “ópera rock” – termo que o próprio Odair não usa – foi relançada em 2014. Algumas das músicas, inclusive, já eram incorporadas em outras apresentações de Odair José, sempre “a pedido do público jovem”, frisa.

Qualidade artística impressiona – e inspira – jovens músicos

Por que, tanto tempo depois, essas músicas voltaram a fazer a cabeça da juventude? Para o professor universitário Thiago Pereira, um dos fatores que impulsionaram a volta destes trabalhos é muito típico do mundo que vivemos: a nostalgia. O também jornalista cita o britânico Simon Reynolds, autor do livro “Retromania: Pop Culture’s Addiction to Its Own Past”, para dizer sobre uma recente febre arquivista.

Outro elemento para este retorno, segundo Pereira, é que “existe, hoje, uma molecada que, muito em função da internet, consegue relacionar essas bandas a partir da contemporaneidade”. Assim, conseguem reavaliar a obra desses artistas, dando um contexto do que estava sendo produzido na época no Brasil e no mundo. E como estes “são trabalhos que têm uma potência musical e histórica muito forte”, é normal que reapareçam. “Eles ficaram debaixo do tapete por um tempo. Agora, com a internet, essa história muda”, aponta o professor.

A opinião é compartilhada pelo próprio Odair José. “Como tenho dito, ‘O Filho de José e Maria’ é uma produção acima da média, não foi uma coisa feita assim, de qualquer jeito! E quando se faz comparações com outras produções tidas como grandes, ele termina por ficar junto”, observa.

O produtor musical Diogo Borges adiciona outros elementos a esta retomada da música sessentista e setentista: a autenticidade dos discos. Fazendo um mea culpa, o profissional faz lembrar que, naquele tempo, os mecanismos de edição, como o Auto Tune, não existiam.

A autora do livro fotográfico “A Hora e a Vez”, Leila Lisboa, por sua vez, é enfática: “Quem é bom, é. Claro que a internet foi a propagadora desse efeito dominó, que deixou todos de boca aberta, ninguém esperava ouvir uma música tão boa de 40 anos atrás”.

Fonte de inspiração

Thiago Cruz, da banda independente Pesta, reforça: “muitas bandas que estão surgindo em BH, hoje, estão rebuscando um som. Absinto Muito, Zé Trindade, Cartoon, por exemplo, se baseiam muito nisso. Se eles fossem trabalhar sobre uma sonoridade baseada no que a gente vive agora, talvez não pudessem dizer tanto quanto as pessoas de 1960 e 1970 tinham a dizer”, analisa.

Marco Polo, vocalista da Ave Sangria, também vê, entre os jovens músicos, o anseio de reviver o movimento psicodélico. “A psicodelia é uma música libertária, porque improvisa muito, tem muitas surpresas, as letras podem ter várias interpretações, e os jovens de hoje estão recuperando a capacidade de sonhar por um mundo melhor, uma sociedade mais justa, um planeta mais saudável. Tem tudo a ver”, expõe.

Internet serve de ponte entre o passado e o presente, garantindo novos fãs para os artistas

Como canta a ex-Mutante Rita Lee, o rock brasileiro dos anos de 1960 e 1970 tinha cara de bandido. As exceções seriam a própria Rita e Raul Seixas. As outras produções estavam mais para o underground, para a contracultura, eram música “de garagem”. Talvez por isso, “essa molecada de hoje conheça coisas que os próprios pais nunca ouviram. É o caso do Ave Sangria, que não fazia tanto sucesso assim naquela época, embora sempre tenha sido importante no nordeste do Brasil, pontua Thiago Pereira.

“Os próprios Mutantes – quando os integrantes originais abandonaram a banda – se tornaram o bastião do rock underground. No caso do Odair José, que sempre teve alma de roqueiro, o disco ‘O Filho de José e Maria’ é um ponto fora da curva de como sua produção era percebida. Esse foi o disco maldito dele”, acrescenta.

E que bruxaria é essa que fez o som d’Os Mutantes atravessar os anos com tanto vigor? “A palavra que define nosso som é patética. É uma música patética. Por isso avô, pai e filho escutam e gostam”, define Arnaldo. Com 67 anos, o músico garante: gosta do diálogo com os novos fãs, que chama, afetuosamente, de “crianças”.

Em comum, todos apostam em uma ponte entre passado e presente: a internet. Marco Polo dá o tom: “a web foi fundamental para o redescobrimento da banda por parte da juventude. E, como diz Almir de Oliveira (baixista do Ave Sangria), nos anos 70 nós éramos jovens e os adultos cortaram nosso voo. Hoje, somos adultos e os jovens nos convocaram para voar de novo”. Prova disso é que o grupo tem, na gaveta, material para mais um disco de inéditas.

Na onda de artistas que retornam aos palcos, fica a torcida para que mais nomes se juntem a estes, como, em um manifesto sentimental, comenta Thiago Cruz: “Belchior é um cara que faz uma falta, Belchior é um cara que faz muita falta”.

* Colaborou Alex de Bessas/ Especial para o Hoje em dia

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