'Lazzaro Felice', uma fábula para desnudar injustiças sociais

Estadão Conteúdo
08/01/2019 às 07:59.
Atualizado em 05/09/2021 às 15:55
 (Reprodução / Youtube)

(Reprodução / Youtube)

Sempre se pode esperar algo diferente da diretora Alice Rohrwacher. E este Lazzaro Felice, seu terceiro longa, disponível na Netflix, não decepciona. O filme nos conduz a uma fábula moral muito superior à média do que é lançado nos cinemas.

Lazzaro (Adriano Tardiolo) e outras famílias vivem em regime de servidão extemporâneo sob o jugo de uma "rainha do tabaco". É como um regime medieval, só que ambientado no mundo moderno. Os empregados não recebem salários, estão sempre em dívida com a "senhora", pois compram obrigatoriamente em seus armazéns, e não podem deixar os domínios da propriedade sem autorização. Sintomaticamente, a cidadezinha se chama Inviolata. A senhora feudal é a Marquesa Alfonsina de Luna (Nicoleta Braschi).

Entre a população, emerge essa figura de Lazzaro que, com sua inocência quase caricata, não entende muito bem a situação em que se encontra. E, não a entendendo, por paradoxo pode se tornar fonte de mudança. O registro realista se alterna com um tom aberto de fábula. Uma "fábula" engajada, do tipo que costumava fazer Pier Paolo Pasolini com Gaviões e Passarinhos ou com O Evangelho Segundo Mateus.

Há, sem dúvida, algo de religioso nessa figura quase santificada, que atravessa décadas sem envelhecer e é todo bondade em um mundo mau. Algo de um santo cristão, outro tanto de O Idiota, de Dostoievski. Nem por isso o filme é ingênuo. O personagem, sim, não a obra e menos ainda a diretora, que usa a bondade como um recurso de contraste vivo com o pragmatismo da vida social. Como um espelho moral em relação ao vale tudo social, com a competição eleita como mola ideal para impulsionar o progresso.

O filme dá saltos no tempo e no espaço. Desvela, no passado, a manutenção de formas sociais arcaicas em que a exploração escravocrata nem sequer é disfarçada. Quando chega ao presente, vê uma Europa assimétrica, na qual o desenvolvimento convive com intolerância e a superexploração do trabalho. Entre as duas, as conquistas do Estado de Bem-estar Social europeu que se vai dissolvendo sob o peso das exigências de "mercado". O filme fala disso. Não na contraluz, nem de forma retórica, mas explicitamente. Em especial quando Lazzaro reencontra, na cidade grande, seus antigos amigos de Inviolata, que se libertaram do jogo da Marquesa apenas para cair em outro tipo de escravidão.

Alice Rohrwacher é também diretora de Corpo Celeste (2011) e As Maravilhas (2014). Junto com sua irmã Alba Rohrwacher (que está no elenco de Lazzaro Felice), é uma das vozes novas do cinema italiano. Opta por uma temática de muita consciência social e atenta às dificuldades individuais no mundo contemporâneo. Porém, em termos de linguagem cinematográfica não se conforma com o realismo às vezes rasteiro com que boas ideias (e intenções) costumam ser embaladas. Adota com frequência o tom mágico e fabular para melhor pintar os descompassos da vida cotidiana neste momento de inquietação em quase todo o mundo, mesmo em suas partes mais desenvolvidas, como é o caso da Itália.

Veja o trailer:

 

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