Historiadora Mary del Priori autografa seu livro em BH

Patrícia Cassese - Hoje em Dia
08/10/2014 às 09:36.
Atualizado em 18/11/2021 às 04:31
 (Divulgação)

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A historiadora Mary del Priore assume: gosta de pensar questões ditas “maiores” que, sob seu ponto de vista, atravessam a sociedade brasileira. O livro “Histórias Íntimas”, por exemplo, lhe permitiu lançar um olhar sobre as transformações da sexualidade no Brasil. Já para “Do Outro Lado – A História do Sobrenatural e do Espiritismo” (Editora Planeta, 208 páginas, R$ 34,90), seu mais recente título, ela se perguntou que significação tem o verbo “crer” em nossa cultura.

“Desde sempre, o campo do religioso tem sido uma encruzilhada de várias crenças: podemos ser maçons, positivistas, espíritas e frequentar terreiros de tradição africana, tudo ao mesmo tempo. No passado, também, as pessoas iam da igreja dos Capuchinhos ao terreiro do Pai Gambá. Tudo indica que crenças são capazes de exprimir a humanidade na sua mais profunda e intensa medida”, pondera.

Passados séculos, muitos desses objetos de fé e convicção estão aí, “jovens, oxigenados, vivos”. “O que se convencionou chamar de sobrenatural, maravilhoso ou fantástico resulta, na realidade, de um ato de fé. Ninguém procura explicá-los”, diz ela, que chega a Belo Horizonte nesta quarta-feira (8), para o lançamento da obra, a partir das 20h, na Livraria Leitura do BH Shopping.

Tais manifestações, prossegue a historiadora, são recebidas como uma “mensagem” na qual se lê toda a onipotência e as marcas da intervenção de Deus – ou de deuses – no mundo. “No plano de sua função no interior de uma sociedade, as crenças são insubstituíveis. Servem para compensar as vicissitudes da vida cotidiana, acolhendo favoravelmente os desejos mais secretos dos homens, fazendo justiça entre bons e maus e passando avisos e mensagens”.

Fenômenos populares

Essa razão, mais a riqueza dos documentos que encontrou pelo caminho, acabaram incentivando ainda mais Mary. “Do Outro Lado” foca sobretudo no desenvolvimento do espiritismo, além de abordar fenômenos que foram (ou ainda são) bastante populares – como o magnetismo, o sonambulismo, as “mesas volantes” e outras formas de entrar em contato com o mundo sobrenatural e com aqueles que já partiram.

Em sua jornada, achados a mancheias. “Foi interessante, por exemplo, encontrar, nos jornais do século 19, temas que até hoje invadem o imaginário: vampiros, exorcistas, rituais de despossessão, o diabo de cartola e capa, muito parecido com Mandrake, ou fradinhos da mão furada, diabretes capazes de atender os pedidos mais bizarros... Enfim, a lista é longa e demonstra que, no campo do imaginário religioso, pouca coisa mudou”, diz, referindo-se ao fato de, ainda hoje, esses personagens habitarem as telas de cinema e TV, ou as HQs.

A diferença é que, no passado, muitos se constituíam em “verdades” sobretudo quando amparados por “técnicas modernas” como a eletricidade, os raios e a fotografia. Mas a crença não era restrita aos, digamos assim, menos eruditos. A historiadora lembra que médicos famosos, como Lombroso e Charcot, além de prêmios Nobel de física e química, acreditavam em forças estranhas e na presença do Outro Mundo entre nós.

Anúncios e artigos

Em sua cruzada para narrar com fidedignidade tais fenômenos, Mary Del Priore teve o apoio de dois grandes fundos documentais: os jornais de época (“que, para nossa alegria, estão digitalizados pela Biblioteca Nacional”) e a literatura do século 19. “Machado de Assis escreveu a respeito e Coelho Neto era espírita”. Quanto aos periódicos, ela ressalta o fato de a imprensa publicar desde anúncios de videntes e cartomantes até longos artigos sobre casas mal assombradas.

Nas colunas dos leitores, acrescenta, não era difícil detectar o grande embate que houve em torno do espiritismo. “Fraude ou verdade incontestável – essa era a discussão. Percebe-se, porém, que havia um respeito enorme pelo que se considerava uma mistura de ciência e religião, capaz de tornar o país melhor, mais solidário, menos corrompido”, atesta.

Matérias jornalísticas sobre conhecidos pais de santos de terreiros de candomblé, como Juca Rosa, dão, igualmente, o retrato da sociedade oitocentista e branca, “frequentadora das então chamadas ‘casas de pretos’, onde a equação de poder ficava de cabeça para baixo: lá, quem mandava era o escravo, e o senhor ou a iaiá, obedeciam”.

Ao final do livro, os leitores encontrarão a lista dos jornais que traziam informações sobre questões do além e do sobrenatural no Brasil imperial. Confira, a seguir, outros trechos da entrevista concedida por Mary Del Priore   O livro aborda o culto a Allan Kardec (1804 - 1869), detendo-se na curiosidade de ele ser, hoje, mais cultuado aqui, no Brasil, que em seu país de origem, a França. Nesta parte de sua pesquisa, o que destacaria?    Hipólito Léon Denizart Rivail, ou Allan Kardec, anunciou o Espiritismo como uma nova Reforma religiosa esclarecida e adaptada à era da eficácia e da ciência. Propôs a solidariedade de todas as instituições que já trabalhavam para a melhoria dos indivíduos, contra os detritos do catolicismo do passado: obscurantista e centralizado. Essa agenda em curso na Europa foi esposada pelos nossos espíritas à mesma época. E serviu, sobretudo, no combate contra a escravidão. E o Abolicionismo ganhou um adepto: o espírito de Espártaco, o líder da maior revolta de escravos na Roma Antiga, cuja presença foi solicitada por um membro do movimento durante uma sessão. Aliás, a presença de espíritas empenhados no fim da escravidão foi importante. Eles acreditavam que não haveria moralidade num país onde perdurava a escravidão.   E entre os espíritas abolicionistas, os baianos foram pioneiros. Kardec foi um pedagogo de grande integridade intelectual. Nem um monstro de erudição, como querem seus admiradores, nem um ser primário, como acusam seus detratores. Mas um trabalhador do conhecimento, sem fantasias e pouco inclinado a voos da imaginação. Ele estudou e verificou que os princípios da doutrina que então elaborava estavam em todas as formas de crenças e religiões, em diferentes épocas e lugares. Para ele, o Espiritismo seria o elo entre todas as crenças. Seria também aliança entre religião e ciência, o motor do progresso moral e intelectual na busca de uma fraternidade universal. Deus existia, sim. Mas estava longe. Precisava de mediadores, os espíritos desencarnados para ajudar a humanidade expiar suas faltas e progredir na busca de perfeição. O espiritismo foi um observatório do tempo porque as pessoas se reconheciam nele. Mas, também, porque ele lidava com questões fundamentais, como a morte, a doença, a religião, o amor, a família, a ciências: todas elas sob o impacto de grandes mudanças. Kardec permitiu reconhecer o rosto noturno de uma sociedade que viu emergir os seus medos mais ocultos através de espíritos e fantasmas.    Já tem outro projeto em curso? Ou não, é tempo de percorrer o Brasil para conversar com seu público, divulgando esse livro?    Sou gratíssima aos leitores, dos quais sempre recebo inúmeras contribuições e perto de quem desejo estar. Não acredito no escritor isolado no alto de sua torre de marfim, mas em militar em favor de mais história para mais brasileiros, ou seja, em favor da democratização da história. O historiador é um profissional do entusiasmo. Entusiasmo tão mais necessário quanto habitamos um mundo onde tudo é supérfluo. Nós passamos, mas a história permanece: viva e renovada a cada estudo. Sou a favor, também, de um pacto de sinceridade com o leitor.   Gosto de mostrar o que encontrei nos arquivos, como e o que mudou em mim ao fazer tais descobertas. Afinal, a história nos ajuda a compreender alguma coisa da vida de cada um e de nós mesmos. Meu próximo livro nasceu de um "presente mineiro". Afonso Romano de Sant´Anna ofereceu-me uma documentação preciosa sobre o mais escandaloso "ménage à trois" do Império: o que reuniu o conde russo Maurício Haritoff, a riquíssima herdeira Nicota Breves e sua mucama, Regina Angelorum. O livro se passa entre São Petersburgo, Paris, a Corte no Rio de Janeiro e o Vale do Paraíba, onde o casal teve fazendas de café. Uma bela história de amor, traições e perdão. História que demonstra que nada é mais romanesco do que a verdade. 

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