Meio século de vida dedicado aos palcos de BH

Pedro Artur - Hoje em Dia
22/02/2015 às 12:51.
Atualizado em 18/11/2021 às 06:06
 (Carlos Rhienck/Divulgação)

(Carlos Rhienck/Divulgação)

Com mais de 50 anos de presença ativa nas artes cênicas de Belo Horizonte, o diretor, produtor e gestor cultural  Pedro Paulo Cava, que acaba de completar 65 anos de vida, está com a corda toda. Para este ano, ele pretende remontar o belo e sensível espetáculo “Mulheres de Hollanda”, baseado na obra de Chico Buarque - um dos maiores sucessos de crítica e bilheteria do teatro nacional -, em comemoração aos 25 anos do Teatro da Cidade. “Parece que está no inconsciente da cidade, onde vou as pessoas perguntam: 'e aí quando volta?'. Mas só estou pensando”, diz.    Pedro Paulo Cava vibra como um “menino” ao falar do tombamento do teatro, que esteve ameaçado. Com mais de 100 espetáculos no currículo, o intelectual que combateu a ditadura e a censura, mantém sua capacidade de indignação, principalmente com o atual momento político e cultural do país. “Acho que esse país está enveredando, seja qual linha partidária for, por um perigoso neofascismo. Acho que estudaram Gramsci (Antonio Gramsci, 1891-1937,  filósofo, comunista e antifascista italiano), mas aplicam Goebbels (Joseph Goebbels, 1897-1945, ministro de Propaganda do governo nazista) nos órgãos de cultura. Criou-se, com as leis de incentivo, da qual todos somos reféns, a figura funesta do gestor público de cultura, que nada mais é do que aquele cidadão que, enquanto os artistas dormem, se coloca no centro da terra para combinar tudo quanto é sacagem que vai fazer para não deixar a gente trabalhar no dia seguinte”.    Foi no Teatro da Cidade, do qual tanto se orgulha, que Pedro Paulo Cava recebeu nossa reportagem para falar do passado, de sua carreira teatral, de política e do futuro do palco.   Como foi seu início de sua carreira? Eu comecei muito novo no teatro, aos 14 anos, dentro do movimento da esquerda católica, a  Juventude Estudantil Católica (JEC), a Juventude Operária Católica (JOC) e a Juventude Universitária Católica (JUC). Ali na Igreja São José se reunia a Juventude do Centro, na missa das seis, e foi se formando um grupo de pessoas que discutia a realidade brasileira, a religiosidade, sempre orientado por um padre progressista. Eu era o mais novo, estava no grupo de teatro dirigido pelo Arnaldo Bresser, que era estudante de medicina. Esse grupo foi minha primeira experiência, fiz o papel de bêbado na adaptação do “Pequeno Príncipe”. E também varria o palco, fazia as coxias, ligava as luzes. Essas coisas que você faz quando está começando, todo mundo faz e eu faço até hoje.     Ali o senhor nunca mais abandonou o palco... O Arnaldo Bresser, de família ligada às artes nos anos 1940 e 1950, disse para mim: “Você está subindo essas escadas pela primeira vez (era no Instituto de Educação). Você vai ver que nunca mais vai descer". E nunca desci. Ele desceu, tornou-se um médico famoso, depois faleceu. E eu, de toda aquela turma, fui o único que efetivamente continuei dentro da coisa. Depois saí do Colégio Loyola, onde estudava, e fui para o Colégio Anchieta, que era laico. E lá criei um grupo de teatro. Mas não funcionou muito, com o golpe militar, já sofria uma censura interna.   No seu caso foi preciso superar desafios, além de uma ditadura no cangote? Costumo dizer que ouvi tantos "nãos" na minha vida que quando escuto um "sim" sempre acho bom. Belo Horizonte mudou dos anos 1960 para cá; as pessoas mudaram. O entendimento de que era preciso apoiar as artes, independentemente de governo, de lei, mudou muito. Eu fui o primeiro a ter patrocinadores efetivos na cidade. Com 16 anos entrei para o Partidão (como é chamado o Partido Comunista Brasileiro). Aí, na política estudantil, já não tinha mais a questão da religião, embora estudasse no Colégio Anchieta, de excelente ensino, mas a linha era claramente a favor dos militares na época. Comecei a militar, fui presidente de diretório acadêmico em 1968, mas nunca deixei de fazer teatro nesse período. Primeiro com o teatro infantil e, já em 1968, teatro adulto. Fiz “Se Correr O Bicho Pega, Se Ficar O Bicho Come”.   E quando o senhor teve a certeza de que o teatro seria sua causa para o resto da vida? Em 1967, com a peça “Liderato, o Rato que era Líder”, de André Carvalho e Gilberto Mansur. Porque ali eu decidi que iria viver de teatro. Eu era um dos atores, mas éramos uma cooperativa, e cada um tinha uma função, além de estar no palco. Éramos 14 e o “Liderato...” era um sucesso tão estrondoso que ficou em cartaz em 1967 e 1968. Depois foi proibido com o AI-5 (Ato Institucional número 5, que endureceu ainda mais a ditadura). Era um sucesso tão estrondoso que nós todos ganhamos algum dinheiro com ele, que dava para uma sobrevivência digna. Naquele momento eu decidi que era aquilo que queria fazer profissionalmente. Eu tinha 17 anos. Iria seguir esse trajeto, fiz vestibular para Sociologia passei. Fiquei na faculdade quatro anos, faltando dois meses para me formar, abandonei o curso. Nunca mais voltei.   Naqueles anos, que percepção o senhor tinha da cidade? Como era a convivência com pessoas de outras artes? Isso contribuiu para a sua arte? A minha (percepção) foi muito no Centro da cidade, onde aconteciam as coisas. O edifício Levy tem uma participação importante no Clube da Esquina e na minha vida. O Clube da Esquina depois foi lá para Santa Tereza, mas os amigos ficaram: Beto, Lô, Marcinho, Bituca. Pessoas da música, pessoal de teatro, literatura, cinema... Normalmente nos encontrávamos nos botequins ou no Maletta (tradicional reduto da boemia belo-horizontina) ou no Stage Door, no Teatro Marília. Era uma geração muito politizada. Isso me abriu muito os horizontes para fazer teatro. Por outro lado também tive a sorte de ter uma convivência com pessoas de teatro, e de outras artes, muito mais velhas do que eu. Então convivi, por exemplo, com artistas plásticos, com os modernistas, exceto Portinari e Di Cavalcanti. Convivi pessoalmente com esses artistas, porque, além de fazer essa loucura do teatro, fui dono da galeria Guignard, que foi a primeira galeria de arte de Belo Horizonte.    A sua geração rompeu com costumes, mas, ao mesmo tempo, sofreu com a ditadura. E sobre o teatro desaba a mão forte da censura. Como foi sobreviver naqueles tempos? “Liderato...” já estava em cartaz há quase dois anos, quando o coronel Medeiros, que era o comandante do CPOR (no Exército, Centro de Preparação de Oficiais da Reserva), e homem forte da repressão levou os filhos para assitir ao espetáculo. A gente falava claramente sobre liberdade e ensinava as crianças a votarem. Falava claramente, no texto, que os militares faziam uma série de injustiças com a população. Esse homem ficou danado, no dia seguinte mandou suspender o espetáculo. Pediu o texto e cortou de próprio punho vários trechos e mandou um oficial acompanhar todos os espetáculos com o texto na mão, o capitão Azevedo. Quando veio o AI-5, proibiu vários espetáculos. Não só o “Liderato...”, como um outro de que participava na produção com Jonas Bloch e Jota Dângelo “Oh, Oh, Oh, Minas Gerais”, sucesso em todo Brasil, que falava sobre a questão da liberdade. Era quase uma sequência de espetáculos de colagens de textos como “Liberdade, Liberdade” do Millôr Fernandes.    Algum episódio o marcou pessoalmente? Esse episódio me marcou em dois momentos: um quando aconteceu na plateia (a censura). Depois, quando fui me apresentar para servir no Exército, que achei que não iria pegar, pois era muito franzino. O coronel Medeiros me reconheceu e mandou o médico dr. Silvio Americano, me aprovar, pois ele queria que eu servisse, porque, dizia ele, que gostava de mim (risos). Servi um ano e três meses de Exército, no CPOR e em Juiz de Fora, onde convivi no quartel com vários companheiros da política estudantil que estavam presos.   E quando perceberam que a censura veio com força? A censura antes de 1968 era muito incipiente. Não tinha inteligência para ser censura. Com o AI-5 eles criaram, em Brasília, um curso de técnico de censor da Polícia Federal. Tinha que ter curso superior, ser formado em Direito. Então, deram aos aprovados, durante um ano, aula de tudo quanto é espécie de arte para ficarem abastecidos de informação. Despacharam-os para os estados e criou-se efetivamente o Departamento de Censura da Polícia Federal. Antes do AI-5 o censor, aqui em Belo Horizonte, era o Leopoldo Portela, agente da Polícia Federal, que era nosso amigo, sambista de São João del-Rei. Ele não estava muito a fim de ser censor, conhecia todo mundo. Quando a censura se profissionaliza, vem censores de fora para cá. Aí a censura foi muito esperta, não deixava ter na cidade um censor da própria cidade.   E como fizeram para driblá-la? A gente conseguia usando metáforas, recursos simbólicos, iluminação. Era possível driblar eventuais cortes ou eventuais impactos no texto. A gente só conhecia os censores no dia em que, por acaso, apareciam sentados na plateia, porque as cadeiras eram reservadas para eles. Então a gente fazia aquele espetáculo do ensaio geral para eles. O ensaio geral era fechado para dois ou três censores. Depois liberavam. Isso foi a morte de muita gente. A censura quis "matar" o Chico Buarque com “Calabar”. Eles deixaram montar o espetáculo, deixaram gastar o dinheiro e no dia do ensaio geral proibiram totalmente. Comigo não aconteceu, mas aconteceu com outras pessoas em Belo Horizonte.   Foi um período muito conturbado, não? Foi uma época muito difícil mesmo, de conviver com isso, e também com o CCC (Comando de Caça aos Comunistas). No caso do “Se Correr O Bicho Pega...” eles ameaçaram várias vezes de colocar bomba no teatro, invadir e depredar e bater nos atores. Tanto que fizemos uma temporada com muitos militantes estudantis na plateia em pé com porretes nas mãos para evitar uma eventual invasão desse pessoal.     Além da direção, do palco, o senhor também tem uma outra faceta: o ensino. Qual a importância disso? Dei muita aula. Comecei na Cultura Inglesa, depois na Aliança Francesa, na Faculdade de Filosofia. Abri a segunda escola de teatro ao lado do Dops (como era chamado o Departamento de Ordem Política e Social). Depois fui para a PUC e criei a Escola de Teatro. E acho que as gerações que passaram por nós na Escola Livre Oficina de Teatro são as que mudaram a cara do teatro de Belo Horizonte, geração de 1982 a 1989. Ela mudou completamente a maneira de fazer teatro, investigar, a estética, a chamada "geração Oficina de Teatro".   Quantas peças o senhor esteve à frente como diretor? Não sei fazer essa conta. Eu me perco. No total, entre ator, diretor, cenógrafo e trilha sonora, foram mais de 100 espetáculos. Não estou contando espetáculos produzidos na Escola Oficina de Teatro em que estava à frente, só aí uns 40 espetáculos, envolvido no fomento da produção.    Qual a peça deu ao senhor mais prazer ou o maior sucesso? O maior sucesso de público foi o musical “Mulheres de Hollanda”. Tanto que foi remontado várias vezes. Mas eu gosto de direções que fiz, especialmente “Bella Ciao”, que conta a história do anarquismo, do início do partido comunista e da imigração italiana. Também sou descendente de italiano. Gosto mutio de “Galileu Galilei” (de Bertolt Brecht), “Rasga Coração” , “Lua de Cetim”, que são espetáculos dos anos 1980. Sempre fiz um teatro épico, voltado para a questão histórica e política, contando a história do Brasil. Agora estamos com “Samba, Amor e Malandragem” que passa por essa vertente. Mas não é direção minha, é do Kalluh Araújo. O “Mulheres de Hollanda”, maior sucesso, parece que está no inconsciente coletivo da cidade. Onde vou as pessoas perguntam: “ e aí quando é que volta?”. Tanto que estou pensando na quarta montagem para comemorar os 25 anos do teatro da cidade, mas só  estou pensando.   Além disso, o que o senhor está pensando para comemorar os 25 anos do Teatro da Cidade? Algumas exposições na galeria (do Teatro Cidade), que têm que ser emblemáticas acerca da arte moderna brasileira. Na parte do teatro, essa das “Mulheres de Hollanda” que está na minha cabeça. O Teatro foi tombado em outubro, depois de oito anos de pedido de tombamento, porque estava ameaçado. O tombamento protegeu a manutenção da casa.   E como o senhor analisa o teatro hoje no Brasil? O teatro perdeu aquela coisa que tinha nos anos 1960 e 1970 de comprometimento político, transformador. Eu continuo acreditando, porque sou um neo-romântico que crê que o teatro tem um profundo papel transformador. Não digo numa coletividade muito grande, mas na cabeça das pessoas. O teatro hoje, em Belo Horizonte, como no Brasil, tem várias vertentes, uma delas experimental, de grupos jovens que falam de suas gerações. Tem outra que eu trabalho muito, mais épica, histórica e os musicais que mostram a cultura brasileira. Tem outras formas de se fazer teatro, o teatro de rua que gosto muito. Hoje em dia, com as novas tecnologias, o teatro passou a incorporar vídeo, cenografias projetadas, em vez de serem construções tridimensionais.Tem teatro para tudo quanto é gosto. O público é que, durante o ano, fora da campanha, ficou reduzido no Brasil.    E por que caiu? A concorrência de outras mídias, a internet, o celular. A facilidade de assistir filme em casa. Atividade cada vez mais restrita, mais cult. Por isso existe essa vertente de se fazer comédia, só comédia. O brasileiro gosta de rir, eu gosto, você gosta. Mas não é uma verdade. Raramente faço comédia e todos os meus espetáculos têm muito público. Eu criei um público ao longo desses anos. Construí espetáculo de sucesso como “Galileu” de 3h15m, com seis meses de temporada, lotando o Francisco Nunes (Teatro).     O teatro, escola que vem da época dos gregos, tem mais séculos pela frente? Acredito que tenha. Hoje em dia em São Paulo tem teatro em casa. O sujeito faz uma festa, contrata um grupo de teatro para fazer uma peça de trinta minutos. O teatro vai ter sempre seu lugar, sempre encontrar seu palco, seu público. Teatro é mágico. É a única arte do ato criador feito no mesmo momento que é percebido pelo espectador e retroalimentado. Se renova toda noite. A construção dramática do ator é renovada. Também não tem o mesmo público todo dia.    Como o senhor vê a política cultural hoje no país? Continuo com minha capacidade de realização intacta e também a capacidade de indignar diante do poder. Acho que esse país está enveredando, seja qual linha partidária for, por um perigoso neofascismo. Acho que estudaram Gramsci (Antonio Gramsci - 1891-1937 - foi um intelectual italiano, comunista e um dos principais teóricos do Marxismo), mas aplicam Goebbels (Joseph Goebbels - 1897-1945 - foi ministro da Propaganda do regime nazista) nos órgãos de cultura. Criou-se com as leis de incentivo, da qual todos somos reféns, a figura funesta do gestor público de cultura. Que nada mais é do aquele cidadão que, enquanto os artistas dormem, se reúnem com outros no centro da terra para combinar tudo quanto é sacagem que vão fazer, para não deixar a gente trabalhar no dia seguinte. Então você vê que a censura muda de nome, de partido, de lado. Ela muda de cara, de figura, mas continua existindo e de forma muito violenta, de muita virulência no Ministério, na Secretaria, nos Órgãos de Cultura e até nas empresas que patrocinam a cultura como um todo.   O senhor acha que ainda tempos grandes dramaturgos como tínhamos no passado, como Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), Paulo Pontes (1940-1976), Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), só para citar alguns? Temos grandes autores. O conceito de dramaturgia mudou. Quando estava na Alemanha nos anos 1980 estudando e trabalhando com o Fernando Peixoto (1937-2012), que considero o maior teórico, entre os maiores artistas brasileiros, ele vaticinou uma coisa interessante naquela época. Falou para mim o próximo grande ditador do teatro nos anos 1990. O próximo seria, segundo ele, o dramaturgo, mas não o dramaturgo autor. Seria o dramaturgo que daria o palpite no espetáculo como um todo. O papel do encenador seria jogado para o lado e o do dramaturgo seria fundamental. Hoje está acontecendo nos grupos experimentais, pode olhar, "dramaturgia de fulano de tal". Aquele que dita não só a estética, mas o conteúdo das peças a apresentadas. Ele tinha absoluta razão. Acho que como encenador, também faço adaptações, escrevo, não tem nada excludente no teatro. Uma estética não exclui a outra; uma linha não exclui a outra. 

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