Mudanças de visual trazem à tona na web debate sobre apropriação cultural

Thais Oliveira
taoliveira@hojeemdia.com.br
07/08/2016 às 20:47.
Atualizado em 15/11/2021 às 20:13
 (Facebook/Reprodução)

(Facebook/Reprodução)

Júlia foi achincalhada por ser negra e usar os cabelos descoloridos. Laís foi criticada por ser branca e colocar box braids (tranças). Rayza foi julgada por alisar os fios naturalmente enrolados. Populares na internet, as três receberam as “sentenças” na web, em comentários muitas vezes carregados de racismo e ódio, mas que ajudam a trazer à tona a questão da apropriação cultural: a adoção de elementos específicos de uma cultura por alguém de um grupo diferente.

Conhecida pela participação no programa The Voice Brasil, da Globo, a cantora e médica Júlia Rocha, de 33 anos, jamais esperava ser atacada por causa das madeixas. 

Os comentários vieram após ela responder, no Facebook, a um médico do Sul do país que debochou de um paciente. Parte dos internautas mudou o foco do debate, acusando a médica de ter clareado os fios para “parecer menos negra”, dentre outros ataques.

Para Júlia, uma “mulher preta” pode “alisar ou colorir o cabelo da cor que bem entender”, atitude que teria mais a ver com o próprio gosto do que com a apropriação cultural em si. “Somos livres e cada um usa a estética que mais lhe atrair”, diz. ARQUIVO PESSOAL / N/ALaís Figueiredo: “Chorava toda vez que abria o vídeo e lia os comentários. Teve uma pessoa que disse que fiz as tranças para ganhar likes em cima da apropriação cultural”

Tranças
A youtuber Laís Figueiredo, de 23 anos, também virou alvo na web recentemente, graças a um vídeo sobre a experiência de colocar box braids, em 2014. Muita gente considerou que a moça, de pele clara, se “apossou” de um elemento da cultura negra. 

“Isso não é pra proteger o cabelo, isso é um símbolo de luta das mulheres negras que você simplesmente está usando como se fosse algo divertido”, escreveu um usuário. 

Laís alega que sempre foi “apaixonada pela África” e que o fato foi distorcido. “Estava superanimada, curtindo minhas tranças. Não as fiz com a intenção de me apropriar da cultura de ninguém”, diz a jovem, que é natural do Vale do Rio Doce e mora há seis meses em Nova York. 

“Quando uma marca americana faz uma coleção com estampas usando (elementos) da cultura africana para ganhar dinheiro, sim, é apropriação cultural. Mas no Brasil essa história não se encaixa, porque não há uma raça pura”, argumenta.

“A questão atual é que muitas alisam os cabelos não por opção, mas por falta dela, para conseguir emprego, ser aceita”Júlia RochaMédica e cantora


Alisamento
Bastou mudar o visual para a youtuber Rayza Nicácio, de 24 anos, também virar alvo na net. Conhecida por incentivar as mulheres a valorizar os cachos, ela alisou o cabelo com chapinha e foi criticada por vários seguidores. Mesmo assim, avisa, não vê sentido algum para polêmica quando alguém se desfaz dos caracóis ou se, ao contrário, decide usar elementos próprios da cultura negra, tendo a pele clara. 

“Trazemos o estilo dos americanos para nós. Então, por quê um branco não pode usar turbante? Depois da globalização, é natural que isso aconteça. Mas, ao mesmo tempo em que respeito e considero um símbolo, não acho que possamos tirar o direito do outro de usar o que acha bonito”, argumenta.Instagram/Reprodução / N/ARAYZA NICÁCIO – “O problema de alisar é quando não se consegue valorizar e achar bonito outro tipo de cabelo”

Elementos de determinada cultura são forma de resistência daquele povo, diz professora

Professora de História da África do departamento de História da UFMG, Vanicléia Silva Santos afirma que há ao menos duas formas de enxergar a questão da apropriação cultural.

Uma está ligada à ideia de que os elementos culturais não pertencem a um só grupo. “Neste caso, entende-se que qualquer um pode usar algo para se redefinir como pessoa”. 

O outro entendimento é o de que a apropriação cultural tem a ver com o “uso” de uma cultura. A professora cita o historiador francês Roger Chartier, que considera elementos de determinada cultura uma forma de resistência daquele povo frente às imposições da cultura dominante (ocidental). 
“O debate está ligado a ideias bem mais complexas do que a meras opiniões vistas na rede (social)”, avalia a docente. 

A cantora norte-americana Taylor Swift foi criticada por usar trajes da cultura negra no clipe de “Shake It Off”

Histórico
Vanicléia recorda que o Brasil teve colonização europeia e sofreu forte influência desta cultura, considerada dominante. 
“O país foi desenvolvido a partir da ideia de que as culturas indígena e negra são primitivas e bárbaras. É preciso entender que a cultura ocidental – ou seja, o cabelo liso, os olhos claros, a pele clara – tende a ser mais valorizada”, opina. 


Divulgação / N/AMICHAEL JACKSON – O astro pop dizia que tinha vitiligo e sempre negou ter clareado a pele

A historiadora argumenta que é difícil ver uma mulher negra de cabelo black power trabalhando em um shopping de classe média alta, por exemplo. “Então, quando um negro faz uso (de um elemento da cultura ocidental, tipo adotar cabelos lisos) não é só por uma questão de gosto, mas também por inserção social”, afirma, citando o caso de Michael Jackson (1958-2009). “Ele sabia o quanto era difícil ser negro”, diz. 

Também há quem tenha decidido abraçar a cultura negra, caminho que igualmente pode levar a críticas. Como acontece com a acadêmica americana Rachel Dolezal, de 38 anos. Com pele e olhos naturalmente claros, ela passou por um processo de bronzeamento artificial e cacheou os cabelos aos 26 anos.

“Rachel construiu uma identidade negra e escondeu de todos a própria ascendência alemã. Depois, conseguiu um emprego na Universidade Howard (Estados Unidos), que recebe professores negros”.Reprodução / N/A

RACHEL DOLEZAL – Acadêmica americana afirmou não se identificar com a cultura branca

 
Artistas e grifes são acusados de apropriação cultural
Artistas famosos também já foram acusados de apropriação cultural, entre eles a cantora Beyoncé. Em janeiro deste ano, ela participou do clipe do single “Hymn For The Weekend”, da banda Coldplay. O público não aprovou a ideia de a cantora aparecer com trajes e tatuagens de Henna tipicamente indianos. 

Já Katy Perry foi criticada por ter utilizado elementos egípcios no clipe de “Dark Horse”, em 2014. 

Iggy Azalea, por sua vez, tem uma verdadeira rixa com a também cantora Azealia Banks. Australiana, branca e loira, Iggy foi acusada por Azealia – que é negra e nova-iorquina do Harlem – de explorar uma expressão negra na vida artística para ganhar dinheiro. 

Em 2014, o rap “Fancy”, de Iggy, foi considerado pela revista Billboard a música do verão de 2014 nos Estados Unidos. Ela vendeu ainda milhões de cópias do álbum “The New Classic”. Reprodução / N/AFAMOSOS – Beyoncé, Iggy Azalea e Katy Perry já foram acusadas de apropriação cultural por usarem, no trabalho, elementos de outras culturas 

As grifes também não escaparam dos olhos dos internautas. A Valentino lançou, no fim do ano passado, a coleção Verão 2016, estrelada por modelos, na maioria, brancas.

Elas apareceram de tranças e dreadlocks, penteados originalmente da cultura negra. Além disso, a coleção foi inspirada na África. Na passarela, porém, a raça negra não foi representada de forma expressiva, fato que foi duramente criticado na internet. 

No Brasil, o estilista mineiro Ronaldo Fraga foi alvo de críticas em 2013, durante a São Paulo Fashion Week. As modelos usaram palha de aço por cima dos cabelos. A escolha foi vista como um ato racista por usuários da web. 

À Agência Estado, Fraga se defendeu dizendo que não é racista. “Até porque sou filho de pai negro com mãe branca”, afirmou à época. 

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