Mulheres instrumentistas vencem machismo estrutural do meio musical

Paulo Henrique Silva
phenrique@hojeemdia.com.br
30/01/2021 às 10:07.
Atualizado em 05/12/2021 às 04:03
 (ÉLCIO PARAÍSO/DIVULGAÇÃO)

(ÉLCIO PARAÍSO/DIVULGAÇÃO)

Indiara Belo realizou uma enquete no Instagram indagando por nomes de instrumentistas mulheres que seus seguidores conheciam. “A resposta geralmente era assim: ‘Mas tem mulher instrumentista?’ E quando citavam alguém, era mais cantora. Havia muita desinformação”, avalia.

A pesquisa foi um dos estopins para Indiara criar o projeto “Instrumental Brasileiras”, com o objetivo de promover e amplificar a mulher na cena instrumental no país. “Como produtora, passei a observar e questionar os espaços e a atuação destas instrumentistas, que já trabalham na área há muito tempo. O que vejo é que as pessoas não estão entendendo bem o que está acontecendo”, analisa.

A coordenadora do projeto ressalta que, nos últimos oito anos, a participação não só cresceu como também apontou para uma riqueza de composições, sonoridades e ritmos. “São muitas vertentes, trabalhos realmente autênticos. O que impede de serem vistas é uma questão de gênero, pelo ponto de vista histórico e social”, assinala.

Indiara lamenta que, às mulheres, não foi dada a oportunidade de serem protagonistas. “A mulher sempre tem que  estar a serviço. De modo geral, isso não acontece só na música. É o machismo estrutural”, salienta a coordenadora. Hoje, sublinha, o preconceito é menor devido ao trabalho de musicistas que, nos anos 80, abriram caminho para as gerações seguintes.

“Instrumental Brasileiras” começou na quarta-feira, na cidade histórica de Paraty, no Rio de Janeiro, e prosseguirá até março, com shows e workshops. “Meu sonho é que as mulheres tenham paridade. Alguns festivais tentam dar uma equilibrada, mas as mulheres continuam em menor número. Não faltam talento e qualidade artística”, registra.

Minas
A cantora Carol Serdeira, criadora do Jazz de Montanha, realizado em Belo Horizonte, e que chegou à terceira edição nesta semana, ressalta que Minas Gerais vive um processo de protagonismo das mulheres, como a contrabaixista Camila Rocha, a pianista Luisa Mitre, a flautista Marcela Nunes e a vibrafonista Natália Mitre. “Elas estão ocupando este espaço que, até então, era dominado por homens”.

Em entrevista recente ao Hoje em Dia, Marcela Nunes comentou que, na época que começou a participar das rodas de choro, podia-se contar nos dedos a presença de mulheres. “Ainda é raro, mas há dez anos, éramos bem menos”, compara. Ela explica que o choro, assim como todo o universo da música, ainda tem um traço machista, em que as mulheres só podem entrar como cantoras. “Antes, mulher viver de tocar música era uma coisa meio proibida”, lamenta.ÉLCIO PARAÍSO/DIVULGAÇÃO / N/A

A vibrafonista Natália Mitre é outro destaque da cena musical mineiro

Contrabaixista mineira encara preconceito e integra nova geração de talentos

A contrabaixista Camila Rocha é uma das grandes revelações da música instrumental mineira, mostrando seu talento num instrumento que era quase uma exclusividade masculina.

Ela lembra que, ao entrar no mercado, se deu conta de que a maior dificuldade para vencer os desafios estava nela mesma: “Não conseguia acreditar em mim mesma e correr atrás dos nossos desejos e sonhos, porque eles acabam sendo tolhidos”.

Hoje ela já encara melhor este entrave, mas sublinha que ainda carrega um restinho dele porque “é algo que fica na nossa estrutura”. Também contribui o fato de, segundo ela, o mercado estar mais aberto para as mulheres. “Antes da gente, teve um tanto de mulher que lutou muito e passou por aperto para acharem o seu espaço”.

Camila conta que percebeu o machismo um pouco mais velha. “Na minha casa, o machismo não era tão evidente. Minha mãe é psicanalista, estudou muito e atuou como líder da família, junto com meu pai. Os dois criaram eu e meu irmão de uma forma muito compartilhada”, relata.

A contrabaixista diz nunca ter sofrido um preconceito explícito. O que não a impediu de notar as diferenças de gênero. “Notei principalmente em relação às expectativas do público. Quando sabem que a instrumentista é mulher, a expectativa cai. É como se fosse uma coisa inferior, como se não pudéssemos tocar tão bem quanto os homens”, afirma.

Camila lançou no “Jazz de Montanha” o seu quarteto musical e pretende investir mais em músicas autorais. “Sempre fui instrumentista, de acompanhar as pessoas. Em 2019, fui chamada para fazer um show no Savassi Jazz Festival e passei a compor. Agora na quarentena, essa vontade começou a crescer”.PAULO RAPOPORT POPÓ/DIVULGAÇÃO / N/A

Grupo Jazzmin's foi formado em 2016 e é composto por instrumentistas de origens erudita e popular

Dezessete musicistas compõem primeira big band só com mulheres

A Jazzmin’s é a primeira big band brasileira formada somente por mulheres. Integrante do grupo, a pianista Lis de Carvalho acredita que esta especificidade cria uma sonoridade particular.

“A escola de sopros é muito pautada no vigor, na potência. Embora sejam eventualmente importantes, não são a marca dos sopros femininos. A gente busca mais o sensível, o musical”, diferencia Lis.

A pianista observa que, geralmente, quando uma saxofonista vai fazer teste numa orquestra, sempre se ouve alguém dizendo para que a candidata “agora vai ter que tocar bem forte o instrumento”, como se isso fosse necessário o tempo inteiro.

Ela assinala que, por conta deste tipo de preconceito, a participação de mulheres chega quase ao zero em big band’s. “A criação da Jazzmin’s vem neste sentido. Não tem mulher tocando em big band. O outro lado disso é que a falta desta vivência acaba gerando um temor, uma pressão sobre as mulheres de a possibilidade de passar (no teste) ser pequena”.

Lis nunca sentiu na pele este tipo de preconceito, mas já viu isso acontecer com colegas e alunas – ela é professora do curso de Piano Popular e Harmonia na Escola de Música do Estado de São Paulo. “É muito constrangedor. É tudo majoritariamente masculino, o que assusta um pouco”.

A pianista também participou do grupo instrumental de mulheres, o Kali, formado na década de 80. Foi o primeiro contato que teve com o machismo no cenário musical. “Isso só foi resolvido quando finalmente disseram que nós tocávamos como homens. A gente foi valente, buscando dar o nosso melhor. Esta é a condição para conquistarmos o nosso espaço”, lembra.

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