Na capital mineira, movimento negro se alia à moda para ampliar sua voz

Hoje em Dia
02/06/2015 às 08:32.
Atualizado em 17/11/2021 às 00:18
 (Divulgação)

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O fato de a atriz (de origem queniana) Lupita Niong’o ter sido eleita, no final de 2014, a mulher mais bonita do mundo (pela revista “People”) deflagrou um extenso debate sobre a representação da beleza negra na mídia. Mais recentemente, Maria Júlia, primeira repórter negra a apresentar a previsão do tempo no “Jornal Nacional”, da Rede Globo, foi vítima de ofensas raciais. Em contraposição a casos lamentáveis como esse, movimentos como o Encrespa Geral, que defende que mulheres e homens assumam seus cabelos crespos, vêm, a cada dia, ganhando respaldo na sociedade.

Em Belo Horizonte, a quarta edição do evento – que também acontece em outras cidades brasileiras, além de países como Inglaterra, Austrália, Angola e Irlanda – aconteceu no último dia 17. A capital mineira também vem criando oportunidades para colocar a beleza negra em espaços nos quais, tempos atrás, ela ainda estava, de certa forma, apartada: as passarelas.

Relato

“Minha consciência não é humana, porque minha humanidade não impediu que o segurança me seguisse naquela loja do centro da cidade. Minha consciência não é humana, porque minha humanidade não me livrou dos olhares de espanto direcionados ao meu cabelo crespo, volumoso e indefinido”.

O trecho é do relato – em tom de manifesto – assinado por Hellen Castro, e hospedado no blog da estilista Lorena Santos. Foi da leitura de cerca de 30 depoimentos similares – coletados pela afro-empreendedora durante o mês da consciência negra, em novembro de 2014 – que surgiu a inspiração para a sua nova coleção, “Filhas de Zumbi”.

A “música negra” acompanhou todo o processo de criação da belo-horizontina: Sandra de Sá, Lauryn Hill, Sabotage, Tim Maia e os clássicos de Lupicínio Rodrigues e Cartola foram alguns dos nomes que passaram em seu crivo.

Não bastasse, Lorena foi às ruas, onde aliás encontrou suas maiores referências. “Uma fonte da qual nunca vou abrir mão é a rua, onde há uma riqueza de estilos, identidade”, declara ela.

Hip hop

E se a palavra evocada é identidade, é bom ressaltar que a grife de Lorena – Lolita Az Avessas – mantém forte vínculo com o movimento hip hop, desde sua fundação, em 2008. “A marca é muito urbana, com peças como coturnos, botas, sapatos fechados. Ela é streetwear mesmo”.

Aliás, as raízes no hip hop são tão profundas que a estilista vestiu, até 2012, a cantora Zaika dos Santos, que integra o mesmo movimento cultural em BH. Zaika – que lança seu novo EP, “As Negas”, ainda este ano – diz que sua música possui “identificação com o feminismo e um diálogo direto com o feminismo negro, trabalhando temas como a auto-afirmação, o empoderamento da mulher negra e o processo de transição para o cabelo crespo”.

“O hip hop é uma cultura que foi fundada pelos negros, é um movimento gerido pelos negros. Não que exclua os brancos, mas a raiz é negra. Daí para juntar com elementos da africanidade é fácil”, diz Lorena, com um sorriso que acompanha sua voz.

Iniciativas como a ‘Ébano Feira Afro’ e o ‘Love Turban BH’ são outros destaques

ARTE & BELEZA - Énia Dára Medina tem apenas 24 anos, mas já se tornou referência na divulgação da cultura afro na cidade (Foto: Brunno Oliveira/Divulgação)

A “Ébano – Feira Afro Mineira de Moda, Arte e Beleza” é outra face dessa frente que vem ocupando espaços em Belo Horizonte. Com um público em ascensão – ou, “em plena descoberta”, nas palavras de uma das idealizadoras, Énia Dára Medina, de 24 anos –, o evento teve duas edições em 2014, chegando à terceira agora, no próximo dia 14. A feira é resultado do experimento Das Pretas Bazar, que precisou se profissionalizar para atender o público.

A demanda é tal que a iniciativa passou a promover outros eventos, como o “Love Turban BH – 1° Encontro de Turbantes” de Belo Horizonte, que aconteceu no dia 24 de maio. Não bastasse, a “Ébano” deve ter outras duas edições este ano. “Mais que eventos de celebração da cultura negra, são encontros de fortalecimento”, salienta Énia. A produtora e estilista frisa que o foco é a cultura negra, mas os eventos estão abertos a qualquer pessoa interessada no tema.

Ancestralidade

Graduanda em moda, Énia Dára começou a produzir roupas com foco na cultura afro ainda na faculdade. Com a repercussão nas redes sociais, foi convidada a expor, em 2013, no Festival de Arte Negra (FAN). Lá, começou a comercializar as peças, organizou um desfile e fez um workshop de turbantes. E não parou mais.

Junto à sócia Iraê Mariana, 25, a estilista busca referências de ancestralidade – egípcias, ganenses, angolanas etc – para a construção livre. Sua primeira coleção, “Gye Nyame”, por exemplo, bebia da fonte dos Adinkra, recorrendo a símbolos do povo Axanti, da região onde hoje está Gana.

No seu trabalho, é marcante o uso de tecidos africanos ou brasileiros tropicais. A aposta é em peças versáteis com cores vivas.

Além de manter a marca e ser uma das cabeças por trás do Das Pretas Bazar, “Ébano” e “Love Turban BH”, Énia ainda mantém um projeto de arte afro nas escolas: ministra oficinas e palestras, realiza desfiles e auxilia na customização de peças.

Tutoriais

O projeto é realizado em parceria com escolas públicas, visando o cumprimento da Lei 10.639, que, desde 2003, estabelece a inclusão do ensino sobre história e cultura afro-brasileira na grade escolar. Na UNA, ela integra o grupo Abuna, coletivo de alunos negros que, no último ano, realizou debates e ações, dentro do ambiente acadêmico, focados na cultura afro. A simpática estilista ainda alimenta um canal no YouTube, com tutoriais de turbantes – cada vídeo tem cerca de dois minutos e meio. Deu tão certo que, neste ano, ela ministrou dois workshops para o grupo Baianas Ozadas, quando os foliões se preparavam para o desfile no carnaval belo-horizontino.

 

"ENCRESPA GERAL" - A programação do evento contempla atividades como palestra (Foto: Iso Grafe/Divulgação)

‘Esse trabalho, ouso dizer, chega a ser político’

Estudante de ciências sociais na PUC Minas, Brenda Santos vê dois fatores que dão importância ao trabalho das estilistas. “Primeiro que não temos representatividade nesse meio. As grandes grifes geralmente colocam, nas passarelas, mulheres brancas e magras e pensam a moda para esse tipo de consumidor. O máximo de aproximação que a moda mainstream tem com o povo negro é pegando símbolos que, para nós, significam resistência e empoderamento, higienizando-os e transformando-os em mera estética”.

O segundo ponto está no fato “de a moda para mulher preta ser feita por uma, comungando a capacidade de reunir ancestralidade com o aumento da auto-estima por, finalmente, vermos alguém como nós fazendo algo para nos vestir. Este trabalho, ouso dizer, chega a ser político”, enaltece a estudante.

Beleza a cada esquina

Sem dizer se “lê” seu trabalho a partir de um viés político, Lorena Santos não nega que está feliz por ampliar espaços para que a beleza negra ocupe as passarelas. “Fico contente em mostrar um pouco do poder dessa beleza negra que vejo em todas as esquinas de BH. Uma beleza que existe e está disponível, mas que ainda não é vista pelos meios”, comenta.

O trabalho de Lorena faz o streetwear comungar com Zumbi dos Palmares, um dos ícones da luta negra no país. A intenção é “provocar, para que reflitam sobre questões que já estavam ali (no século 17)”

* Colaborou Alex de Bessas/ Especial para o Hoje em Dia.
 

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