Netflix: necessidade imediata de ver lançamentos para participar dos debates

Paulo Henrique Silva
01/07/2019 às 08:44.
Atualizado em 05/09/2021 às 19:20
 (Netflix/Divulgação)

(Netflix/Divulgação)

Após oito anos instalada no país, a Netflix já está tomando o lugar da “novela das 8” no cotidiano de parte dos brasileiros. A comparação se deve, fundamentalmente, à reprodução de um efeito que prevaleceu por várias décadas na TV aberta: a necessidade imediata de ver o que vai ao ar para não ficar de fora do burburinho dos dias seguintes.

“Existe uma pressão para ver logo, para dar a sua opinião o quanto antes. É um paradoxo, já que o conteúdo da Netflix ficará sempre ali (no cardápio). Mas como na semana seguinte lançarão uma série e um ou dois filmes ‘originais Netflix’, a fila precisa andar”, observa Filipe Furtado, crítico de cinema da revista eletrônica “Cinética”.

Para Furtado, a lógica televisiva se beneficiou da maneira como as redes sociais já vinham aumentando o potencial deste tipo de fenômeno. “Só que a Netflix deu uma característica muito pessoal para isso ao radicalizar a ideia do binge-watching (prática de assistir televisão por um longo período de tempo, geralmente um único programa de televisão)”, salienta.

“‘O Processo’ (que trata do mesmo tema de ‘Democracia em Vertigem’) fez um sucesso notável para um documentário, mas nem de longe teve a amplitude de recepção que o filme da Petra Costa”Filipe Furtado


De acordo com o crítico, se antes as pessoas queriam falar sobre evento específico, na Netflix elas querem comentar a temporada integral da série ou de um filme recém-lançados. A grande pergunta passou a ser se isso trata-se de efeito artificial ou se as pessoas realmente mudaram seus hábitos e passaram a ter na Netflix um ponto em comum de debate.

“Houve uma mudança de hábitos, mas existe muito de artificial incentivado pela Netflix. É sempre bom lembrar que, como todas as grandes empresas do Vale do Silício, o desejo dela é operar como uma espécie de monopólio. Quer convencer o espectador de que o serviço é autossuficiente. Isto é uma novidade no audiovisual norte-americano (apesar de que, para os brasileiros, o exemplo da Globo é muito próximo disso)”, assinala.

 “'O Processo’ (que trata do mesmo tema de ‘Democracia em Vertigem’) fez um sucesso notável para um documentário, mas nem de longe teve a amplitude de recepção que o filme da Petra Costa” Filipe Furtado

Documentário
O mais recente caso de burburinho é o documentário “Democracia em Vertigem”, da mineira Petra Costa, que há duas semanas vem sendo um dos temas mais comentados nas redes sociais. Em se tratando de uma produção brasileira, em formato documental, não deixa de chamar a atenção. As séries geralmente ocupam este espaço de repercussão com mais frequência.

“Isso tem relação com o formato dramatúrgico. Séries têm uma estrutura com quebras previstas, cliffhangers, ações que acontecem com a expectativa de que gerarão comentários. Quem faz televisão sabe que as pessoas vão assistir com o celular na mão e que mandarão no twitter/instagram/facebook um: ‘Vocês viram o que acabou de acontecer em ‘Game of Thrones?’”, analisa. 

Este efeito só ocorre com filmes específicos, em que se consegue emprestar uma qualidade de evento, diz Furtado. “Rolou com ‘Roma’ e “Birdbox’, entre outros. No caso do ‘Democracia em Vertigem’, soma-se um misto de desejo meio masoquista da esquerda brasileira de ‘reviver o processo’ até os vazamentos (das conversas de Sergio Moro e Deltan Dallagnol) publicadas pelo ‘Intercept’”.

Fenômeno é restrito a ‘bolhas’ de público que veem TV paga

Sócio-fundador e diretor Sofá Digital, uma das empresas responsáveis por fazer a intermediação entre produtoras e operadoras e serviços de video on demand e streaming, Fábio Lima não vê no fenômeno uma repetição do “efeito manada” provocado pelas novelas do horário nobre na Rede Globo em outros tempos.

“Este movimento acontece não só no Brasil. Tivemos isso recentemente com a série ‘Tchernobyl’ e com a última temporada de ‘Game of Thrones’. Mas com uma diferença: ele ocorre em bolhas e até micro-bolhas. Se fizermos uma busca, em outras bolhas ninguém estava discutindo esses temas”, salienta.

Só para quem tem
No caso da Netflix, que teria atualmente 8 milhões de assinantes, segundo Lima, a “bolha” é de quem vai ao cinema e assiste TV paga, não sendo a mesma do resto do Brasil, que hoje tem população de 208,4 milhões (de acordo com estimativa do IBGE em 2018). “Quem não tiver Netflix, não vai saber”.

O crítico Filipe Furtado tem posição semelhante. “Tem duas coisas que é preciso ter em mente sobre a Netflix: a) é uma falácia que todo mundo tem Netflix. b) no que cabe aos “originais Netflix”, a plataforma limita muito a circulação. O filme não entrará em cartaz nos cinemas, nunca será lançado em homevideo e não estará disponível em outras plataformas”.

Apesar de enxergar na Netflix um importante veículo de exibição, Furtado registra que o filme estará condenado a existir somente para os assinantes da plataforma. Para ele, trabalhar com a Netflix significa a garantia de um meio de difusão muito bom, mas dirigido a um universo especifico.
Lima pondera que esta necessidade de imediatismo é um traço comportamental mundial. Lembra que, no Brasil, a pré-venda para o filme “O Rei Leão”, com estreia marcada para o próximo dia 18, já ultrapassou a casa dos 2 milhões de ingressos. “Alguns produtos são naturalmente vendidos como eventos. Só quem gosta de k-pop saberá que a banda sul-coreana BTS vendeu todos os ingressos de três shows em cinco minutos”, relativiza. N/A / N/A

  

ANÁLISE:

EM TEMPOS DE VERTIGEM

Marcelo Ikeda

Lamento profundamente discordar da grande onda de encantamento e comoção em torno de "Democracia em Vertigem", de Petra Costa, mas gostaria de propor uma reflexão sobre porque esse filme me pareceu tão insatisfatório. Gostaria de começar lançando uma pergunta: a quem esse filme se destina? Petra tem como objetivo promover uma análise panorâmica sobre as transformações políticas de nosso país. Como um país que guiava em direção à democracia, enfrentou, em tão pouco tempo, uma descontinuidade abrupta, a ponto de a diretora considerar que a democracia foi na verdade “um sonho efêmero”? A base dessa pergunta já revela os pressupostos políticos da realizadora. A questão não é propriamente “de que lado ela (ou o filme) está” mas quais os métodos utilizados pelo filme para dar forma ao seu discurso. E o que o desenvolvimento desse discurso provoca como reflexão sobre o curso de nosso país. Pois bem: a partir dessa ambição panorâmica a nível macro, Petra adiciona um elemento típico de sua filmografia – uma análise pessoal, como uma espécie de documentário em primeira pessoa. Contemplar a presença da morte, do fracasso ou da culpa já estava presente no seu anterior "Elena". O desafio de "Democracia" é então articular o drama familiar individual em primeira pessoa com a observação macro dos rumos políticos do país.

Na dimensão individual, Petra lança alguns elementos. O principal deles é a sua própria voz-over, que se afasta das imponentes “vozes-de-deus” em tom “branco” e preenche a camada sonora com um perfil humano comum. O segundo é a reflexão sobre o choque de perspectivas entre seus pais, antigos militantes de esquerda (sua mãe chegou a ser presa no mesmo local de Dilma), e a tradição de seus avós, ricos empresários da Andrade Gutierrez, uma das empresas denunciadas na Lava Jato. Petra então é herdeira direta desses dois grupos opostos que fracassaram – os militantes de esquerda e a elite empresarial brasileira.

No entanto, os impasses dessa filiação não são aprofundados de fato pela realizadora. "Democracia em Vertigem" não é uma reflexão sobre a posição de classe da realizadora ou sobre o fracasso de uma geração, aos moldes de filmes que trabalham as fissuras da linguagem documental, aprofundando e complexificando suas cicatrizes, como , de Maria Clara Escobar, um duro acerto de contas da própria realizadora com seu pai, ou mesmo "Santiago" e "No Intenso Agora", de João Moreira Salles.

A inclusão do elemento familiar ou íntimo acaba servindo na verdade como mero entremeio para a principal função do filme: a construção de uma narrativa sobre as transformações do regime político brasileiro, ou ainda, a perda de legitimação do Partido dos Trabalhadores e a ruptura da tradição democrática. A forma como Petra constrói essa narrativa macropolítica articula as imagens de arquivo com a própria narração de Petra, que, por boa parte do filme, meramente ilustra e costura o que as imagens em si não conseguem propor. Assim, a voz-over, mais do que investir no documentário em primeira pessoa, funciona como alicerce para a corroboração da construção de uma narrativa (um discurso) sobre o país. É ela quem no fundo apresenta o que é o filme.

A forma didática e linear, com relações de causa-e-efeito forçadas, sem grandes sutilezas, desvela uma narrativa sem grandes novidades em relação ao discurso hegemônico da esquerda. São raros os momentos em que o filme procura inserir camadas de cinza ou questionamentos sobre algumas contradições e paradoxos internos do PT. São raros os momentos em que o filme reflete sobre a própria produção dessas imagens, sobre suas lacunas ou fissuras. Um deles, notável exceção, ocorre durante a posse de Dilma, quando Lula, Dilma e Marisa descem a rampa do Planalto, com a companhia de Temer. Nesse momento, o filme promove uma leitura dessa imagem como um certo prenúncio do impeachment, visto o nítido isolamento de Temer em relação aos outros três corpos. Em outro deles, Dilma confidencia a Lula, no momento imediatamente após a confirmação do resultado da sua primeira eleição como presidente: “você que inventou essa”. Nesses momentos, parece que o filme escapa de sua vocação apriorística e se abre para as dobras e os paradoxos das imagens. São momentos em que o filme se liberta da necessidade de corroborar um discurso e mergulha em simplesmente olhar para as imagens e tentar entender o que elas dizem, suas camadas e hiatos. Sinto falta no filme de Petra que ela realmente olhe para as imagens, antes de manuseá-las como função no interior da narrativa. Ou seja, as imagens parecem que estão aprisionadas diante do discurso prévio da realizadora. Petra lida com essas imagens sem deixá-las respirar ou falar por si mesmas, mas as mostra apenas se servem como testemunha ou elemento de acusação, ou ainda como mera peça de uma grande tapeçaria, como se realizasse uma narrativa típica do cinema clássico, mas com imagens que não lhe pertencem. O que sobrevive do filme de Petra não é sua narrativa de costura forçada, em grande máquina industrial, simulando um look semicaseiro, mas os pequenos momentos em que as imagens, sorrateiras e traiçoeiras, se libertam do arremedo totalizante da realizadora e se deixam revelar em suas bordas e lacunas.

Mas aqui volto a pergunta inicial: a quem o filme se destina? Pela exposição minuciosa dos grandes temas já exaustivamente apresentados pela grande imprensa, como um grande resumo jornalístico, sem apresentar grandes novidades ou reflexões mais aprofundadas, me parece que o filme se destina primordialmente para um público que não tem muita intimidade com o desenrolar dos fatos, especialmente para o público estrangeiro. Ainda mais pelo fato de o filme ser produzido e distribuído mundialmente pela Netflix, a suspeita se reforça.

Alguns poderiam estranhar o fato de uma empresa internacional – que se movimenta para aprovar a regulação do VOD no país, ainda em suspenso, favoravelmente a seus interesses comerciais, inclusive articulando sua inclusão no Conselho Superior de Cinema – produzir um filme com um discurso claramente oposto ao governo no poder. Mas "Democracia da Vertigem" é o outro lado de "O Mecanismo" – série de José Padilha que causou polêmica ao tratar, por meio da ficção, os acontecimentos da Lava Jato de forma um tanto caricata e irresponsável, como um mero thriller policial. É o avesso que confirma a regra, já que, no fundo, o que a empresa busca, para além de sua inclinação ideológica, é a realização de produtos que gerem dinheiro. E o valor, no mundo do capitalismo cognitivo, está diretamente relacionado com o quanto de buzz o filme consegue movimentar nas mídias, nas redes sociais, de uma classe média pronta para consumir esses produtos. Ou seja, a ideologia do capital é o próprio capital.

Pois se a democracia está em vertigem, em crise ou em risco, "Democracia em Vertigem" nunca se põe verdadeiramente em risco, nunca provoca de fato o espectador para as contradições de seu momento histórico ou para o papel e a função das imagens. Meramente ilustrativo sobre um discurso firmemente sustentado a priori, descrito pela narração em over, "Democracia" arrola um conjunto de tautologias, repetindo para o público de esquerda os mantras já fartamente conhecidos por ele.

Concluo então pensando como pode ser o cinema político. No mundo de grandes dualismos em que vivemos, a política no cinema não deve ser dissociada da questão da liberdade. O fracasso de "Democracia em Vertigem" é que o projeto tautológico da realizadora raramente estimula que o espectador veja o mundo com seus próprios olhos. Guiando-o pelas mãos a partir de uma identificação com a própria posição da realizadora, o público (de esquerda) do filme passeia pela narrativa confortavelmente, como se estivesse descorporificado, com se flanasse pelas belas imagens de Brasília a bordo de um dos drones que sobrevoam a paisagem. Há aqueles que criticam a posição de Petra analisando as contradições de seu “lugar de fala”, que exacerba sua leitura classista dos acontecimentos – ou seja, a diretora, mesmo filha de militantes, permanece seguramente ancorada no seu lugar de privilégio. Mas nem recorro a esse ponto. Para além da falta de coerência entre a articulação entre o íntimo e o coletivo, destinada aos brasileiros e estrangeiros da “esquerda do Netflix”, o grande problema está na superficialidade de sua visão de país. Problema que também perpassa, ou atravessa, um elemento crucial, tipicamente cinematográfico: sua falta de ousadia, sua incapacidade de sonhar, sua atrofia em imaginar aquilo que as imagens e os discursos prontos não respondem de supetão. No fundo, a tautologia de "Democracia em Vertigem", ao construir uma narrativa fechada dos vilões que surrupiaram o poder, reflete a falta de um projeto político-estético para o cinema de esquerda do país de hoje – ou ainda, os impasses de certo cinema militante hoje no país.

Por isso, o que me espanta não é propriamente o filme realizado por Petra mas especialmente a recepção – rápida e instantânea – que o filme atingiu num certo público – em especial cineastas e artistas de esquerda. Uma adesão instantânea que bloqueia os paradoxos do discurso apresentado pelo filme. Uma reação que me parece refletir um certo “desespero”, como se esse filme fosse uma âncora, bússola ou mapa, para mostrar à sociedade que é preciso acreditar nessa narrativa para que possamos sobreviver à loucura ou à tormenta. Mais interessante que o filme tem sido acompanhar a recepção de "Democracia em Vertigem". A comoção em torno do filme acaba evidenciando a profunda falta de perspectivas e a crise de pensamento da hegemonia da esquerda brasileira.

Se quisermos virar o jogo, precisamos de narrativas melhores.

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