No Dia de São Francisco, 'policial-escritor' resgata louvor ao riso e à emoção

Elemara Duarte - Hoje em Dia
03/10/2015 às 20:42.
Atualizado em 17/11/2021 às 01:56
 (Gláucia Rodrigues)

(Gláucia Rodrigues)

Em louvor ao riso e ao amor, a peça “Francisco de Assis – do Rio ao Riso” está em cartaz, em BH, no Teatro Francisco Nunes, até domingo (4) – o Dia de São Francisco, segundo os católicos. A peça, que tem lotado as casas de espetáculos por onde passou, desde a estreia em setembro, esconde na plateia em todas as apresentações, um personagem cuja vida daria outra peça – o policial militar Márcio de Ares da Silva. Ele é o autor desta comédia interpretada por Carlos Nunes (“Francisco de Assis”) e André Maurício (vários personagens).

É a primeira vez que Ares divide a carreira militar com os palcos. Poeta e cronista, ele colabora com blogs literários, mas nunca publicou livro. Mas, segundo ele, o convite para escrever a peça veio justamente desta amizade com os versos. “Lembro que o Carlos Nunes me chamou para escrever porque ele queria a minha ‘poesia’ neste texto. Esta experiência foi uma grande aula para mim”.

Desde a estreia no teatro, o autor diz que não perdeu nenhum dia desta temporada da apresentação até agora. Assim, na miúda, no meio do povo, mesmo após várias sessões, ele diz que ainda consegue rir das piadas que ele mesmo escreveu. Formado em Letras e Filosofia, pela PUC-Minas, Márcio é conhecido na corporação como “Capitão Ares”.

Pé no chão

“Nasci de pé no chão e fui alfabetizado por uma senhora que não sabia ler”, diz o autor, que nasceu em Buritis, no Noroeste mineiro. Mas, como assim? Márcio Ares explica que é filho de lavradores e que aprendeu a ler com mãe Maria Rita da Silva - hoje com 69 anos, e que ainda mora “na roça” - e com os irmãos mais velhos, também em processo de alfabetização.

Márcio foi apresentado às letras pelos irmãos mais velhos. A partir disso, ele ia soletrando as combinações em voz alta, até virarem sílabas. “Minha mãe ouvia. E quando eu errava, ela dizia: ‘Tá bom não, lê de novo’. E quando eu acertava… ‘Muito bom, agora! Parabéns!’”, lembra, sobre a “lei do reforço”, aquela mesma ação de confiança que todo funcionário esforçado quer ouvir do chefe.

O capitão é o sexto filho de uma família de nove irmãos. “Tínhamos a ‘Cartilha Sodré’”, diz, sobre o livro de alfabetização que foi impresso no Brasil até os anos 1980. “Parecia que minha mãe estava querendo dar rumo para o que ela mesma não teve”, avalia. Para Ares, a mãe corrigia pela oralidade e pelo sentido que as letras e as sílabas faziam quando formavam alguma palavra. Afinal, como falante da língua portuguesa, tal conhecimento não faltava à Dona Rita.

“Anos mais tarde, quando levei minha mãe para ver um filme no cinema, foi que descobri que teria que ler as legendas, pois ela não entendia. Isso me emociona até hoje”, conta Ares.

Da cartilha ao teatro

Da simplicidade de uma casa no meio rural ao teatro lotado na grande cidade, o desafio da comunicação continua a acompanhar Márcio Ares. Agora, o beabá já foi assimilado e alcança outros ouvidos – aqueles da plateia que vai ao espetáculo que ele concebeu, em memória a um jovem rico que escolheu viver na simplicidade.

Deu na TV: “O bicho-preguiça da Bahia está estressado. E isso, porque ele não consegue rir”, diz Carlos Nunes, ou melhor, o “Francisco de Assis” brasileiro. O ator, à vontade com mais uma comédia, gênero no qual se consagrou, faz o público despejar o riso.

“E o homem é o único animal que ri. Mesmo assim, passa a vida inteira com a cara fechada. Que bobagem, gente!”, alfineta o protagonista. Mensagem passada e entendida. E dá-lhe riso! Incluindo o do policial-escritor. Se Dona Rita estivesse ali, certamente recorreria à tal “lei do reforço” para estimular o filho.

“O grande desafio foi este: Como eu poderia falar de alguém que é santo mas sem deixá-lo santo - porque esta não é uma peça católica. Mas também, sem ferir esta aura que o personagem possui?” A solução foi falar da personalidade que Francisco de Assis mostrava. “É alguém que falava de fraternidade, de ecologia, de preservação em pleno século 13”, diz Ares.

Desafio que não termina

Em “Francisco de Assis – do Rio ao Riso”, o policial-escritor quis “fazer rir sem ofender”. “O texto fala de questões humanas e universais. E este exercício da arte é o refúgio dessa nossa profissão. A palavra com humor se torna o descanso mental de um profissional da segurança pública”.

É isso! A palavra realmente tem poder, admirado leitor! E a intimidade com ela, estimulada desde os primeiros anos de vida do escritor, virou hábito criativo e válvula para escape nas adversidades. Mas, Capitão Ares, o sr. já teve inspiração dentro de uma viatura?

“Eu já desci do Aglomerado do Cafezal, depois de um evento danoso, de crime, tendo que terminar as ocorrências, com um poema palpitando, rebatendo, remoendo. Mas quando estamos no chamado ‘teatro’ de operações, temos que dar cabo do que já estávamos fazendo”.

Uai, mas que ‘teatro’ é este na ação da polícia, capitão? “É um termo militar que define o momento da ocorrência ou da ação policial, mas que não tem nada de encenação, muito pelo contrário”, explica, sorrindo.

E finalmente, naquele mesmo dia, quando o policial teve tempo, o poema saiu pronto. Acompanhe, a seguir, o resultado desta inspiração:

“Sede” Bebo água por todos os mortos Os mortos de sede Os mortos de amor Os mortos de medo

Bebo os desejos que não se deram Os beijos que se perderam As cartas que não chegaram

Bebo a noite, a neblina, Bebo a luz que, cedo, encerrou tanta vida

Eu bebo o gosto de pólvora O moço, a garota, o outro e o tiro que acorda a vila.

(Por Márcio Ares. Escrito em 2001, após o atendimento de uma ocorrência no aglomerado do Cafezal, área do 22º Batalhão de Polícia Militar de BH.)

SERVIÇO

“Francisco de Assis – do Rio ao Riso”, com Carlos Nunes e André Maurício, sábado (3), às 21h, e domingo (4), às 19h. A temporada celebra os 65 anos do Teatro Francisco Nunes (av. Afonso Pena, no Parque Municipal, Centro). Ingressos R$ 30 e R$ 15 (meia).  

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