Novo filme do italiano Tornatore se vale de fobias e metáforas

Pedro Henrique Silva - Hoje em Dia
23/07/2014 às 07:56.
Atualizado em 18/11/2021 às 03:29
 (Paris Filmes)

(Paris Filmes)

Preste atenção numa frase do leiloeiro vivido por Geoffrey Rush em “O Melhor Lance”, em cartaz nos cinemas, em que o personagem afirma que até mesmo numa falsificação é possível enxergar um traço autoral.

Trata-se da chave para a compreensão dessa trama de mistério assim como para apontar uma das fontes de inspiração do diretor italiano Giuseppe Tornatore (“Cinema Paradiso”).

O roteiro se aproxima muito de “Um Corpo que Cai” (1958), uma das obras-primas do suspense assinada por Alfred Hitchcock, desde a sua estrutura narrativa até a caracterização dos personagens.

Rush vive um homem cheio de fobias e que tem com o sexo feminino uma estranha relação, que deixa de ser tátil para ganhar o campo do voyeurismo, na maneira como coleciona retratos de mulheres.

Ao conhecer uma garota que se recusa a mostrar o rosto, o leiloeiro é vítima de seus desvios, principalmente por criar, de forma crescente, uma história por trás da voz de Claire (Sylvia Hoeks). O filme não deixa explícito, mas possivelmente é o mesmo tipo de curiosidade que o move em torno dos quadros, estabelecendo trajetórias de vida para os rostos que ocupam paredes de uma sala secreta.

O cômodo escondido por uma estante, e fechado com uma porta de cofre, simboliza exatamente esse interior quase impenetrável do fleumático Virgil, que ganhará outras relações ao longo da narrativa.

Entre elas, a aristocrática e labiríntica mansão de Claire; um raro autômato, cujo funcionamento interno é um enigma; e, em especial, a reclusão da garota, com Tornatore não se furtando a vinculá-la à ideia de virgindade.

 

Em “O Melhor Lance”, o erotismo é um ingrediente tão potente como em “Um Corpo que Cai”. Ao coque sexualizado de Madeleine (no clássico de “Hitch”, Kim Novak), o filme de Tornatore tem seu equivalente na visão fortuita da virilha de Claire por Virgil, remetendo, nos dois casos, ao desejo por algo intocado – e que, curiosamente, abriga também a “doença” delas: a possessão de Kim Novak e a fobia social de Claire.
Extremamente apaixonados, muito por conta do mistério que as envolvem, Virgil e o detetive aposentado de James Stewart acreditam que podem, com a experiência que carregam, ser a “cura”, fazendo-as enfrentar seu passado quando eles mesmos não conseguem encarar os próprios traumas. Essa crença de que podem consertar algo em benefício próprio é responsável pela grande virada nos dois filmes.
Quanto mais seduzidos e identificados com o mundo interior de suas garotas, mais vítimas se tornam, vulnerabilidade que vai na contramão das habilidades que exercem. E o fato de serem mais velhos amplia mais esse desconforto. O detetive fica obcecado pelo fantasma de Madeleine, enquanto o leiloeiro parece irresponsavelmente voltar aos tempos de adolescente, dono de um amor febril que tira seu foco no trabalho.
Um Corpo” é conclusivo e punitivo. Já Tornatore deixa o desfecho em aberto, que até pode ser o mesmo do clássico se usarmos a imaginação. O italiano se inspira na obra do mestre, mas imprime as marcas de seu cinema refinado, substituindo o final moralista por um olhar para dentro de seu protagonista, que, mesmo derrotado, precisou sair de sua protegida sala para derrubar as falsas certezas.

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