O soul, a bossa e o jazz da cantora e atriz carioca Eliana Pittman

Raphael Vidigal - Do Hoje em Dia
09/01/2013 às 07:10.
Atualizado em 21/11/2021 às 20:26
 (Vinícius Campos/Divulgação)

(Vinícius Campos/Divulgação)

Musa da bossa nova. Rainha do ritmo alucinante do Pará. Os mais antigos irão apostar em Nara Leão. Os novos, em Gaby Amarantos. No entanto, o rosto surpreendente apresenta-se ao nome de Eliana Pittman. Carioca, natural do Rio de Janeiro, cantora, atriz, filha adotiva do clarinetista e saxofonista de jazz Booker Pittman, falecido em 1969. Rebento legítimo da música brasileira.

"Para entrar em meu repertório é imprescindível ter letra e melodia bonitas. Adoro trabalhos com ritmos, preciso sentir o que estou cantando", avisa ela que, recentemente, estreou o show "Soul Bossa Jazz", no teatro do Sesc, em Sorocaba. Durante a quarta música, porém, um acontecimento inusitado por pouco não pôs fim à apresentação.


Arrepio

Escuridão. Falta de energia. Microfone mudo. A tempestade que caía no interior paulista silenciou luzes, fios e sentenciou o medo. Mas foi incapaz de calar a protagonista que, com orgulhosos 67 anos, deu continuidade ao número, munida de um instrumento. A potência da voz. "O público foi ao delírio, uma coisa linda, emocionante, arrepio-me só de lembrar", confidencia a entrevistada.

"Juízo Final", de Nelson Cavaquinho, "All of me", estandarte do jazz, de Gerald Marks e Seymour Simons, propagada em larga escala por nomes como Billie Holiday e Louis Armstrong, e 'O Samba da Minha Terra', de Dorival Caymmi, dão uma mostra do que representa a volta aos palcos da intérprete. A ideia é transformar o material em CD e DVD. No momento, curiosos podem conferir tudo no Youtube.


Sem medo

Eliana demonstra entusiasmo com a nova fase da carreira. Está cantando Cartola e Dona Ivone Lara, nomes, até então, pouco recorrentes. Após estrear ao lado do padrasto famoso, na década de 60, partiu para a carreira solo. A decisão levou tempo para acontecer, devido a um trauma. "Um produtor bravo me pegou para Cristo, as broncas me deixaram bastante insegura".

Com a proximidade da morte de Booker, segundo ela, "a única pessoa que acreditava em mim", diagnosticado com um câncer na laringe em 1967, Pittman decidiu assumir o dom que lhe era inerente. "O médico disse ao meu pai que ele não poderia mais tocar, mas ele preferiu morrer do que ficar sem a música. Respeitamos sua decisão, e a partir dali passei a cantar bonito, sem medo".


Internacional

O estouro foi imediato. Eliana apresentou-se na TV Tupi, Excelsior, em emissoras da França, Itália, Espanha, Alemanha, Suécia e Portugal. O repertório era conduzido por o que de melhor havia em bossa nova, jazz, soul. Infelizmente, a maior parte do material registrado em tevês brasileiras perdeu-se em incêndios. Já as excursões internacionais podem também ser vistas no Youtube.

O pequeno registro em discos, para vasta carreira, decorria, ainda, do embate com o tal produtor que a traumatizou. "Nunca tive essa índole de gravar. Hoje em dia, embora a força dos 'André Midani (ex-presidente da Warner) e João Araújo (ex-presidente da Som Livre) da vida', tenha acabado, é necessário, principalmente, o DVD, porque a imagem se apoderou da música". A EMI lançou, há 6 meses, a série 'Super Divas', produzida por Rodrigo Faour, com os grandes sucessos da cantora.


Coreografia

O maior responsável por esse "rolo", como se refere ao cenário atual da música contemporânea, seria Michael Jackson. "Ele foi um gênio. Mas acabou com a música. Você pensa nas canções dele e só lembra das imagens. O coreano do 'Gangnam Style' é apenas coreografia", reclama. "Antigamente havia música, e não tinha imagem. Hoje tem imagem e falta a música", define.

Na contramão das críticas, os elogios de Eliana Pittman estendem-se para aquelas que foram as principais referências no canto. Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Barbra Streisand e Elizeth Cardoso são as divas escolhidas. "Minhas mestras. Ouvindo, apreciando, deliciando-me, pude aprender tudo o que sei sobre essa arte misteriosa e pagã, ao mesmo tempo espiritual, cantar".


Carimbó

Eliana ressalta ter sido "vítima da tirania das gravadoras". O imbróglio teria começado quando, devido a quebra de um avião, que a transportava e à equipe durante uma turnê na região norte e nordeste do Brasil, todos ficaram presos em São Luís do Maranhão. "Ficamos numa 'birosca' de beira de praia esperando o conserto, e começou a ecoar um som que de cara me arrebatou", diz.

A surpresa logo seria desvendada. Tratava-se de Pinduca, compositor de Belém do Pará, considerado o 'Rei do Carimbó'. A dona da barraca não atendeu aos apelos de Eliana, e negou-se a "vender, emprestar ou dar o LP". De volta ao Rio, foi atrás de tudo o que havia do compositor. Gravou várias músicas, que circularam de norte a sul do país. E foi entronada rainha do gênero.


Abusada

Os carimbós cantados por Eliana Pittman chegaram ao disco, com a produção de Sérgio Cabral, em lançamento da BMG. O sucesso foi tanto que ela foi convidada a fazer um show em Belém do Pará. Ao anunciar que cantaria composições de Pinduca, dentro do Clube da Assembleia, notou "um branco na plateia, absoluto silêncio". Não se intimidou, e deu voz a todas as canções do roteiro.

"Ao final da apresentação, o presidente do Clube veio me dizer que eu era muito abusada, de cantar uma música do povo naquele ambiente, extremamente elitista". Os aplausos dos engravatados não deixaram dúvida de que, também eles, haviam gostado do espetáculo. "Quebrei um tabu, abri as portas para o carimbó, e depois paguei um preço caro".


Geladeira

A aceitação do ritmo despertou nos donos da gravadora o desejo de ampliar os lucros e manter o êxito comercial do produto a qualquer custo. Foi aí que a personalidade genuína de Eliana falou mais alto. "Vieram com uma proposta de produzir um carimbó sem essência, ensaiado, distante da pesquisa das raízes do Pará. Não aceitei, e me colocaram na 'geladeira'".

A expressão, utilizada para denotar o ostracismo forçado, geralmente por empresários com poder para definir os rumos midiáticos de um contratado, jogou-a no esquecimento do público mais distraído. Por conta disso, ficou dez anos afastada dos discos. Lançadora do primeiro samba-enredo da história brasileira, 'O Mundo Encantado de Monteiro Lobato', em 1967, só voltou ao CD em 1992.


Sensual

Malícia e sensualidade são duas características que se podem colar à qualidade artística de Eliana Pittman, com o perdão do rótulo reducionista. Sabendo-se que não se restringe a eles. A cantora participou, recentemente, do programa 'História Sexual da MPB', no Canal Brasil, decorrente do livro homônimo de Rodrigo Faour, em episódio que debateu, especificamente, a presença negra.

"A música brasileira é toda negra. Esse país não tem memória. Quer saber de sensualidade? Ouça Dorival Caymmi", ratifica. Martinho da Vila e Humberto Teixeira, cantados por Eliana, também são citados nesse quesito. A falta de lembrança dos brasileiros a incentiva a prosseguir o lamento. "Você sabe do que estou falando. Muitos não sabem quem é Villa-Lobos, Elis Regina, Carlos Gomes".


Atriz

A experiência dramatúrgica começou, na vida de Eliana Pittman, no cinema, em 1970. Formada no renomado Actors Studio, enfileirou mais quatro produções cinematográficas, três papéis em novelas da Rede Globo, e estrelou a premiada série da HBO, 'Preamar', como a governanta Da Guia. Ainda como atriz, atuou na peça 'Sete - O Musical', de Cláudio Botelho e Charles Möeller.

"Tenho vontade de exercitar mais essa minha veia cênica. É uma delícia trabalhar com gente da tarimba de uma Rogéria, Zezé Motta, Ed Motta, Jardel Filho". Entre as habilidades de Eliana, confere-se a didática. Há 7 anos é voluntária na escola Dom Cipriano Chagas, do Rio, onde apresenta às crianças a magia musical. "Esse ano faremos um bazar em Copacabana para elas cantarem!", anima-se.


Exuberância

Eliana não para. A voz alcança o telefone com a agilidade de quem tem muito a dizer. A exuberância da figura impede a sensação de afobamento. Na verdade, a impressão é de abundância, excesso, uma cisterna a conter tanta água e sede que lhe é imperativo verter-se em fonte e transbordar, como nos diz o aforismo de William Blake.

O futuro, para Pittman, é agora. Cantar no carnaval de Vitória, no Espírito Santo, após anos apresentando-se no Baile Oficial de Copacabana. Como o movimento lhe é uma alternativa sempre atraente, não pensou duas vezes. Também confirma o interesse em dar ao público de Belo Horizonte o prazer da sua presença. "Subi muitas vezes no palco do Teatro Marília, quando você nem era nascido", finaliza.

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