Pereira da Viola enaltece com a sua viola a cultura do interior mineiro

Paulo Henrique Silva
phenrique@hojeemdia.com.br
29/03/2021 às 08:14.
Atualizado em 05/12/2021 às 04:32
 (FOTOS ÉLCIO PARAÍSO/DIVULGAÇÃO)

(FOTOS ÉLCIO PARAÍSO/DIVULGAÇÃO)

Pereira da Viola não tem dúvidas de que o instrumento que batiza o seu nome artístico vive um momento de expansão, saindo do gueto para ganhar novas plateias e estilos. “Hoje ele atinge classes de A a E e vai desde a cantiguinha de roda até às músicas mais complexas”, registra este mineiro de Teófilo Otoni, que aprendeu com os pais o valor da cultura popular.

Os pais saíram do Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais pobres do Brasil, e se estabeleceram numa comunidade quilombola no Vale do Mucuri. "Cresci neste rico ambiente familiar, regado sempre com muita música, comida e prosa boas”, afirma Pereira, que ganhou mais cabelos brancos após assumir uma nova função durante a pandemia: hoje ele é secretário de Cultura de Teófilo Otoni.

Você começou a tocar viola aos 28 anos. Qual a razão de um início tardio neste instrumento que lhe pôs no posto de um dos principais violeiros do país?
Na verdade, eu tive um reencontro com a viola nesta idade, pois já havia ocorrido um primeiro contato na minha infância, na roça, com as folias, principalmente a folia de reis. Depois eu perdi esse contato quando fui embora para o Espírito Santo. A retomada foi um momento especial da minha vida, após ouvir o som da viola de Seu Bráulio, um folião de Serra dos Aimorés. Ele passou pertinho de mim, tocando uma violinha, o que fez estremecer todo o meu corpo. Foi onde tudo começou. Na música e na arte, nunca é tarde para começar. A arte não tem idade e tempo. É na hora que a pessoa se desperta para fazer o contato com ela. A arte é muito generosa, despertando coisas muito importantes dentro do ser humano. A partir daí se estabelece um vínculo importantíssimo para a própria vida da pessoa.

Você nasceu numa comunidade quilombola que preservou muitas de suas tradições. Este contato foi fundamental para a sua identidade musical?
Com certeza. A minha comunidade de São Julião foi fundamental para o meu contexto artístico, para eu conseguir compreender qual o meu lugar na arte, principalmente com a minha família. Em casa, todo mundo toca ou tocava. Meu pai tocava uma sanfoninha oito baixos, chamada de pé de bode. Ele animou muito forró na roça. E minha mãe adorava cantar as coisas que trouxe do Vale do Jequitinhonha. Os dois eram de lá. Era e continua sendo muito rico este ambiente familiar, regado sempre com muita música, comida e prosa boas. A minha mãe chegou a fazer parte de alguns trabalhos meus, participando de shows e do meu disco “Viola Cósmica”.

"As pessoas acham que uma secretária de Cultura tem que fazer grandes eventos. Eu acredito na construção de um protagonismo do setor para que ele seja vivo e permanente. É ali que está a grande riqueza de um povo, onde estão todos os elementos identitários"


Foram as origens de seus pais que lhe despertaram o interesse pela cultura do Vale do Jequitinhonha, onde você realiza uma intensa pesquisa?
Exatamente. Embora eu tenha nascido no Vale do Mucuri, o meu trabalho tem todo um referencial do Vale do Jequitinhonha justamente porque meus pais trouxeram esse manancial para a comunidade. Minha mãe sempre foi uma transmissora de conhecimento não só para os filhos, mas para a comunidade como um todo. Para qualquer um que chegasse, ela cantava e ensinava as coisas que aprendeu na infância. Com essa identidade muito latente, muita gente hoje confunde se eu sou do Vale do Jequitinhonha ou do Vale do Mucuri. O que fiz foi um processo de vivência. Qualquer lugar que eu vá, naturalmente estabeleço uma relação de convivência, refletindo em meu trabalho. Por isso costumo dizer que sou um vivenciador da cultura popular, não só da minha região, mas do país inteiro. Meu trabalho tem influência de tudo, do chamamé mato grossense, do rasqueado cuiabano às tribos indígenas do Acre.

Você disse certa vez que algumas de suas principais influências são Tonico e Tinoco, Almir Sater e Milton Nascimento.
Na área da viola, o principal influenciador foi o Miltinho Edilberto, a partir do jeito dele de tocar. Depois vem o Zé Côco do Riachão e o Almir Sater. Já em relação ao estilo de música que eu canto, a pessoa que mais influenciou se chama Décio Marques, por causa dos temas melódicos que ele trazia. O jeito dele de cantar me fascinou muito. Aí também o Rubinho do Vale, o Saulo Laranjeira, o Paulinho Pedra Azul e a Titane. Pelo fato de eu ter esse contato com a música mais enraizada, o Clube da Esquina posteriormente também passou a ser uma influência.N/A / N/A

Pereira é uma das atrações do "Feira da Viiola de Feira", com apresentação neste domingo, às 11h

Você também tem um histórico de participação em movimentos sociais, não é verdade?
A minha formação política está muito baseada nos movimentos sociais. Meus sempre se posicionaram politicamente, não partidariamente. Era mais no sentido de não concordar com as injustiças. O meu pai era uma pessoa de referência na comunidade, mostrando um olhar justiceiro das coisas. Minha mãe era muito religiosa, mas progressista. Eu venho desta formação. Todos os meus irmãos mais velhos foram sindicalistas. No meu caso, quando fui para o Espírito Santos, eu comecei, junto com a Igreja Católica, o movimento que veio a se tornar o MST. Em Serra dos Aimorés, enquanto estudava para me formar como professor, eu ajudava a fundar o sindicato dos trabalhadores rurais, sendo o presidente por dois mandatos. Minha relação com este ambiente sempre foi ativa. Foi algo bastante natural, uma construção que vem desde o início da minha vida. E sempre coloquei a arte à disposição disso.

Este interesse foi o que o levou a aceitar o cargo de secretário de Cultura de Teófilo Otoni, no ano passado?
Assim que começou a pandemia, eu vim para São Julião. Neste momento, o prefeito Daniel Sucupira, sabendo que eu estava na roça, me convidou. Eu relutei um pouco, pois não era muito o campo que eu queria atuar, mas acabei aceitando. E tem sido muito bom, apesar de eu ter embranquecido os cabelos por conta da Lei Aldir Blanc (risos). Felizmente a gente conseguiu destinar todo recurso que veio. Foi uma missão difícil, mas cumprida. Agora estamos num trabalho de realmente construir uma estrutura cultural básica de ação para o município.

"Os organizadores do Viola de Feira tocam o festival com todo respeito aos setores da viola, incluindo a questão de gênero. É uma preocupação muito contextualizada no mundo contemporâneo"



Você é uma das atrações da quarta edição do Festival de Feira, com início no domingo. O que é exatamente esse “clima de feira” que o evento busca?
É um projeto que tem uma força muito grande porque relaciona a viola com uma coisa fundamental para nós, brasileiros, que são as feiras. É importante promover este diálogo da arte com a culinária. A feira geralmente é este lugar onde o pequeno produtor leva as suas coisas para vender, criando uma plástica que tem muito a ver com a viola. Culturalmente, o instrumento dialoga com este ambiente. Ao mesmo tempo, a viola ganha dimensões amplas. Quando o projeto “Violeiros do Brasil” começou em São Paulo, em 1997, eu pressenti que ali a viola estava estabelecendo um novo posicionamento na música brasileira. Até então, a gente via a viola dentro de um gueto. E realmente isso aconteceu. Hoje a viola toca os mais variados estilos, atingindo uma variedade de classes sociais. E vai desde a cantiguinha de roda até às músicas mais complexas. Embora ainda precisemos romper algumas barreiras, posso dizer que temos um ambiente muito mais favorável.

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