Pianista premiada fala da carreira e dos desafios da mulher no mundo da música

Bernardo Almeida
20/05/2019 às 08:41.
Atualizado em 05/09/2021 às 18:44
 (RIVA MOREIRA)

(RIVA MOREIRA)

Há menos de um mês, Luísa Mitre tornou-se a primeira mulher a vencer o prêmio Marco Antônio Araújo, voltado para a música instrumental em Minas desde 2004. No ano passado, já havia sido a segunda entre os 72 eleitos pelo prêmio BDMG Instrumental desde 2001. 

Aos 29 anos, a pianista e compositora espera agora que o reconhecimento possa encorajar outras mulheres a ocupar esse espaço ainda tão predominantemente masculino. Um equilíbrio que ela já começa a observar pela maior presença de novas estudantes na universidade.

O encanto com o piano vem desde que pediu uma versão de brinquedo do instrumento aos 2 anos de idade, como presente de Natal. Começou a tomar aulas particulares cinco anos depois (um pedido pessoal seu para os pais; ela garante nunca ter sofrido uma pressão deles para as aulas), passando pelo curso básico da UEMG, e continuou sua educação nos cursos de graduação e mestrado pela UFMG. 
 

“A conquista de um prêmio por uma mulher e a projeção que isso traz encorajam e dão esperança para outras colegas de trabalho, que muitas vezes não se imaginam ocupando esse espaço. Eu sei disso porque também tiro forças dos exemplos de mulheres que eu já vi e vejo tocando e levando seus trabalhos para a frente”


​Até 2017, compor não estava nos seus planos, quando recebeu um convite do coordenador do Savassi Festival para criar para o programa Música Nova. Daí surgiu “Oferenda”, seu primeiro álbum de composição própria. O álbum foi feito para seu grupo Luísa Mitre Quinteto, apenas um de seus vários projetos que contam com a presença da irmã, a percussionista Natália Mitre.

Com uma fala tranquila, porém firme em suas convicções, ela conversou com a reportagem no foyer do teatro Sesiminas, pouco antes da sua passagem de som para o show de premiação do “Marco Antônio Araújo 2019”, que marcou ontem o encerramento da cerimônia do Prêmio BDMG Instrumental deste ano.

Como você enxerga a presença de mulheres no meio da música instrumental, diante desse marco que seus prêmios representam? E que responsabilidades esse reconhecimento traz consigo?

É um retrato do que acontece no ambiente em que trabalhamos no meio da música instrumental. O número de mulheres é bem inferior ao número de homens. Mas eu acho que isso está mudando, há muitas mulheres começando a se interessar pela música instrumental e vejo isso se manifestar na crescente presença delas no curso de Música Popular. A conquista de um prêmio por uma mulher e a projeção que isso traz encorajam e dão esperança para outras colegas de trabalho, que muitas vezes não se imaginam ocupando esse espaço. Eu sei disso porque também tiro forças dos exemplos de mulheres que eu já vi e vejo tocando e levando seus trabalhos para a frente. 

Além de questões internas, o que mais contribui para essa discrepância?

Existe machismo na sociedade, e no meio musical não é diferente. Eu me sinto muito sortuda por não ter tido episódios que me desencorajassem, que me fizessem desistir. Mas há vários casos de amigas que sofreram preconceito, que foram limadas de grupos, sofreram assédio, tanto sexual quanto moral. E como mulheres precisamos provar nossa capacidade o tempo inteiro, mais do que os homens. Houve um show em que, após tocar minhas músicas, alguém me perguntou de quem era a composição, e mesmo após eu responder, ele perguntou novamente e não entedia que a autoria pudesse ser minha. A figura da mulher não está vinculada ao instrumento ainda, com a compositora, regente ou arranjadora. Porque ainda somos poucas, não é comum. Acho que isso é uma herança de muitos anos atrás, de quando a mulher não podia ocupar a música profissionalmente. Era até bonito ver a mulher aprendendo a tocar piano ou acordeão, na geração da minha avó, por exemplo. Mas não podia sair do ambiente de casa, a mulher que tinha que tocar para se sustentar teve que batalhar para viver da música dela, como a Chiquinha Gonzaga, que foi uma guerreira . Abriu muitas portas, mas temos resquícios disso até hoje. Além disso, é uma dificuldade da mulher, a maternidade torna difícil para a instrumentista porque é preciso estar sempre estudando, tem que tocar à noite, ficar cinco horas seguidas fora de casa. Vejo a dificuldade de colegas amigas que têm filho pequeno conciliar isso com a carreira.

O que mudou para você com o reconhecimento dos prêmios desde o ano passado?

A premiação estimulou a continuar e a tentar novos projetos. Com certeza a visibilidade mudou a maneira como as pessoas me enxergam, passaram a me ver como compositora e a me valorizar mais como instrumentista. O prêmio BDMG é uma vitrine, considero um divisor de águas na minha carreira. A primeira mulher a receber o prêmio BDMG Instrumental foi a Daniela Rennó, percussionista que morreu no ano passado aos 50 anos, após sofrer um enfarte.

Como foi a relação de vocês e como foi a notícia da morte dela?

Não convivi muito com ela pessoalmente, mas a gente interagia mais pelas redes sociais. Já conversamos por telefone. Houve uma época em que estávamos até olhando a possibilidade de uma gravação no estúdio dela. Ela sempre falava quando via um show meu, dava apoio, incentivo, até na premiação do BDMG, e isso é importante, vindo de uma pessoa mais experiente, dá mais força ainda. Eu estava com a Camila Rocha e a Natália Mitre (irmã de Luísa) na hora em que soubemos da morte dela, aqui mesmo no Sesiminas. Foi uma coisa muito repentina, ela estava gravando o disco dela na época. Na noite anterior havia publicado no Facebook que estava superfeliz porque tinha feito uma sessão de gravação, então ficamos muito abaladas. A sensação é de termos perdido uma companheira de militância, porque ela foi muito forte para conquistar o que conquistou. Tenho um carinho especial e uma admiração muito grande por ela. 

Como funcionou seu processo de composição para “Oferenda” e qual a diferença entre tocar obras de outros e interpretar algo próprio para o público?

As composições nasceram, em sua maioria, a partir do piano, que é meu guia, por isso até os pianistas me inspiram muito mesmo na hora de compor. Primeiro pensei no quinteto, na instrumentação, e já escrevi as músicas pensando naquela formação, explorando os instrumentos o máximo que podia, em como poderia variar o timbre dentro daquele grupo. E eu escrevo muito, nota a nota, com exceção da bateria. E tocar algo próprio é muito diferente, a responsabilidade é maior, ficamos mais expostos do que já ficamos quando tocamos obras de outros, quase como se eu estivesse pelada diante do público. Foi desafiador vencer o medo, superar a sensação de não se achar capaz, de que podia ser melhor. Sempre poderia ser melhor. Mas com um prazo para entregar, depois é executar bem feito o que já foi feito.

Você tem diversos projetos em parceria com sua irmã. Como é essa relação de vocês? E ela também compõe?

A gente vem de uma família muito musical, tocamos juntas há muito tempo. Ela é dois anos e meio mais nova que eu. Quando comecei a fazer aula de piano bem nova, era doida para a Natália também tocar piano, mas não era o que a interessava. Nas nossas festas de família, várias pessoas tocavam, cada um com um instrumento, então nesses momentos de descontração ela começou a se interessar pela percussão. Daí passou a fazer aulas de bateria, estudou percussão erudita, fez faculdade e agora já tá no mestrado em percussão na UFMG, focada no vibrafone. Ela sempre foi uma companheira musical. Quando montei o quinteto, a Natália foi a primeira pessoa que me veio à cabeça, sem pensar. Até porque ela toca muito bem o vibrafone, um instrumento para o qual é difícil achar instrumentista. Ela deve lançar composições dela com um grupo de berimbaus que ela integra há um tempo, j então também está se movimentando nesse sentido.

Que conselhos você dá para quem quer trabalhar com música?

Acho que temos que encarar como uma profissão. Muita gente encara como hobby, mesmo entre os músicos. Então temos que trabalhar da forma mais profissional possível, correr atrás das coisas, não tem segredo. Acho que um dia as pessoas vão respeitar mais e entender a função do músico em uma sociedade, a importância da arte. Há pais que se preocupam com o que vai ser dos filhos que fazem música, mas isso é um mito. A gente consegue ganhar dinheiro, trabalhar e se sustentar, sendo organizado e trabalhando com afinco.

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