Plataformas de streaming x artistas: declarações do presidente do Spotify geram debates e embates

Thiago Prata
@ThiagoPrata7
14/08/2020 às 19:15.
Atualizado em 27/10/2021 às 04:17

Uma série de declarações polêmicas feitas pelo presidente do Spotify, Daniel Ek, semanas atrás, gerou um novo mal-estar com músicos de várias partes do mundo. Comentários como “Em toda a existência (do Spotify), acho que nunca vi um único artista dizer: ‘estou feliz com todo o dinheiro que estou recebendo com o streaming’” e “Você não pode gravar músicas uma vez a cada três ou quatro anos e achar que isso será suficiente” levaram artistas, como Mike Mills (R.E.M.), Dee Snider (Twisted Sister), Adrian Utley (Portishead), entre tantos outros, a contra-atacarem, inclusive com palavras de baixo calão, dizendo que Ek só “quer saber de dinheiro” – e que a maioria deles ganha uma “mixaria” através dessas plataformas. No Brasil, uma enxurrada de críticas também se instaurou.

“Esse é um tipo de declaração que reflete nitidamente o pensamento escravocrata trabalhista. Vende-se a imagem de que todos podem alcançar o sucesso e ter uma vida hollywoodiana; basta trabalhar. É hilário porque o trabalhador se mata de trabalhar, enriquece o patrão e não atinge nunca o status vendido no panfleto. Bem-vindos à nova era, em que as chicotadas no lombo têm o ritmo do algoritmo”, disparou o rapper Vitor Pirralho.

Por sua vez, Zeider Pires, vocalista do grupo de reggae Planta & Raiz, até tentou entender o lado de Ek ao afirmar que “os artistas têm mesmo que estar criando, se conectando com sua galera, fazer um conteúdo relevante, aumentando a quantidade de pessoas que venham a curtir seu trabalho”. Porém, enfatizou um outro ponto: “O Spotify podia pagar mais mesmo, já que todo mundo está trabalhando em parceria. Sem o artista, o Spotify não existiria”.

Números

Se tratando de cifras, as principais plataformas de streaming pagam menos de US$ 0,1 por stream (confira abaixo). O Spotify, no caso, oferece $0,00437 por stream. Número considerado “ínfimo”, por uma grande quantidade de músicos, vide o compositor e produtor Gustavo Macacko.

“Penso que o presidente (do Spotify) está focando apenas no que é bom para ele. Quanto mais o artista lança, mais a plataforma ganha. (...) O artista vive em busca de um oxigênio para se manter lançando. O presidente do Spotfy não quer saber disso. Viramos números e não projetos”, destaca.

Aumento e queda

O Spotify comemorou recentemente um aumento de 29% de usuários mensais. Por outro lado, lamentou a queda de 21% na receita de anúncios no segundo trimestre deste ano, reflexo da crise provocada pela pandemia, o que pode ter influenciado diretamente para os comentários tecidos por Ek. O cantor e compositor Charles Theone ressalta que, diante deste cenário, é preciso uma união entre artistas, uma vez que, segundo ele, o presidente do Spotify “não tem que se meter” no processo de criação de um músico.

“A grande luta do compositor é estar unido e lutar pelos seus direitos e aumentar esse valor. Que seja bom para todo mundo. Imagina um mundo sem música, sem a arte. Uma queda muito grande. Eles (donos das plataformas de streaming) ganham muito dinheiro com a gente. A luta é nossa, em prol de um mundo melhor, com nossa arte, e que possamos ganhar, sim, nossos direitos conexos”, diz.

A reportagem tentou contato com o Spotify para falar sobre o assunto, mas não obteve resposta.

Reféns do streaming?

Se no Século XX e início dos anos 2000 as gravadoras ditavam as regras, e o LP e, depois, o CD eram as principais mídias, atualmente são as plataformas de streaming é que dão as ordens. Há quem diga que os artistas se tornaram reféns do streaming, maior fonte de consumo nesse sentido. Ou será que sempre foi assim?

“O artista sempre ficou refém, isso historicamente. A arte sempre precisou de um mecenas. Já era assim, no classicismo, na música de concerto, em que sempre se precisou de alguém, um barão, um nobre, para financiar o artista”, descreve Carlos Jáuregui, professor da Ufop, integrante dos Grupos de Pesquisa Conjor (Convergência e Jornalismo) da Ufop e do Escutas (Ufmg) e músico de bandas como Djalma não entende de Política e Orquesta Atípica de Lhamas.

“A arte é algo que tem um retorno financeiro mais complexo, mais difícil. Se pensar no contexto atual, temos uma dificuldade de distribuição e divulgação. Aí que está o gargalo. Houve um momento em que precisávamos de gravadora, no sentido de gravar em estúdio. Havia dificuldade tecnológica de fazer boa gravação. Hoje se popularizou, ficou muito mais fácil gravar em sua própria casa. Mas mesmo artistas que estão gravando em sua própria casa, para fazer com que aquilo tenha um número de audições que seja rentável, vão precisar da ajuda de uma distribuidora de grande porte, que vai investir naquilo”, ressalta.

Ao mesmo tempo, ele questiona a forma como as plataformas digitais fazem essa distribuição. “Tem a questão dos algoritmos que não são transparentes para a gente. O Spotify, por exemplo, tem uma curadoria digital e uma curadoria de especialistas. Mas precisamos saber melhor como isso funciona com nossa música, que é distribuída nas plataformas, e como ela chega até o público. É um pouco obscuro para a gente ainda”, comenta.

O rapper Max B.O acredita que, “de certa forma, o artista está nas mãos dessas plataformas”. “Nesse período de 'esmagamento', com certeza a situação mais preocupante é a do artista que tem menos plays, que talvez pareça preguiçoso na visão do Sr. Daniel Ek, mas na realidade ele não tem sequer um suporte para gravar nesse momento. Importante lembrar que muito outros têm possibilidades de gravar e produzir em casa, mas correm o risco de não ser o artista ideal para o que a plataforma pretende, com propagandas, capas de playlist etc”, completa.

Bola pra frente

Apesar de estarem cientes de que problemas existem, alguns músicos tentam ver as coisas sob outra ótica. É o caso de Eduardo Brechô, que não crê que os artistas se tornaram “reféns do streaming”.

“A gente tem que trabalhar em colaboração com o streaming, criando meios de entender essa plataforma. Não me coloco como refém do streaming, não. A gente ganha muito pouco, é explorado, mas o capitalismo funciona dessa maneira. Eu, como artista, também sou um fornecedor. A gente poderia entender nossa matéria prima e começar a trabalhá-la de uma maneira melhor. Mas como tem muito artista que quer se lançar, é difícil de organizar nossa classe. Precisamos fazer um ‘mea culpa’, entender que a classe artística também é muito competitiva. O artista, antes de tudo, está trabalhando sua causa individual”, diz.

Impactos

O rapper e produtor Dj Hum ressalta uma tendência. “Para os artistas mais ‘estourados’, mas que vêm de outra geração, acostumada à mídia física, o impacto do streaming e plataformas digitais foi bem grande, pois nascemos em outras épocas. Para quem chega agora e está vendo o mundo como ele é, não vai ver tanta novidade, pois já entendeu que a música é feita desse jeito. (...) Ninguém vai fazer mais como um Stevie Wonder, de durar 30, 40 anos (na música), um Bob Marley, um Pink Floyd, com músicas da mídia física. Porém, para quem busca um tipo de sucesso e popularidade, o Spotify serve como uma mídia, um marketing, em que você cria seu próprio canal. Eles facilitaram, principalmente, para o público mais jovem”, relata.

Por fim, o baterista do Barão Vermelho, Guto Goffi, ressalta um viés relativo ao próprio consumidor. “Estou no meu terceiro álbum solo e continuo gastando e investindo, logicamente com uma proporção reduzida, pois sou um artista que já é muita novidade, apesar dos meus discos individuais serem pouco conhecidos ainda. Não me preocupo com isso, vou fazendo, cada vez mais discos, singles e outras coisas. Vou entupir as plataformas de Guto Goffi e depois ver como fica. Preciso é que as pessoas se interessem e vão até lá clicar no Guto Goffi C.A.O.S. Agora, quantos aqui que me leem nesse momento, irão ao Spotify, Deezer ou Apple Music, ouvir meus discos? Os do Barão talvez, e os meus discos solo, você já ouviu?”, questiona.

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