Por que os assassinos dos seriados nos fascinam tanto?

Cinthya Oliveira - Hoje em Dia
18/10/2015 às 08:43.
Atualizado em 17/11/2021 às 02:06
 (DIVULGAÇÃO)

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O filme “O Perfume – A História de um Assassino”, baseado na obra de Patrick Süskind, vai inspirar um seriado televisivo que deve estrear no ano que vem. Será mais um entre os vários que colocam os assassinos como protagonistas.

“Breaking Bad”, “Dexter”, “The Following”, “The Blacklist”, “Bates Hotel”, “Hannibal”... são vários seriados na TV paga e no Netflix que têm o criminoso como foco principal. Na Rede Globo, os exemplos não são de agora: vão de “As Noivas de Copacabana” a “Dupla Identidade”.

Mas por que os assassinos provocam nos espectadores tanto fascínio? De acordo com o crítico de cinema Pablo Vilaça, só gostamos desses personagens porque eles são apresentados de forma complexa. É importante que haja uma identificação com o que está na tela. “Se a série tem um vilão onipotente, sem característica que o aproxima do espectador, não tem audiência. Ninguém vai ficar acompanhando durante semanas a trama de alguém com quem não tenha identificação”, diz.

Vilaça usa “Breaking Bad”, o seriado mais premiado da contemporaneidade, como exemplo. “O primeiro episódio mostra a vulnerabilidade do personagem. Ele tem um subemprego, é um pesquisador frustrado, está impotente, tem uma esposa grávida que o humilha, descobre que tem câncer. No final do episódio, você está do lado dele”, explica Vilaça, dizendo ainda que temos fascínio por vilões por serem personagens que não se deixam levar pelas censuras que a vida social impõe.
 
INCONSCIENTE
 
De acordo com a psicanalista Camila Cunningham, há muitas leituras psicanalíticas para esse fascínio. Uma delas é a possibilidade de alcançar a satisfação de impulsos agressivos através do personagem, porém de forma segura, controlada e sem gerar prejuízos à outra pessoa – e a si mesmo.

“Por exemplo, nos momentos de raiva, costuma-se ter vontade de matar o chefe que humilhou no trabalho, ou o cara que deu uma fechada no trânsito e ainda foi grosso. Porém, isso geralmente fica só no pensamento, ou na vontade.

Na identificação com um personagem agressivo, é possível atingir a realização de desejos agressivos sem precisar matar ou agredir de fato, na realidade concreta”, explica.

Confira o texto que a psicanalista Camila Cunningham fez para o Hoje em Dia sobre a identificação que espectadores têm com personagens assassinos:
 
Somos constituídos por impulsos eróticos e agressivos, de amor e ódio, cuja realização direta não nos permitiria viver numa sociedade “civilizada”, já que poderia levar por ex. ao incesto, ao parricídio, etc e ainda colocar em risco o equilíbrio do aparelho psíquico. Temos mecanismos de defesa, como o recalcamento, que mantém tais desejos (eróticos e agressivos) inconscientes. Porém, apesar de ics, eles continuam existindo no aparelho psíquico, influenciando nosso comportamento e procurando satisfação. A única maneira viável de encontrar satisfação desses impulsos, sem prejuízos à sociedade (e ao próprio aparelho psíquico) é por meio de vias indiretas, deslocadas, e há várias formas pelas quais isso pode ocorrer.

Ao assistir a um seriado, o sujeito realiza várias identificações (a identificação é um processo inconsciente, ocorre de forma “automática”, sem depender da vontade): com um ou vários personagens, com um ou mais traços de um personagem, ou mesmo com situações específicas. Essas identificações, além de múltiplas, são dinâmicas, o que permite o sujeito transitar entre elas, identificando-se com um personagem em determinado momento, a seguir com outro, etc. Quando o protagonista é um assassino e a violência é o tema central, pode-se pensar que o sujeito identifica-se frequentemente com ele; e, em alguns casos, com a vítima, vivenciando e dando vazão, de forma indireta, a desejos agressivos que fazem parte de sua própria subjetividade.

Assim, o sujeito alcança a satisfação de impulsos agressivos através do personagem, porém de forma segura, controlada e sem gerar prejuízos à outra pessoa – e a si mesmo. Por meio desse processo, a agressividade pode ser descarregada, levando ao prazer em função da catarse proporcionada. Seria uma forma socialmente aceita de dar vazão a impulsos agressivos que vivenciamos com diariamente, mas não atuamos (não partimos para a ação).
Por exemplo, nos momentos de raiva, costuma-se ter vontade de matar o chefe que humilhou no trabalho, ou o cara que deu uma fechada no trânsito e ainda foi grosso. Porém, isso geralmente fica só no pensamento, ou na vontade (que alguns reconhecem em si mesmos mais que outros). Na identificação com um personagem agressivo, é possível atingir a realização de desejos agressivos – ou impulsos hostis - sem precisar matar ou agredir de fato, na realidade concreta. É uma saída simbólica, que dispensa a atuação direta, mas proporciona satisfação e alívio prazeroso da realização de um desejo.

Ao assistir a um seriado, realizamos imediatamente identificações, colocando-nos no lugar dos personagens, oscilando entre eles e vivenciando de forma mais livre (no caso do assassinato ser o tema central) a própria agressividade.  A catarse consiste em dar vazão, de forma controlada, a emoções/desejos reprimidos, o que gera prazer e alívio de tensão psíquica.

O narcisismo impede o sujeito de admitir a existência, em si mesmo, de elementos que considera ruins, errados ou mal vistos socialmente. Ocorre freqüentemente uma cisão, por meio da qual o sujeito se defende, acreditando que tudo nele é bom e projetando o que tem em si e considera ruim no mundo externo. Ou seja: ele está sempre certo e bom; o resto do mundo é que é errado, mal. A própria agressividade muitas vezes não é tolerada pelo sujeito e é colocada entre seus elementos que ele considera ruim, por isso ele se defende projetando-a, atribuindo-a ao outro ou ao mundo, nunca a si mesmo. Ao assistir a um seriado cujo protagonista é um assassino, o próprio sadismo ou desejo de agredir o outro pode ser indireta e parcialmente realizado, sem que ninguém saia ferido ou que o sujeito sinta-se culpado, inadequado socialmente; nem tenha que lidar com conseqüências concretas como o medo da retaliação ou possíveis implicações legais.

Tudo o que foi dito até aqui pode ser aplicado a seriados, mas também a filme (e novela, jogo de futebol, livro, etc.) Porém, vejo peculiaridades no seriado. Cada episódio de um seriado é usualmente estruturado a partir de uma “fórmula básica”. A trama se desenvolve de forma repetitiva, “procedural”, em que uma mesma situação é reapresentada a cada episódio em circunstâncias diferentes. Em sua estrutura encontramos uma “nova velha” situação, com os mesmos personagens centrais, que eleva as tensões à procura de um clímax. Ao mesmo tempo, desenrola-se, ao longo da temporada, uma trama narrativa maior que não permite a descarga completa das tensões ao fim de cada episódio e abre novas possibilidades de elevacao da tensão, para futuras descargas e mantem a tensão do espectador em um nível minimo necessário para a formulação da expectativa pelos novos episódios que trazem em si a promessa da descarga esperada.

Da mesma forma, ocorre com o corpo e o aparelho psíquico. Ao descarregar algum desejo agressivo, por mais alívio que o sujeito possa sentir, isso não e capaz de esgotar toda a agressividade contida em si mesmo. Essa agressividade, com o tempo, torna a atingir níveis mais altos que passam a demandar novas descargas. Trata-se de um loop semelhante ao que mantém o espectador acompanhando episódios e temporadas por anos a fio, na medida em que o seriado passa a permitir uma via de descarga catártica imediata e segura, que pode levá-lo a evitação, em diversos graus, de lidar com a própria agressividade recalcada. É o que embasa o “degradê” existente entre os individuos que são fascinados pelo seriado e os que são viciados nele.

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