Principal escritora negra na atualidade, Conceição Evaristo faz as pazes com BH

Paulo Henrique Silva
phenrique@hojeemdia.com.br
21/10/2018 às 15:47.
Atualizado em 28/10/2021 às 01:21
 (CÉSAR FRANÇA/DIVULGAÇÃO)

(CÉSAR FRANÇA/DIVULGAÇÃO)

  Conceição Evaristo saiu de Belo Horizonte, no início da década de 70, por uma questão de sobrevivência, após morar na favela do Pendura Saia e ter trabalhado como babá e faxineira. Nome de grande relevo entre os escritores que vêm furando barreiras e introduzindo a temática negra na literatura brasileira, ela foi morar no Rio de Janeiro, mas seus olhos sempre estiveram voltados para a capital mineira. A partir de amanhã, terá o nome estampado numa mostra dedicada ao protagonista da mulher negra, no Sesc Palladium. “Sem sombra de dúvidas, esse é um momento de alegria, uma oportunidade de fazer as pazes com Belo Horizonte, de onde não queria ter saído. Essa mostra não é somente um elogio pessoal, mas também uma forma de reconhecimento. De como o meu trabalho ressoa no coletivo e de como o coletivo ressoa no meu trabalho”, afirma Evaristo, que começou tardiamente no ofício, lançando-se como escritora em 1990, aos 44 anos. Hoje com 71, vale-se de sua notoriedade para abrir portas a outros escritores negros. Abrir portasApós ser homenageada na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no Rio de Janeiro, e ganhar coragem para se candidatar a uma vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL), sem fazer os costumeiros e caros coquetéis dedicados aos imortais (acabou perdendo a vaga para o cineasta Cacá Diegues), é referência por onde passa. “Hoje estou numa situação em que, ao referendar determinados textos e autores, vou chamar a atenção para outras leituras. O mais importante não é ser primeiro, mas sim abrir portas para outros. Uma sobe e puxa outra”, sintetiza. A escritora tem seis livros publicados, além de outros textos reunidos em antologias. A primeira obra foi o romance “Ponciá Vicêncio”, lançado em 2003, inspirado em relatos ouvidos de familiares em Belo Horizonte envolvendo discriminação racial na sociedade brasileira. Para ela, o racismo nunca foi velado. “Apesar de hoje eles terem saído do armário, tendo a permissão para fazer discursos de ódio, o racismo não é de hoje. Percebíamos claramente na maneira como nos olhavam, como nos tratavam, e em como nossas ações era percebidas e analisadas”. VulnerabilidadeMesmo agora, com uma bibliografia destacada em várias feiras literárias, Evaristo ainda se depara com situações de vulnerabilidade como a várias mulheres negras. Em Cachoeira, na Bahia, ela foi uma das homenageadas no Flica, além de ter sido a autora que, no conjunto de obras, mais vendeu. “O público foi muito receptivo, foi lá para me ouvir em todas as palestras que passei. Assim também foi com a Djamila Ribeiro, outra autora negra. Mas saiu uma matéria que afirmou que o grande destaque foi um escritor branco. Apesar de a cobertura da imprensa estar sendo boa em torno de nosso trabalho, ainda há uma dificuldade em reconhecer o nosso lugar”, lamenta. Para Evaristo, apesar de hoje a questão racial ter conquistado importantes canais de discussão, principalmente na literatura, a temática ainda precisa ser bastante difundida. “Ainda somos tratados como uma minoria. Não na questão quantitativa, mas em relação ao poder. Ainda precisamos lutar por maior representatividade. Ainda não temos a força e os canais que os grupos privilegiados detêm. Constantemente tem se repetido injustiças nos modos de relação da sociedade brasileira. Acabamos repetindo sempre a questão do racismo, o que me assusta, porque (a conscientização) não está profundamente consolidada”. ColetivosAos jovens que lhe procuram para tentar a sorte no campo literário, ela oferece o mesmo caminho que trilhou no início da carreira, na década de 80, quando ingressou no grupo “Quilombhoje”, participando de uma série intitulada “Cadernos Negros”, editada pela organização. “Insisto muito no sentido de, primeiramente, tentarem publicações coletivas. Trabalhar carreiras individuais é construir sobre fragilidades. É preciso o coletivo para nos alimentar também. Juntando-se aos movimentos sociais, a visibilidade será garantida”, observa. A grande mídia, segundo ela, ainda tem grande dificuldade de reconhecer o lugar do negro na sociedade. Ao se amparar em movimentos coletivos, os trabalhos vão ganhando amplitude, em palestras e na sala de aula. “Estar dentro destes coletivos é fundamental para a nossa sobrevivência”, assinala Evaristo, antecipando a ideia de produzir um livro de ensaios críticos em torno da autoria negra jovem que “vem com força total”. Por isso, diz, planeja um ano de 2019 sabático, diminuindo a quantidade de participações em eventos. Próximos livrosEla adianta outros dois projetos literários. Um deles é “Canção de Ninar Menino Grande”, já praticamente finalizado, que deverá ser lançado em breve. “O livro tem uma mulher negra no centro da cena. Ela ouviu relatos amorosos de outras mulheres a vida inteira. É um livro sobre afetividade, homens, paixões e encontros”, revela. A segunda publicação terá o titulo “Flor de Mulungu”, que tem um caráter mais ensaístico. Focado numa matriarca que em seu aniversário de 100 anos evoca as memórias de filhos que foram se desgarrando de seus filhos. “Simbolicamente, essa mulher representa a África e a diáspora africana”.  LIS PEDREIRA/DIVULGAÇÃO / N/A

Conceição Evaristo participará de debate na sexta-feira  Debate e apresentações culturais na programação Para a professora e pesquisadora Rosália Diogo, uma das coordenadoras da terceira edição da Mostra Conceição Evaristo, que irá de terça a sexta-feira no Sesc Palladium, o evento é um reflexo de “toda essa potência da escritora que hoje reverbera na literatura e em outras áreas de conhecimento”. O papel de Evaristo na literatura brasileira, como a maior escritora negra na atualidade, é o ponto de contato, segundo Rosália, para trazer outros artistas que estão de alguma forma sintonizados com as temáticas e preocupações da autora mineira.  “Por meio dela, a gente convida artistas de Belo Horizonte de várias áreas para disseminar a cultura negra”, registra a coordenadora, que fará a mediação de debate que terá a presença da escritora, na sexta-feira, às 20h, no foyer do centro cultural. PistasO debate com Evaristo acontece todos os anos e, geralmente, a escritora prefere que a organização levante pontos para serem debatidos. “Como autora de uma tes de doutorado sobre ela, tenho pistas sobre a trajetória e a produção literária dela, possibilitando elementos que não são necessariamente explícitos”, afirma Rosália. A pesquisadora ressalta que Evaristo escreve de maneira simples e direta sobre questões profundas envolvendo a opressão e o regimento subalterno a que ficaram submetidas as mulheres negras. “São o fio central da escrita dela. À maneira dela, doce e terna, ao mesmo tempo visceral e contundente, Evaristo penetra nesta sociedade tão machista, tão racista e tão misógina”. Rosália recorre a um poema que a escritora dedicou à mãe (“De mãe”, presente no livro “Poemas da Recordação e Outros Movimentos”, de 2008) para sintetizar a obra dela, citando a frase “A brandura de minha fala/na violência de meus ditos”. Para a pesquisa, a frase ilustra com precisão essa dualidade entre um conteúdo forte e um jeito de falar que é sereno. AberturaAmanhã, às 19h30, no Grande Teatro do Sesc Palladium, a homenagem será focada em um encontro cênico-musical produzido por vários artistas negros, com a apresentação do músico Ricardo Ulpiano, que terá ao seu lado a cantora Rita Silva, e de Dona Jandira, que se juntará a Zaika dos Santos em outro momento da abertura. Haverá ainda performances de dança, com Aline Mathias e Mayra Mota.

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